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Natureza: uma volta para casa

As pessoas buscam mais a experiência do sagrado do que ouvir alguém falar de algo que não tem proximidade

Em uma manhã de sol, algumas pessoas se reúnem para uma cerimônia de conexão com Pachamama, a Mãe Terra. Enquanto uma fogueira esquenta as pedras que serão usadas, os participantes se encaminham para dentro da tenda onde será celebrada. Depois de todos entrarem, os condutores convidam as pedras, que são posicionadas no centro do círculo, depois entram as ervas e, por fim, a água. Então a pequena porta se fecha e o vapor que vem da água em contato com as pedras quentes preenchem o espaço junto com as vozes entoando cantos ameríndios.

A cerimônia representa a experiência do ventre da Pachamama, a origem de tudo. O temazcal, conhecido também como tenda sagrada, é um ritual de purificação do corpo e simboliza a possibilidade de um renascimento para si mesmo, um resgate da própria natureza humana. “É considerada uma cerimônia de origem, porque todos temos uma gestação e um nascimento – e tem essa mãe em comum, que é a vida na Terra e a natureza, que oferece tudo o que precisamos para viver”, explica Henrique Ressel, que, além de antropólogo e professor, é condutor de temazcais.

Henrique tem uma tenda para temazcal em seu quintal, em uma área urbana de Curitiba. (Foto: Henrique Ressel).

Há registros da realização dessas cerimônias há pelo menos 10 mil anos e era muito praticada pelos ameríndios, como os astecas, toltecas e maias. Durante a colonização, chegou a ser proibida, já que não condizia com a crença dos europeus. Mas continuou sendo realizada entre diferentes povos, todos baseados na mesma premissa de se ouvir e se conectar com a natureza. Com a fundação das primeiras igrejas nativa americanas, o ritual começa a se espalhar entre os não indígenas, chegando até o Brasil.

O wellness indo além de estar na floresta, mas, também, em ter uma conexão espiritual com ela. “O temazcal hoje faz parte de um grupo de práticas que estão num contexto amplo de resgate da natureza original e humana, a linguagem mais ampla de nova espiritualidade”, pontua Henrique. “Em termos de estudos sociais, vemos que hoje as pessoas buscam mais a experiência do sagrado do que ouvir alguém falar de algo que não tem proximidade. Entram aí as rodas de ayahuasca, temazcal, yoga… elas fazem parte de um mercado de atividades que buscam o wellness. É o bem estar visto como algo global, não apenas físico, mas mental e espiritual.”O ser humano muda a partir da necessidade, alega Henrique, e é justamente ela que impulsiona esse movimento de busca por conexão e entendimento do indivíduo no cosmos. “Nessa aceleração dos nossos tempos, perdemos a ‘medicina da natureza’ e tudo está cada vez mais artificial”, opina.

A experiência dentro da tenda é dividida em quatro etapas, marcadas pela abertura da porta ao final de cada uma (Foto: Henrique Ressel).

No Japão, cientistas indicam um “banho de floresta” como medicina preventiva e as matas como locais de tratamento. O médico imunologista e diretor da Sociedade Japonesa de Medicina Florestal, Qing Li, é um dos estudiosos e defensores da técnica shinrin-yoku. Ele investiga os efeitos da natureza para lidar com o estresse. Outro estudo, desta vez da China, realizado em 2017, na Universidade de Hong Kong, apontou que crianças muito jovens mostravam sinais de problemas de saúde mental. Uma das razões, acreditam os especialistas, diz respeito ao estilo de vida: eles estariam com “déficit de natureza”. O estudo conduzido pelo pesquisador Tanja Sobko foi publicado na revista PLOS ONE .

A cura que vem da natureza

A ayahuasca é outra “medicina da floresta” que tem recebido atenção no universo ritualístico das terapias alternativas. O chá, preparado e consumido como parte de rituais xamânicos, é feito a partir do cozi-mento de duas plantas da Floresta Amazônica: o cipó jagube ou mariri e as folhas da rainha ou chacrona. A bebida, de origem indígena, é muito procurada por conta de suas propriedades terapêuticas – e chegou a conquistar adeptos em Hollywood e no Vale do Silício. Entre eles, Lindsay Lohan, Sting e Paul Simon. Muitos que têm a experiência contam como o chá possibilitou a superação de traumas nunca vencidos de outras maneiras.A tradição, que era mantida entre povos indígenas, expandiu-se entre os não indígenas, que formaram outras doutrinas, como o Santo Daime, o Centro Espírita e Culto de Orações Casa de Jesus Fonte de Luz, as Barquinhas e a União do Vegetal. O chá tem efeito enteógeno, altera a consciência de quem o ingere.

“As pessoas buscam mais a experiência do sagrado do que ouvir alguém falar de algo que não tem proximidade. Entram aí as rodas de ayahuasca, temazcal, yoga… elas fazem parte de um mercado de atividades que buscam o wellness”

No Brasil, a ayahuasca é regulada e legalizada apenas para rituais religiosos, desde 2004. Ela é reconhecida juridicamente pela resolução número 5 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). O xamã Rudá Iandé começou a estudar espiritualidade aos 19 anos. Passou por tantas religiões que chegou a se perder no caminho – até se encontrar no xamanismo. Depois de muitos anos na floresta trabalhando com o lado tradicional da prática espiritual, hoje ele desenvolve ferramentas para lidar com o mundo moderno. “O estilo de vida que nós criamos está nos escravizando. O ser humano está cada vez mais focado em trabalho, desenvolver carreira, alcançar sucesso, realizar metas. É um caminho que não traz muita realização para a alma, exaure muito”, pontua. O objetivo do xamã é tirar as pessoas desse estado de “hipnose” para que se aproximem da própria essência. Em suas práticas, entre outras medicinas, utiliza o famoso chá. “O ayahuasca é uma medicina incrível, de uma tecnologia maravilhosa, porque te mostra o que você é em contraste com como você está. Te ajuda a sair desse estado de hipnose e experimentar um aspecto mais profundo e essencial do teu ser, te reconecta com a vida em si”, destaca.

O temazcal celebra também dois elementos sagrados: o fogo e a água. (Foto: Henrique Ressel).

Desde a década de 1990, o chá tem digo usado no tratamento da dependência e existem diversos estudos científicos acerca do tema e de usos terapêuticos da bebida. Brasil e Espanha conduzem estudos notáveis com a ayahuasca. Por outro lado, há preocupação com a matéria-prima. A reportagem “Os millennials e o comércio da espiritualidade estão destruindo a ayahuasca”, publicada pela VICE, aponta que a alta demanda local e internacional do chá colocou o cipó em risco de extinção e a triplicar seu preço.

As contestações

A série The Goop Lab, lançada este ano pela Netflix, trata da eficácia de terapias alternativas para doenças físicas e mentais. Antes mesmo de sua estreia, houve pedidos de cancelamento e muita discussão nas redes sociais pela trama discutir afirmações e procedimentos não comprovados cientificamente. Simon Stevens, diretor-executivo do serviço público de saúde britânico chegou a acusar a produção de disseminar “mitos” e “desinformação”, representando um “risco considerável à saúde” dos espectadores.

A Netflix argumento que há um aviso no seriado A ciência, de fato, não valida todas as práticas e rituais. Para Rudá, a máxima do “penso, logo existo”, que é seguida pela medicina, é limitada. “Nós temos uma medicina que é fantástica, mas ela se limita dentro de um espectro. Nas estruturas da nossa ciência nós condicionamos perceber e estudar o mundo somente a partir do nosso intelecto. Mas o intelecto é só um dos nossos elementos de cognição. Nós temos inteligência emocional, inteligência corporal, inteligência instintiva, infelizmente isso não é validado”, contrapõe.Ele ainda acrescenta que vê o xamanismo também como ciência, mas que abre espaço para outras nuances, como a intuição. “O xamanismo não é uma ciência para ser estudada a partir do intelecto. O xamã vai desenvolver outros sentidos e níveis de percepção e cognição”, argumenta.

Um novo mercado

Uma pesquisa divulgada no ano passado mostra que o mercado do melhoramento pessoal movimenta quase US$ 10 bilhões anualmente nos Estados Unidos. A estimativa é que o número ultrapasse os US$ 13 bilhões até 2022. Os dados são da Market Research.Essa é uma das críticas aos movimentos espirituais que cobram por seus serviços. Eles estariam criando um comércio da espiritualidade. O xamã vê nesse pensamento uma herança espírita de que qualquer coisa espiritual deve ser de graça. Mas, ao estarem inseridos em um sistema capitalista, quem oferece seu tempo nisso também precisa de dinheiro para sobreviver. “Para uma pessoa desenvolver um trabalho sério, que possa auxiliar no caminho da consciência e ter um impacto positivo sobre outro ser, vai precisar de recursos para se desenvolver, estudar e viver sua vida”, analisa. “Não é a espiritualidade em si que está em jogo. O autoconhecimento se tornou um mercado como tudo que existe hoje, porque esse é o sistema vigente e não se sobrevive sem se jogar esse jogo.”Mas não nega a existência de pessoas que tiram proveito da espiritualidade unicamente em benefício próprio. “Existem os xamãs verdadeiros e os charlatões. 

Um verdadeiro xamã não vai te curar, ele vai te mostrar a sua própria força e as suas próprias ferramentas para que você encontre sua saúde e o seu equilíbrio, essa é a diferença”, compara. A jornada xamânica com Rudá nos Lençóis Maranhenses custa R$12.000. O xamã descreve a experiência como “um retorno ao ritmo natural da vida e um mergulho na alma da natureza, um retiro para silenciarmos o nosso ser e realinharmos nosso pulsar com a sabedoria natural da Mãe Terra”.

“Não é a espiritualidade em si que está em jogo. O autoconhecimento se tornou um mercado como tudo que existe hoje, porque esse é o sistema vigente e não se sobrevive sem se jogar esse jogo.

Confira aqui a matéria completa: 

O retorno à natureza
A (in)sustentável leveza do ser
Cidades biofílicas e a natureza em contexto urbano
Da terra para o prato: a alimentação wellness

*Matéria originalmente publicada na edição 234 da revista TOPVIEW.

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