SELF

O cidadão ilustre

Não é prudente aceitar que a arte está somente naquilo que se vê – é preciso enxergar o mundo de forma ampla e constante

“Não há nada mais classe Z do que quem só pensa na classe A.” Essa frase é do Caetano Veloso. Aprendi ela no livro Os Piores Textos de Washington Olivetto, do próprio W.O. A frase, por sua vez, me fez lembrar de um filme argentino que vi recentemente, chamado O Cidadão Ilustre, de Gastón Duprat, com o Oscar Martinez no elenco, que vem atuando tão bem quanto o já mais conhecido Ricardo Darín. No filme, um célebre escritor, que já vive em Barcelona há muito tempo, ganha um Nobel de literatura e retorna a Salas – sua cidade natal na Argentina – para ser agraciado como cidadão ilustre. Nessa viagem, o personagem se dá conta da mediocridade de seu povo. Enrustidos em fachadas de uma vida agradável, cada um de seus colegas de infância esconde uma vida hipócrita e mal vivida.

“Ao ato de se consumir arte com constância, dá-se o nome de ‘repertório’. (…) Sem ele, abre-se a porta da vida hipócrita e mal vivida (…)”

Fato é que a combinação de frase e filme me pareceu um bom ponto de partida para tratar do tema desta edição da TOPVIEW: “o significado da arte em nossas vidas.” É fácil enxergar a arte a partir da estética. Observa-se, admira-se e ponto. Fim de conversa. Só que a arte não pode ser vista assim. Não funciona dessa maneira. Ela é uma necessidade e deve ser consumida como água, deve correr em nosso corpo como o sangue, para atingir seu objetivo final – que é de nos livrar da mediocridade.

Ao ato de se consumir arte com constância, dá-se o nome de ‘repertório’. Nós evoluímos quando construímos repertório. Sem ele, abre-se a porta da vida hipócrita e mal vivida que aparece no filme relatado acima. Amo Curitiba de coração e tenho consciência de que é uma cidade que valoriza e consome a arte. Ainda assim, tenho um certo medo de que ela se torne um pouco como a cidade de Salas, no filme, porque sua elite econômica e cultural – que é a grande consumidora e propagadora da arte – tem uma forte tendência em só pensar na classe A.

Vivenciar a arte vai bem além dos museus e galerias. Vivenciar a arte significa caminhar em um bairro ao qual você nunca vai, mesmo que não seja o mais bonito. Significa conversar com gente nova, que não faça parte da sua realidade e do seu círculo social. Significa, ainda, ouvir uma música que não seja do seu estilo ou comer um prato que você nunca come, em um restaurante ao qual você nunca foi. Se não fizermos isso, tornamo-nos medíocres. Ainda bem que a arte está aí para nos salvar dessa cilada.

*Coluna originalmente publicada na edição #246 da revista TOPVIEW.

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