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Natalie Unterstell: Futuro do planeta

Confira a terceira parte da matéria principal "Vozes que pensam o amanhã", na edição 237 da revista

Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard (EUA) e estrategista de políticas públicas com passagem pelo governo do Amazonas e pelo Governo Federal.

O que a pandemia nos fez ver sobre o planeta e a nossa relação com ele?
Em nível planetário, a gente tem um desafio, que cada vez mais pessoas já compreendem, que é a questão de ter um futuro mais quente e instável, com o aquecimento global e os impactos da mudança do clima. É uma crise que não é aguda como a pandemia, por enquanto – é uma coisa mais crônica, um pouco mais devagar. Já vínhamos observando uma série de impactos e a aceleração disso, algo que a ciência já falava há 30 anos, mas que ainda estávamos tratando como algo para 2050, para o final do século. No entanto, nos últimos cinco anos, principalmente, a ciência começou a nos dar alertas muito mais graves, de que as soluções serão para a metade do século. Precisamos implementar um plano de descarbonização no mundo todo até 2030. É um problema público, coletivo. Todos os países terão que transformar sua economia e a gente não tem tempo a perder. Fiz todo esse contexto pré-pandemia porque, enquanto vivemos um momento como esse, em que temos tantas perdas – de amigos, de pessoas de que a gente gosta, das nossas rotinas –, começaram a surgir várias coisas na mídia, como “a natureza está se recuperando”, “a poluição diminuiu”, “as águas estão mais limpas”, “as emissões de carbono estão reduzidas nesse período”. Com isso, as pessoas podem começar a achar que a gente só vai conseguir fazer uma transição para um novo modo de vida, para um mundo de baixo carbono, se a gente passar pelo sacrifício. Esse é o ponto mais importante: quero dizer que não é assim. Porque, uma vez que a gente passe por esse período doloroso e ache que é só com tamanho sacrifício que a gente consegue fazer uma transformação positiva, o que vai acontecer no momento seguinte? A gente vai para o pior. É aquela coisa de quem nunca come doce, aí, quando come, se lambuza. Pode vir a ser uma coisa do tipo “vamos agora explodir em emissão, explodir em viajar, explodir em comer tudo o que pode”. Não quer dizer que tenhamos que parar tudo o que a gente faz, não é adotar um regime comunista e tampouco achar que é uma coisa incremental, que eu vou lá e digo “agora eu não como mais carne e o problema está resolvido”. É mais profundo.

As pessoas têm falado isso sobre o consumo, a exemplo do “revenge buying”, a compra por vingança, no pós-crise.
Existe na literatura científica o termo “poluição por vingança”. Isso acontece quando você tem um período de pausa da poluição, por conta de uma guerra ou de uma crise. Mas o que aconteceu um ou dois anos depois que retomamos a nossa atividade econômica? Ela [poluição] aumentou muito mais, porque as pessoas meio que se vingam. Acho que a gente tem que ser muito cuidadoso agora para não vender o sacrifício como a única maneira de fazer uma transição, porque não vai dar certo. Vai ser a chance de transformação perdida.

E como você acha que pode ser essa transformação?
Eu nunca acreditei que o sacrifício ou a dor serão [forças] mobilizadoras para o tamanho de transformação que a gente precisa fazer. Há vários aspectos dessa transformação que estão conectados com o que estamos vivendo agora. Uma transformação interessantíssima é a de consumir mais localmente, que há muito tempo falamos. Consumir mais dos produtores orgânicos locais, das pessoas que estão mais próximas. Isso que muitos de nós estamos experimentando pela primeira vez – outros já o faziam antes. É algo que pode ter um efeito muito legal não só para as economias, mas para nós mesmos. Saber de quem estamos comprando, qual a qualidade. Além de ser legal para o planeta, já que são fluxos mais diretos entre as pessoas e as empresas. Sou super a favor da globalização, mas acho que isso pode ser parte da globalização. A gente entrou em um modo de produção e consumo muito descartável. Agora estamos vivendo uma experiência mais de reuso, de contato.

Falando em globalização, como você vê a questão da mobilidade? Você, por exemplo, viaja bastante de avião.
Penso aqui em mobilidade não só no sentido de como a gente anda na nossa cidade, mas no de como nos transportamos de um lado para o outro. Eu viajo bastante, mas tinha uma solução, falava: “eu compenso as minhas emissões pagando por créditos de carbono.” Estava em campanha para mais pessoas adotarem isso. Achava que a gente nunca ia parar a indústria da aviação, mas que ela ia se transformar – e estava nesse caminho mesmo. Por um lado, muito bom. Em um país grande como o Brasil, viajar e estar em conexão com vários lugares é muito legal e importante. Mas teve o outro lado, o de que se tornou comum morar em uma cidade e trabalhar na outra – e sempre pegar um voo. [Ao mesmo tempo], a gente vinha em uma trajetória de digitalizar as nossas vidas. O próprio governo já estava nesse esforço. Mas agora não é mais um esforço, é norma. Então, para que eu vou para São Paulo fazer uma reunião de uma hora se eu tenho Zoom e trezentas outras ferramentas? Isso é uma potência gigante. Tenho um exemplo recente: tive uma reunião com o pessoal do Ministério do Meio Ambiente do Peru semana passada. Falamos de oportunidades na pandemia, o que eles vão fazer. Eles falaram que a oportunidade mais legal é que estão fazendo a transformação digital, que é passar tudo o que o governo faz para um meio digital melhorado. No Peru, existem muitos povos indígenas remotos e isolados e há um esforço no sentido de aumentar a capacidade de conexão dessas populações. É uma galera que nunca ia pegar um avião para ir até a capital do Peru para discutir por uma hora e voltar para casa. Então, o governo está com o objetivo de garantir a banda larga para eles e começar uma relação digital para assegurar que, quando tiver que implementar determinadas políticas, eles foram consultados. Temos que aproveitar
essa onda.

“Eu nunca acreditei que o sacrifício ou a dor serão [forças] mobilizadoras para o tamanho de transformação que a gente precisa fazer.”

Outros países têm relações diferentes com a natureza. No Equador, por exemplo, a natureza possui direitos.
Essa é outra grande oportunidade. Estou vendo movimentações inacreditáveis. Ninguém poderia acreditar, três meses atrás, se a gente contasse. Muitos países vão sair dessa pandemia com pacotes verdes de estímulos na economia. Vão despejar dinheiro público em coisas que já vão, nessa transição, fazer uma diferença brutal. Por
exemplo, nos transportes públicos, as empresas todas quebraram. Vou recuperar essas empresas comprando ônibus elétrico ou fazendo o que já era feito antes? Compro o elétrico e vou apostar em uma tecnologia mais interessante. São esses macroplanos. A China está com um plano que vai ser interessantíssimo. Eles estão preparando um pacotaço de alguns trilhões de dólares, o dobro dos Estados Unidos. A China vinha aumentando bastante o seu consumo de carne. O que estão discutindo agora é uma mudança na dieta, com planos bem sérios de apostar em uma dieta – e em uma economia – baseada em plantas. O tal do plant based. Se eles realmente adotarem essa medida, é uma guinada sensacional. Tem uma parte bem importante da relação com a natureza que é comer animais, é algo polêmico, porque os humanos comem animais há muito tempo. É difícil fazer uma conversa, é um tabu. Mas a gente está vendo uma mudança em relação ao consumo de animais silvestres, que estão totalmente ligados às pandemias. Ebola, AIDS – que daí não é o consumo, mas o contato –, agora a Covid-19. Esse é um ponto que cada vez mais vai ser o novo zeitgeist. E aí tem uma discussão mais
bonita, que é essa dos direitos da Pachamama, de como a gente passa a respeitar todos os seres vivos e não só achar que o homem é separado da natureza. Tem toda uma discussão filosófica de que somos todos Gaia. Somos mesmo. Acho que as pessoas estão pensando nisso. Acho que essa consciência coletiva sobre Gaia está
presente em todos nós – ou em boa parte de nós.

“Para realmente fazermos essa transição, precisamos conciliar nossa visão de longo prazo com as nossas decisões de hoje.”

Muita gente tem postado sobre como “a natureza está se curando” sem a presença das pessoas.
Às vezes, não é que os bichos não estavam antes lá, é a gente que não tinha tempo nem capacidade de perceber. Então, é aquela coisa: você nunca percebeu a natureza como está percebendo agora. Isso é maravilhoso. Mas não vamos exagerar e dizer que a natureza está se recuperando, sabe? Eu acho que a recuperação da natureza requer muito mais da gente do que só esse sacrifício momentâneo.

Qual é a maior barreira para virar essa chave?
O principal obstáculo é as pessoas adotarem uma perspectiva de longo prazo. Para realmente fazermos essa transição, precisamos conciliar nossa visão de longo prazo com as nossas decisões de hoje. Se não queremos ter novas pandemias, vamos ter que fazer certas transformações individuais e coletivas. Só que, para isso, temos que ter clareza do que estamos fazendo. Em geral, os governos e, principalmente os políticos, estão sempre pensando em curto prazo. Agora, o “curto prazismo” dos políticos é “como eu apareço na pandemia? Como faço coisas de que as pessoas vão lembrar depois?.” Muitos não estão preocupados com o longo prazo, eles querem simplesmente ter uma recompensa em curto prazo. E isso é muito ruim, porque, quanto menos a gente conciliar, piores vão ser as medidas adotadas. Ao mesmo tempo, temos visto bons exemplos. Eu citei a China, o Peru, a própria União Europeia. Eles estão discutindo coisas que podem nos dar um bem-estar mais duradouro. Espero que no Brasil a gente consiga fazer essa discussão. Acho que ainda não conseguimos porque tem uma crise política muito forte. A pandemia vai passar, a crise política, não sei. Mas vamos dar um jeito.

No Brasil, temos visto o aumento nos índices de desmatamento. É uma regressão na consciência ambiental?
O desmatamento tem duas principais questões. Uma, ele dobrou, aumentando 60% na pandemia. O que isso quer dizer? Quem desmata não está fazendo distanciamento social. Essas figuras praticam atividades ilegais, eles não têm consciência ambiental. A segunda razão é que a máquina, o trator com correntão que passa tirando todas as árvores da floresta, só vai ser desligado quando o presidente da república [Jair Bolsonaro] parar de
estimular o desmatamento. Ele continua estimulando. Nesta semana, estamos lidando com uma grande negociação no Congresso Nacional que também estimula. E não é gente pobre que desmata, tá? São grandes esquemas, é crime organizado. Só esse trator custa entre meio milhão e um milhão de reais. 60% do nosso território nacional é amazônico. A gente é muito mais amazônico do que lembramos no dia a dia. É meio engraçado, mas, quando a gente fala de proteger a floresta, estamos falando de combater a ilegalidade, de ser tão rígido contra crimes na Amazônia quanto a gente é contra crimes na política, sabe? É mais do que ambiental, é um problema de não aceitar. Não aceitar que madeireiros ilegais, garimpeiros ilegais, gente que rouba terra, continue a ser tratada como se estivesse tudo bem. Não, não está tudo bem.

Como você analisa a forma como o Governo vem tratando o meio ambiente?
O cenário é muito ruim, porque não houve qualquer mudança, do ponto de vista desse governo, para ajustar. A gente tem que lembrar que o [Jair] Bolsonaro falou coisas inacreditáveis sobre a Amazônia, os filhos também. Só para lembrar um exemplo, que me dá até um mal-estar de falar: ele disse que a Amazônia é como se fosse uma virgem, que um monte de tarados queriam… [preferiu não falar]. Ele não tem essa vivência, nem esse entendimento. Apesar de militar, ele nunca serviu lá. O que a gente pode fazer? Uma coisa muito importante,
independentemente se a pessoa votou no Bolsonaro ou não, é defender a Amazônia como 60% do seu país. Dizer: “olha, a gente não pode tolerar crimes praticados lá que acabam com a floresta e também arruínam o patrimônio público, porque é nosso.” Tem uma necessidade do próprio eleitorado [do Bolsonaro] se posicionar e falar: “olha, não dá. Ok? Não dá.” Outra questão superimportante é [acerca dos] dados sobre a Amazônia que são produzidos por instituições nacionais, desde 1988. No ano passado, as pessoas falavam: “ai, esse dado está errado, é mentira, porque é uma ONG.” Assim, vamos combinar uma coisa? Nós, brasileiros, temos o melhor sistema de monitoramento por satélite do mundo. Sabemos tudo o que está acontecendo na floresta. Vamos valorizar isso. Um terceiro ponto é valorizar coisas da floresta. Têm chegado em Curitiba, cada vez mais, produtos da Amazônia. Temos que dizer: “se a Amazônia é nossa, então cadê ela na nossa casa? Cadê ela no nosso armário e na nossa mesa?”

*Matéria originalmente publicada na edição #237 da revista TOPVIEW.

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