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Como é o amor nos tempos atuais? Um ensaio sobre Tinder e outros tipos de afeto

"Talvez a gente esteja caminhando rumo à descoberta de um novo tipo de afeto"

Meu nome é Vanessa e sou usuária de Tinder. Começou como brincadeira, para me integrar ao grupo de amigas brilhantes, independentes, lindas e solteiras com mais de trinta anos com que tenho a honra de conviver. Para conseguir algum tipo de emoção rápida, fortuita e descompromissada. Para me distrair. Não me considero dependente desses algoritmos, mas ainda não consegui deletar o aplicativo do meu celular. E ele segue ali, inerte na maior parte do tempo, mas prestes a gerar um pouco de adrenalina quando o tédio se joga sobre minha semana (ou mais precisamente nos meus finais de semana). E, admitamos, a vida é feita em sua maior parte da melancólica música do tédio (e fúria, dependendo dos astros). Mas só tive efetivamente duas experiências completas, que prefiro não comentar, menos para preservar a intimidade de um outro do que para evitar expor certo fracasso (sobre esse assunto, ler Cat Person, de Kristen Roupenian). O fato é que na maior parte das vezes não ultrapasso a fase da, falemos honestamente, objetificação, o que é de fato uma experiência estranha. Não somos criadas para reificar outros seres humanos. Somos feitas para chorar ouvindo o coro gospel no casamento do príncipe Harry, para acreditar numa possível velhice ao lado de um companheiro que, de tão perfeito, sempre terá a consideração de lavar os próprios pratos, ouvir nossas ideias com alguma atenção e, sorte grande, nos fazer gozar todas as vezes. Sou independente e também reconheço minhas necessidades menos sutis, mas sou mulher e, portanto, treinada para o afeto, para o cuidado. Não importam todos os anos  de uma árdua tentativa de desconstrução, eu não sei lidar muito bem com o julgamento veloz de uma foto no melhor ângulo que tenta dizer toda a complexidade de uma vida em segundos.

Por favor, me fale de você. E, de preferência, me faça rir. No lado direito, acumulei caras que em geral mantêm algo fora dos padrões: umas tatuagens, uns cabelos esquisitos, um bom humor na descrição, ajuda se tiver fotos em viagens fora de roteiros habituais ou alguma habilidade curiosa, como tomar um simples chope Brahma vestido de camiseta de banda (a despeito das choperias artesanais e camisas de times de futebol inglês ou o azul-clarinho do terno desfeito no happy hour). E boas vírgulas, elas contam muito também. No lado esquerdo, todos os demais. As mãos segurando volantes dos sedans, as anilhas num canto da sala da musculação da academia que frequentam na hora do almoço, as gravatas largas demais dos trajes das festas de casamento alheias, os peixes (sim, sempre os peixes). Sem contar as fotos com os filhos e, a esse respeito, prefiro não emitir opiniões. Ou seja, aqueles caras que entendem que um bom candidato a match é qualquer coisa entre alguém totalmente livre para carregar uma prancha de fim de semana e um bom salário que lhe permita o desprendimento de R$ 500 no direito de frequentar a área VIP da baladinha de sábado. São os que falam “baladinha”, “sextou”, “chopinho”, que frequentam lugares com deck e valet, os que listam exigências para o <3.

Mas compreendo, a oferta é tanta que devem ter uma ótima procura. Não sou o target, nada tenho a acrescentar. Mas os casos que tive neste meu tempo de solteira foram com pessoas com quem tivera certo contato. Preferi explorar terrenos que pareceram mais seguros, colorir algumas amizades, como se diz. Analisando agora essa escolha pelo que me pareceu mais confortável (soubesse eu!), entendi que de alguma maneira ainda acreditava numa espécie, frágil é verdade, de conexão, só assim haveria interesse, nem que conexão, nesse contrato de urgência, significasse qualquer conversa circular em que ninguém diz nada de profundo ou interessante na mesa de um boteco. Mas já era alguma coisa. Se conquistássemos uma memória em comum, pensava, meio caminho andado. Passávamos do silêncio cortante direto para a intimidade mais despida de constrangimentos. Mas constrangimentos sempre havia. O dia seguinte é esquisito porque nunca sei lidar muito bem com o prazo minúsculo desse quase afeto e da ligeira falta de atenção que se abate sobre um ser que, horas antes, procurou a camiseta no chão do meu quarto. E essas histórias se acumulam como os caracteres com que preenchemos o empreendimento do Zuckerberg. E, nesse excesso, somem. Se perdem. Nesse contexto, haveria o risco do amor? O amor, entendi, o amor é feito e desfeito de tempo.

Eu me apaixonei de verdade só uma vez na minha vida. E casei com essa pessoa. Mas passou. O tempo, o amor, ele já não era ele, eu não era eu. Não éramos mais, o que foi mais difícil de aceitar, um nós, e precisamos lidar com isso. Acabou de eu me compreender solteira no maravilhoso mundo das respostas instantâneas, da imagem com filtros, das selfies posadas. Calhou de eu me ver sozinha num contexto em que é difícil olhar nos olhos e conversar, apenas isso, conversar por horas sobre tudo aquilo que não registramos nos stories, tudo aquilo que não merece um like, que não há razão de ser compartilhado com mais ninguém a não ser por aquela pessoa que, por algum motivo incompreensível de início, mexeu com sua energia a ponto de te fazer piscar menos e guardar o celular no bolso. Talvez, sendo agora bem mais integrada que apocalíptica, a gente esteja caminhando rumo à descoberta de um novo tipo de afeto, talvez a gente aprenda a lidar com estas pequenas pílulas de amor e se satisfaça com isso.

“Talvez a gente esteja caminhando rumo à descoberta de um novo tipo de afeto, talvez a gente aprenda a lidar com estas pequenas pílulas de amor e  se satisfaça com isso”

A gente pare um pouco de tentar evitar o perigo das relações e viva esses rápidos encontros com muita intensidade para, no dia seguinte, voltar a estar aberta, e tudo recomece, e recomece, e recomece. E, no final da vida, esses frames formem todos juntos uma narrativa de que nos orgulhemos, porque estivemos de fato lá, inteiramente. Talvez tenha chegado a época de entender que estamos todos mais ou menos confusos e esgotados de tanto excesso, mas, ainda assim, e sempre, sozinhos. Como quando nascemos, como estaremos diante da morte. Como quando imaginamos o dia seguinte a este, que não compartilharemos. Talvez o amor seja apenas um texto. Memória.

*Matéria originalmente publicada por Vanessa C. Rodrigues na edição 212 da revista TOPVIEW

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