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O futuro imaginado no passado

Obras utópicas e distópicas previram variados futuros há décadas – mas o que se concretizou, de fato?

Uma realidade em que uma máquina controla a vida da população, os objetos que as pessoas têm em casa, a comunicação entre elas – sempre por vídeo – e até os meios de transporte. Toda a sustentabilidade da vida humana é mediada por esse sistema. Poderia ser a descrição da internet e do nosso cotidiano em 2020, mas trata-se de um conto publicado em 1909. O The Machine Stops, de Edward Morgan Forster, previu a internet. E não é apenas o caso dessa obra. Ao longo das últimas décadas, várias outras produções imaginaram como seria o futuro – algumas, do ponto de vista utópico, outras, de uma perspectiva distópica.

“As utópicas são aquelas que imaginam sempre um bom lugar, são otimistas. A questão é que os livros de ficção científica, em geral, vão para o lado distópico. A distopia é aquele lugar onde ninguém quer morar. A sociedade distópica é controlada e limita o ser humano, é totalitária, autoritária, com governos repressores e opressores. É uma sociedade que traz censura e tortura. Ou até as pessoas imaginam que estão vivendo bem, mas, na verdade, são vigiadas e controladas o tempo todo”, resume Janice Cristine Thiel, professora de literatura no curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Entre as obras mais famosas da literatura nesse sentido, estão 1984, O Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451, todas ainda tidas como atuais. No audiovisual, o filme De Volta Para o Futuro marcou uma geração, assim como o desenho animado Os Jetsons.

Muitas obras, em especial de ficção científica, discutem questões fundamentais para a sociedade, como censura, controle estatal, manipulação e governos totalitários.” Muitas vezes, esse gênero não tem o mesmo prestígio que outros gêneros literários. Contudo, na verdade, são obras de crítica social muito forte. Por essa razão, também, é que muitas são censuradas em diversos momentos e em vários países, dependendo justamente de quem está no poder.”

Para celebrar os 35 anos do lançamento de De Volta Para o Futuro, comemorado no dia 3 deste mês, mostramos o que as obras imaginavam para o futuro – e como essas previsões estão relacionadas ao que, efetivamente, vivemos hoje. 

1984 – George Orwell (1949)

(Foto: divulgação)

“É a sociedade Big Brother”, define Thiel. As pessoas vivem sob vigilância constante. Elas têm, por exemplo, uma tela em casa em que é transmitida propaganda do Governo, na qual todas as falhas são transformadas em sucessos. “Os inimigos são sempre imaginados. São inimigos políticos do partido que são inventados, mas que as pessoas acreditam existir. É uma sociedade que sofre manipulação da informação e apagamento e reescrita da história segundo os moldes desse governo totalitário.” Thiel compara essas características, hoje, às fake news: “Muitas vezes, as notícias são manipuladas. Uma falha é divulgada como sucesso ou são escolhidos inimigos para esconder essas falhas. Nossa sociedade é controlada, então as pessoas têm que ter sempre um senso crítico grande e prestar atenção às informações que recebem para distinguir o que é uma notícia que está pautada em fatos e o que é uma notícia que é criada por alguém que tem o desejo de passar uma informação [falsa] de acordo com suas crenças ou seu desejo.” Outra questão é o rastreamento digital. “As pessoas estão sempre vigiadas – às vezes, colocam notícias ou postam alguma coisa e acham que isso não vai ser encontrado, mas, na verdade, há sempre caminhos para se chegar à fonte.”

Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley (1932)

(Foto: divulgação)

A história volta-se mais para a questão da tecnologia e como ela é usada para controlar a vida da população. As crianças são ensinadas, desde cedo, a não se aproximar de flores ou de livros. O Estado limita e censura a ciência e o pensamento crítico. “É como se a sensibilidade e o senso crítico fossem destruídos e apagados da sociedade. As pessoas têm uma sensação de bem-estar. Mas é para poucos, não para todos. Tem aqueles que vivem nesse admirável mundo novo, mas outros, como John Savage e sua mãe, vivem fora dele”, analisa Thiel. John lê Shakespeare. O controlador dessa sociedade também lê e tem uma biblioteca – mas a sociedade, em geral, não tem essa permissão. A sociedade é controlada, também, por meio de medicação e drogas. “Eles têm o soma, que, de uma certa maneira, encobre a dor ou qualquer angústia que tenham, dá uma falsa sensação de felicidade. Isso tem a ver com a contemporaneidade, infelizmente. As pessoas parecem preferir essa realidade de fantasia do que a verdade.”

Fahrenheit 451 – Ray Bradbury (1953)

(Foto: divulgação)

A obra trata do conhecimento e da ignorância. O autor constrói uma inversão do papel dos bombeiros: ao invés de apagar incêndios, eles incendeiam livros. Sempre que as pessoas ouvem sirenes, sabem que vai ter um incêndio e livros serão queimados. “São eles [os bombeiros] que controlam o conhecimento, no entanto, o chefe deles lê. Ele conhece, mas não permite que os outros conheçam. Os bombeiros destroem o conhecimento e promovem a ignorância. É uma sociedade sem questionamentos. Sem livros, a população tem acesso apenas a tecnologia e televisão. Para tentar salvar esse conhecimento, algumas pessoas decoram livros inteiros, de forma a assumirem a “identidade” deles – uma é A República, de Platão, outra é “Charles Darwin”, “Schopenhauer” e por aí vai. A ideia é manter as ideias vivas, personificadas. Dessa forma, se você vai “queimar uma ideia”, terá de queimar uma pessoa, o que dá toda uma nova dimensão alegórica ao enredo. “Tem tudo a ver com a nossa sociedade contemporânea. Veja quantos livros são esquecidos ou censurados por vários motivos, nas mais diversas culturas do mundo, porque atendem a interesses de uns e não de outros ou porque vão contra a ideologia de um certo grupo. É uma questão global”, defende. “O papel da literatura é sempre fazer pensar. Isso, infelizmente, incomoda. Fazer pensar é o que a literatura faz de melhor.”

Os Jetsons (1962)

(Foto: divulgação)

O caráter futurista do desenho animado começa por suas próprias características: foi o primeiro a cores a ser veiculado na emissora ABC. A família retratada na animação – George Jetson, sua esposa, Jane, os filhos, Elroy e Judy, e o cão espacial Astro – vivia no ano de 2062.

Viagens para a Lua: visitar a Lua era tão comum que, em um dos episódios, Elroy vai até lá em um passeio do seu grupo de escoteiros. Por aqui, ainda não é assim. No entanto, Elon Musk pretende mudar isso. O bilionário – que inflamou a corrida espacial novamente – trabalha para que, em breve, tripulações sejam enviadas para a Lua e Marte. Sua empresa de exploração aeroespacial, a SpaceX, está desenvolvendo a nave Starship para essa missão.

Relógio inteligente: no desenho animado, era comum George e Jane se comunicarem por meio de seus relógios de pulso, que realizam outras funções além de mostrar as horas. Se você lembrou dos nossos smartwatches, não foi à toa. Os relógios inteligentes já oferecem diversas ferramentas – e quem sabe, em um futuro próximo, também haverá a opção de videochamada, como na animação.

Assistente pessoal: na obra, Elroy recebia ajuda de um computador para fazer as atividades da escola. Ele falava o problema e a máquina respondia. Hoje, se você tem um smartphone, pode facilmente receber ajuda de assistentes virtuais, como a Siri ou a Alexa.

De Volta Para o Futuro (1985)

(Foto: divulgação)

Um dos filmes mais aclamados da cultura pop, a trilogia De Volta Para o Futuro previu várias tecnologias. Os personagens viajam para 2015.

Filmes 3D ou hologramas: em uma cena do segundo filme, o protagonista Marty McFly sofre um “ataque” de um tubarão holográfico perto de um cinema. Hoje, temos uma tecnologia acessível que simula essa interação com a realidade: os filmes 3D. Além disso, a própria holografia já foi usada em alguns momentos, como a simulação de artistas que faleceram em shows. Foi o caso do rapper Tupac, no Festival Coachella, em 2012, e de Cazuza, no Parque da Juventude, em 2013.

Óculos tecnológico: no filme, é mostrado o óculos multiuso, que faz ligações e possibilita assistir à TV. Hoje, contamos com tecnologias como o Google Glass e o HoloLens, que têm as mesmas funções. Os óculos de realidade virtual estão cada vez mais populares e oferecem uma experiência ainda mais imersiva.

Automóveis voadores: como em Os Jetsons, é nos objetos voadores que o filme erra a previsão. O famoso skate voador chegou a ser inspiração para o Hoverboard, um teste da marca Lexus, mas nunca chegou ao mercado. O miniscooter flutuante também ficou só na imaginação. O mais próximo que chegamos disso é o táxi voador eHang 216, que foi utilizado na China para ajudar no combate ao novo coronavírus, ao transportar medicamentos até um hospital de forma autônoma. A ideia é que possa transportar também pacientes, sem precisar de um piloto a bordo.

*Matéria originalmente publicada na edição #239 da revista TOPVIEW. 

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