SELF

As novas masculinidades no século 21, por Cezar Tridapalli

O que acontece quando os papéis sociais já não são mais tão definidos e as possibilidades se abrem?

Sou filho, sou pai, sou homem.

Muitas palavras cabem nas três palavras acima.

Sou filho: minha mãe e meu pai vieram do interior, ela do Paraná nos anos de 1950, ele de Santa Catarina nos 1960. Ela, colônia alemã; ele, colônia italiana. Ela segue cuidando da casa; ele, hoje aposentado, trabalhava fora. Tem clichê maior sobre a formação de um menino-branco-hetero-cis-cristão-católico (a religião paterna prevaleceu) e que ainda frequentou colégio militar desde os 11 anos até ser oficial com 20? Isso formou meu modo de ser e ver o mundo? Sim e não. Rótulos colados na superfície escondem profundidades.

Abandonei a farda. E me despi dos fatos sobrenaturais da religião, seus fantasmas. Iniciei a vida adulta nessa transição: da estrela militar no ombro para um curso de Letras que me fez professor e escritor. De um devoto que se ajoelhava em novenas a alguém que busca a ética sem precisar de vigilância e punição. Não coloco nisso juízo de valor do tipo olha como evoluí, ou como me degenerei. Tomei rumo feito de circunstâncias misturadas com algum livre-arbítrio (Ortega y Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias”), experienciando a vida em suas teias objetivas e subjetivas.

Sou pai: meu pai e minha mãe tiveram dois filhos, uma menina mais velha e eu. Eu tenho dois filhos: uma menina mais velha e um menino. A história se repete? Espero que não como farsa nem como tragédia. Ela caminha em espiral, trazendo passados mas nunca coincidindo com eles, e mesmo que haja um incontornável diálogo entre mudanças genéticas e culturais, entre genes e memes (memes entendidos aqui como genes culturais, na acepção que se lê, por exemplo, em Richard Dawkins), é evidente que a mudança não se deu em níveis genéticos: algo mudou na cultura. Na minha infância eu brincava de carrinhos, bonecos belicosos, bola e outras brincadeiras consideradas de menino; hoje meu filho tem bonecos e bonecas, joga bola, se veste de Batman, gosta de fadas e de ver as unhas pintadas.

“Na minha infância eu brincava de carrinhos, bonecos belicosos, bola e outras brincadeiras consideradas de menino; hoje meu filho tem bonecos e bonecas, joga bola, se veste de Batman, gosta de fadas e de ver as unhas pintadas.”

Mudanças culturais, porém, não são a substituição de um modelo por outro. Ainda há pais e mães que maltratam e matam filhos meninos porque farejam neles uma feminilidade. No meio disso uma nova conduta brota como a flor no asfalto de que falava Drummond, em A Flor e a Náusea. Ainda que haja muita aridez, uma outra paisagem irrompe em condições de gerar pessoas com menos traumas e mais abertas para o outro – essa alteridade que nos diz quem somos. Torço para que as flores dominem, com sua delicadeza, valores cimentados na cultura patriarcal.

“Pessoas podem preferir o trabalho doméstico, pessoas podem querer trabalhar fora, pessoas podem pactuar acordos de fidelidade, pessoas podem ter dúvidas em relação à vida afetiva, pessoas podem viver a sexualidade à sua maneira, pessoas precisam cuidar dos filhos, pessoas podem brincar.”

Sou homem: trabalhei de forma assalariada durante 20 anos, sempre o ganho mais alto da casa. Em 2015, uma cisão: não vi mais sentido no que fazia, dividi-me entre o modelo carro-chefe-dono-da-grana e outro, já aceito pela teoria, mas hesitante na prática: menos trabalho formal, mais casa, menos dinheiro que a mulher, mais tempo com os filhos. Também mais brincadeiras (brincar é viver e simular vivências, é conferir, a partir de um olhar inaugural sobre a realidade, uma condição de existência). Também mais e outros tipos de cansaço. Dor e delícia, enfim. (Curiosidade: escrevo esse parágrafo e minha filha está ao meu lado lendo em voz alta a tarefa de casa, baseada na letra de Família, dos Titãs).

Automatizar conceitos traz vantagens, é até fundamental para a sobrevivência: se tenho nas mãos um livro nunca visto, ainda assim sei que é um livro. Se pedalo uma bicicleta diferente da minha, ainda assim sei que é uma bicicleta e saberei andar nela. Mas pensar, por exemplo, que apenas a mãe deve se ocupar das coisas da casa ou que meninos não podem curtir determinadas cores é uma automatização danosa, que nada tem de objetiva.

A masculinidade é uma dessas instâncias que passam por desautomatização, e as gerações atuais precisam saber sofrer com a desorientação e com o sentimento de perda da identidade – quando o que se perdeu foi apenas um tipo dela. Sem essa identidade associada ao machismo, uma outra pede passagem e, boa notícia, ela pode ajudar homens e mulheres de forma nunca vista antes. A mulher terá menos dificuldade de assumir o controle da vida pelo qual luta há tanto tempo, sem a exclusividade da jornada dupla, no caso de optar por ter filhos. O homem, menos pressionado pelas atribuições do chefe que tudo decide, pode descobrir um outro modo de existir, mais leve, sem se obrigar a inibir fragilidades. Nada a ver com a simples inversão de papéis, mas com a criação de acordos despidos dos conceitos automatizados.

Não se trata de dizer o que podem homens e o que podem mulheres, trata-se de dizer o que podem as pessoas, “de acordo com os acordos” estabelecidos entre elas.

“A masculinidade é uma dessas instâncias que passam por desautomatização, e as gerações atuais precisam saber sofrer com a desorientação e com o sentimento de perda da identidade – quando o que se perdeu foi apenas um tipo dela.”

Pessoas podem preferir o trabalho doméstico, pessoas podem querer trabalhar fora, pessoas podem pactuar acordos de fidelidade, pessoas podem ter dúvidas em relação à vida afetiva, pessoas podem viver a sexualidade à sua maneira, pessoas precisam cuidar dos filhos, pessoas podem brincar. Pessoas podem. Que isso não resvale na supremacia do eu e no egoísmo, na liquidez laissez-faire das relações (ou, se isso for um acordo, até pode), mas abra espaço para irmos além do sobreviver, além ainda do viver, para alcançarmos o conviver, o viver com, feito de espaço e tempo, com acordos e sem assédios. Enfim, talvez consigamos tecer feminilidades e masculinidades porosas à voz do outro, esse ser, como nós, cheio de desejos.

Assim como caminhar, viver é um jogo constante de equilíbrios e desequilíbrios. Para darmos passos precisamos nos lançar à frente, na vertigem da pequena queda livre.

Cezar Tridapalli é filho, é pai, é homem. Formado em Letras, especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens e mestre em Estudos Literários, é escritor, autor dos romances Pequena Biografia de Desejos e O Beijo de Schiller, vencedor do prêmio Minas Gerais de Literatura. cezartridapalli.com.br

*Matéria publicada originalmente por Cezar Tridapalli na edição 213 da revista TOPVIEW. 

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