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Poesia de sororidade de Luci Collin

A sororidade pode ter diversos desdobramentos em atitudes do cotidiano. Uma delas é a intelectual. Por isso, conversamos com Luci Collin para entender porque consumir conteúdos de mulheres é praticá-la

A sororidade pode ter diversos desdobramentos em atitudes do cotidiano. Uma delas é a intelectual. Mas por que consumir conteúdos produzidos por mulheres é praticá-la? “A gente entende essas formas de expressão de uma mulher [enquanto escritora], que não é só para mulheres, mas que dá esse tratamento à condição da mulher, é uma forma de sororidade. É uma forma de estar com o outro, tentando criar uma condução amorosa para a reflexão de todos esses temas que envolvem estar no mundo enquanto mulher”, resume a escritora Luci Collin, que tem seus poemas publicados nesta matéria.

Ela descobriu isso após ver a análise de uma pesquisadora que fez um mestrado e um doutorado sobre sua obra. Ela mostrou que, em um corpus de 70 contos da autora, eram evidenciadas as formas de ser mulher, tema recorrente nos 30 anos de carreira de Luci. “É um ato de disponibilidade para que essa proximidade se estabeleça, para frequentar essa visão e experiência de mundo a partir das mulheres para todos e todas.”

Sororidade
Foto: Eva Ramos.

Outra razão para tal é transformar a invisibilidade que as mulheres sofreram por séculos, em que não podiam ter acesso à educação e muito menos publicar ou produzir obras de quaisquer estilos. Entra aí a empatia para perceber que lê-las hoje é apoiar a evolução de todas as mulheres nesse mercado. 

Nesse cenário, existe o movimento Leia Mulheres, um clube de leitura criado para incentivar a leitura de escritoras mulheres, visto a falta de espaço e credibilidade que elas sofrem. Em Curitiba, os encontros são mediados pela escritora e tradutora Emanuela Siqueira, indicada à Personalidade de Comunicação do Ano no Prêmio Personalidades Grupo RIC | TOPVIEW 2019.

“[Por isso] buscar se aproximar da literatura feita por mulheres, sem aquela necessidade de polarizar, mas amorosamente, em uma compreensão de que precisamos, sim, nos colocar nessa posição, disponíveis para conhecer novas autoras.”

Poemas selecionados de Luci Collin:

 
 
 
 
 
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NEOPAGÃ

de tudo em fases
volto donzela
força e origem
e venho ao mesmo tempo
mãe e velha
crescente redundante
evocação sedutora
círculo sobre círculo
proteção profecia
aquilo que transbordado
aquilo que acordo
cheia e imensa e depois
minguante anciã sabida
vendo-se miúda e infinda
− deusa tríplice −
vendo-se de volta fértil
símbolo de acrônico ventre
de uma luz sem intervalo
de um sopro que é só
movimento

LEIA TAMBÉM: Luci Collin: “A literatura nos coloca perante nossa própria existência”

RETRANSCRITA

como se fosse o último dia
esfregou o mármore da entrada
recolheu o lixo da festa
amontoou as folhas
escutou as sonatas completas
espanou os livros de cinologia
recitou o poema de cor
atravessou a rua com cuidado
tocou e dançou aquela valsa
comeu trufas
riu de uma andorinha e sem sentido
brincou com as conchas da praia
alimentou gansos
saiu para tomar ar fresco
conversou com o guarda-freios
deu muda de alfazema pra vizinha
inventou a pólvora
tirou uma sesta
desencardiu os candelabros
jogou damas com os desvalidos
escovou a pelagem dos cavalos
botou veneno para os ratos
cerziu a cortina da sala de visitas
colou o bibelô da cristaleira
regou as petúnias
preparou o molho da receita
velejou até o oceano glacial ártico
apagou a luz do abajur

subiu aos céus
para voltar amanhã
e redimir sua alma pardacenta
como se soubesse

UMA TARDE QUE CAI

Quando o vemos está sentado no banco da praça
Ela está em casa presa à trama silenciosa

Na praça pássaros e flores são sinceros
Na janela pássaros são fantasmagóricos

Com o lenço do bolso ele seca o suor da testa
Ela enxuga os olhos com a manga

Ele rosna mas só por dentro
Ela supura mas nunca aos domingos

Ele lastima porque o pão é azul

Ela suspira e a tarde muda se avelhanta

Ele pergunta se as janelas são sinceras
Ela pensa em se atirar nalguma água

São fantasmagóricos os azuis que saem dos olhos
A gangrena e a borra são absolutos

Quando o vemos está em frente à TV imaterial
Ela está de costas de bruços de borco

Ele está palitando os dentes à espera
Ela vazia

Ele está entardecente e flama
Ela boia sobre a água azulíssima

Ele tosse cospe resmunga lanceia vage
Ela fez as unhas e o bolo simples

A previsão do tempo anuncia chuva
Ela toca a pedra friíssima

Ele se ofende
Ela se ofélia

DE SE FAZER

quando desenlouqueceu
amélia por-se a queimar a comida
a adoçar a sopa
a ter vaidades ruidosas

queria dançar mazurcas
quadrilha tango burlesca
o que fosse o que desse

queria pintar-se alçar-se
exercer-se

viu sua cara no espelho
deu sua cara a bater

banhou-se perfumou-se
batizou-se

e tratou de aprumar
as asas que a vida lhe deu

aquilo sim é que era voo de verdade

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