O plano é não ter planos?
Ao fazer as resoluções de ano novo, certamente ninguém esperava que uma pandemia seria um dos desafios para a concretização das metas de 2020. Muitos planos foram cancelados ou adiados, sem data prevista para execução. Isso colocou até os astrólogos em uma posição complicada, cobrados por não terem previsto o que aconteceria no planeta. Mas aconteceu: a Covid-19 desembarcou no Brasil há quatro meses e transformou o cotidiano da população.
Por mais que o país seja considerado mau exemplo mundialmente – por conta da maneira com que o governo federal vem tratando a doença –, é fato que até a vida dos mais descrentes mudou. Há quem descumpra as regras, mas as indicações são universais: isolamento social, trabalho remoto (quando possível) e uso de máscaras e álcool em gel sempre. São grandes alterações em um estilo de vida moderno marcado pela correria e por deslocamentos.
“Mudar, naturalmente, já é difícil. O ser humano, por si só, já tem essa ‘dificuldade’ de mudar. Por instinto, o nosso cérebro já nos prepara para uma fuga no momento em que interpreta a mudança como algo diferente, misterioso e que, por ser desconhecido, pode ser ameaçador”, explica a psicóloga e coach educacional Marcela Bernardi. A pandemia representa esse desconhecido. “É essa grande mudança, que aconteceu de forma brusca, inesperada, repentina e involuntária. Isso sempre vai causar algum tipo de impacto em nosso psicológico. É normal, apesar de não ser fácil”, destaca.
Além do receio do que é novo, a mudança exige uma mobilização de energia que o nosso cérebro não está disposto a gastar. Por isso, é necessário um grande esforço para se adaptar à situação. “A primeira coisa é aceitarmos que estamos passando por uma grande mudança de planos. Controle o que você pode. O que não pode controlar, aceite. É mais fácil aceitar para lidar com a situação”, sugere a especialista.
Ter otimismo frente a tantas adversidades é um desafio, mas pode ajudar. “O que você pode tirar de bom ou de lição dessa mudança? O que tem sido diferente, no sentido positivo, por conta dela? Talvez, antes, você passasse o mês praticamente só viajando, longe da família, trabalhando – e, agora, consegue almoçar com a esposa todos os dias, dorme em casa”, exemplifica. Nos casos em que você não conseguir olhar por essa perspectiva otimista, também é preciso resiliência. “Está tudo bem não estar sempre bem. Não se culpe, não se cobre desnecessariamente. Tenha planos para o hoje e para o futuro, mas não queira enxergar além da curva”, indica Bernardi.
Novas possibilidades
Quando perguntado sobre sua profissão, Sandro Guedes Gonçalves da Silva responde que “agora é confeiteiro (risos)”. Isso porque, há pouco mais de um mês, ele era responsável por fazer cobranças para um banco, um trabalho com o qual não se identificava, mas que ajudava a pagar seu curso de Psicologia na faculdade. Saiu do emprego em junho e, uma semana depois, começou seu próprio negócio, uma cheesecakeria.
“Sempre gostei muito de cozinhar, mas só o fazia em casa. Minha mãe e minha avó fazem doces para vender. Descobri uma receita de família de cheesecake e comecei a fazer”, relata Sandro. No dia desta entrevista, havia completado três semanas de trabalho, com o saldo de 42 tortas vendidas. “Me reinventei muito, saí da cobrança, de um trabalho burocrático, para colocar a mão na massa. Foram semanas incríveis. A recepção do público foi incrível: está sendo surreal a quantidade de tortas que fiz”, conta.
O que mais pesou na decisão foi a maneira como ele se sentia no trabalho – e ver essa possibilidade como uma oportunidade, sem desespero. “É difícil mudar em um momento de incerteza, mas fui para algo mais certo: o ramo de cobranças está muito mais incerto do que o de confeitaria. Percebi que o consumo está mudando nesse tempo de caos. Agora, o pequeno produtor está sendo valorizado”, observa.
Marcela Bernardi aponta que viver o momento presente pode ajudar a passar por essa fase. “Pense que a quarentena não é a sala de espera da vida, é a própria vida acontecendo. Então não fique se lamentando, esperando tudo isso passar para só então voltar a agir. Talvez você não consiga colocar em prática os planos que estava planejando antes da pandemia. Tudo bem. Mas coloque em prática outras coisas”, recomenda. Nesse caso, vale tudo o que faça bem, segundo ela: ler, escrever, assistir a seriados, entre outras atividades.
Não é preciso, também, abandonar os planos – mas adaptá-los. Planejar o futuro pode ser uma fonte de esperança e motivação, aponta Bernardi: “é uma necessidade – precisamos de planejamento e organização do tempo. Isso gera esperança e traz conforto”, analisa. É possível, em alguns casos, até dar o pontapé inicial durante esse período. “Esse primeiro passo pode ser fazer o planejamento da ação a ser executada depois da pandemia,
por exemplo. [Assim,] o organismo vai produzir hormônios, como a dopamina, que vão ajudar na sensação de bem-estar”, diz.
Impacto nas relações profissionais
O clima organizacional – que, em muitos casos, passou a ser virtual – também foi afetado. As incertezas tomaram conta de muitas empresas, com chances de demissão ou redução salarial à vista. Com a crise, o mercado de trabalho brasileiro perdeu 1,1 milhão de vagas de carteira assinada nos meses de março e abril deste ano, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Apenas no mês de abril, foram fechadas 860.503 vagas, o maior número registrado pelo Caged em 29 anos.
Em um cenário tão instável, o líder tem um papel ainda mais importante na redução desses impactos nos funcionários. “Não existe um plano de resposta predefinido. Temos que tentar evitar uma reação exagerada aos acontecimentos. A ideia do gestor é analisar de maneira mais ampla e sistêmica”, opina Gustavo Abib, professor da Universidade Federal do Paraná e doutor em Administração. A comunicação deve ser o ponto-chave nessa fase. “Algumas empresas estão lidando bem com isso, quando comunicam de maneira transparente o que está acontecendo. A comunicação dá uma segurança psicológica para o funcionário. Quando isso não existe, ele sofre: fica imaginando o que está acontecendo – e a imaginação é fértil”, aponta.
Enquanto os líderes devem encorajar a autonomia e trabalhar mais como educadores do que como “cobradores”, o funcionário pode focar em ter uma rotina bem definida para aliviar a ansiedade do momento. “[É importante] conseguir enxergar o que você faz de segunda a segunda. Aí, terá um mapa do tesouro nas mãos. Enxergando como está a rotina, você consegue mexer no que está em desacordo com o que gostaria”, pontua Bernardi.
*Matéria originalmente publicada na edição #239 da revista TOPVIEW.