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Fernanda Santos: Futuro do jornalismo

Confira a segunda parte da matéria principal "Vozes que pensam o amanhã", na edição 237 da revista

Jornalista brasileira, ex-editora do jornal The New York Times, professora da Arizona State University e autora do livro The Fire Line: The Story of the Granite Mountain Hotshots.

Qual é o papel do jornalismo hoje, em meio à crise?
Hoje, o jornalismo é mais importante do que nunca. Passamos por um desafio muito grande, que é a questão das fake news, que desmoralizam, minimizam o valor do trabalho do jornalista e põem dúvidas sobre as notícias. Isso é um grande problema, porque, hoje em dia, o que a gente precisa, para enfrentar essa pandemia, é de informação – para saber como se comportar, onde ir, onde não ir, como ir nesses lugares. Então, se você não tem uma população que, de modo geral, acredita no jornalista como uma fonte confiável de notícias, a pergunta se torna: “onde as pessoas vão obter as informações de que precisam para enfrentar, de maneira segura, o que estamos passando?” Não existe outra profissão (ou profissional) que possa preencher esse vácuo que não seja o jornalismo. É por meio do jornalista que a gente ouve os comunicados do Ministério da Saúde, que podemos ler uma matéria que combina a opinião de diferentes profissionais de saúde sobre a situação atual.

Temos visto ataques a jornalistas aqui no Brasil. Recentemente, um jornalista do Estadão foi atacado enquanto estava cobrindo uma manifestação em Brasília. Como você lê esse cenário?
O que está acontecendo no Brasil é o que acontece aqui [nos Estados Unidos]. Esse fenômeno não é novo. No Brasil, se exacerbou com a campanha, e depois a eleição, de Jair Bolsonaro, e aqui, nos Estados Unidos, exacerbou-se com a campanha e a eleição do presidente Donald Trump. Era uma situação que já existia e que
agora ficou ainda mais complicada, porque estamos vivendo uma crise na saúde pública mundial e esses protestos transformaram [a pandemia] em uma questão política. Saúde não tem partido político. O coronavírus não escolhe a pessoa de acordo com o partido político que ela apoia, a religião que ela segue, o time de futebol pelo qual ela torce. Então, quando você mistura esses dois assuntos, fica muito perigoso. Quando você faz do jornalista o seu alvo, considerando o jornalista como a pessoa que traz a notícia ruim, que está mudando o caráter da notícia por ter uma agenda, por ter um motivo diferente do que informar, você cria uma situação de muito perigo. As pessoas, então, vão confiar em quem? Vão aprender com quem?

Até porque o jornalista tem este compromisso com a verdade, né? Exatamente.
O fundamento do jornalismo está na verdade. A verdade, muitas vezes, tem diferentes interpretações. É normal você sair e falar com uma pessoa que encara essa verdade de uma maneira e com outra que encara diferente. Oferecer essas diferentes perspectivas é parte do jornalismo. Mas, no final das contas, toda matéria é feita a partir da perspectiva da verdade. Vamos reportar os fatos e como os fatos estão impactando a vida das pessoas.
Não tem como deturpar. O jornalista sério, que não é um propagandista, não vai se deixar influenciar por forças políticas. É por isso que os ataques acontecem. É porque as forças políticas não gostam do que o jornalista está reportando, mas não gostar da verdade não significa que a gente tem que escondê-la das pessoas.

Em maio, Jair Bolsonaro mandou um jornalista calar a boca em coletiva de imprensa e, em outras ocasiões, proferiu xingamentos ao jornal Folha de S.Paulo, o que gerou indignação por parte da imprensa. Por que um presidente age assim?
É uma estratégia política que foi usada não só pelo Bolsonaro como também pelo Trump aqui – e por outros líderes mais autoritários em outras partes do mundo. Se você retrata a imprensa como seu inimigo e como aquele que traz notícias falsas e tendenciosas para as pessoas e faz um segmento grande o suficiente da população acreditar nessa descrição, você, automaticamente, tem a capacidade de exercer um controle maior sobre esse segmento. Ou seja, se você está falando mal da Folha de S.Paulo, e os seus eleitores e as pessoas que estão aí te apoiando, acreditam em tudo o que você fala como presidente, então, a partir desse momento, eles não só não vão acreditar na Folha de S.Paulo como vão começar a falar mal dela também. O que obviamente enfraquece o jornal, porque, quanto mais pessoas falam mal e menos pessoas o assinam, por exemplo, mais difícil fica para o jornal sobreviver. No final das contas, é uma batalha pela sobrevivência do jornalismo sério, de qualidade, que sempre foi feito aí no Brasil por jornais como a Folha de S.Paulo. É uma estratégia puramente política. A melhor maneira de controlar o seu eleitorado é se tornar a única fonte confiável de notícias para ele. No entanto, como você pode confiar em um presidente que fala para as pessoas saírem na rua e irem trabalhar, que faz eventos em que ninguém usa máscaras, – e ele mesmo está apertando a mão das pessoas –, enquanto, no Brasil, o número de casos de coronavírus tem crescido exponencialmente? O interessante é que tanto os Estados Unidos quanto o Brasil são países que têm presidentes com uma postura muito parecida em relação à imprensa e à abertura da economia. É uma loteria e, nessa loteria, estão jogando com a vida das pessoas. É um jogo muito perigoso.

“Uma imprensa forte é o grande sinal de uma democracia bem estabelecida”

Vemos nesse cenário, também, a descrença da ciência e de suas indicações de isolamento social.
Isso vem exatamente do que eu estava falando. Se o controle da informação está nas mãos de uma pessoa que tem interesse em caracterizar o que está acontecendo de uma maneira que seja vantajosa para ela, então fica muito difícil de as pessoas saberem o que é verdade e o que não é. Se o cientista fala uma coisa que não é favorável, como os dois ministros da saúde no Brasil fizeram, o que acontece? Um foi demitido e o outro pediu demissão. Por quê? Porque eles falaram coisas que foram contra ao que o presidente tinha falado. Por essa razão, o presidente eliminou essa pessoa e vai botar outra, e outra, até que apareça um que diga exatamente o que ele quer dizer. Não é assim que a ciência funciona nem a verdade. Muito menos a democracia. Esse é um grande perigo, porque, no fundo, uma imprensa forte é o grande sinal de uma democracia bem estabelecida.
Em momentos como esse, no qual a ameaça à credibilidade da imprensa e sua viabilidade econômica é tão
grande, a grande preocupação é que o enfraquecimento da democracia seja tal que possamos sofrer consequências muito grandes. No Brasil, a democracia é muito recente. Uma democracia que não tem nem 40
anos ainda e já está sendo colocada à prova de volta. É um país que tem como vice-presidente um general.
Então, que tipo de mensagem isso passa para as pessoas?

Como podemos fortalecer o jornalismo nesse momento?
Primeiro de tudo, continuar fazendo um jornalismo sério, de qualidade. Seguir em frente. A ameaça das fake
news existe porque cada vez mais pessoas consomem as notícias pelas mídias sociais. Então, o jornalismo sério e os meios de comunicação têm que estar presentes nas mídias sociais. Têm que, cada vez mais, estarem participando dessa conversa nesse universo paralelo, para que possam, de certa forma, dar o contragolpe nas fake news. Hoje em dia, temos um problema muito sério, tanto aí no Brasil quanto aqui nos Estados Unidos: as pessoas têm uma capacidade muito pequena de reter a atenção em uma coisa. Essa geração do iPhone cresceu com a resposta imediata na ponta dos dedos. Com isso, o que acontece é que as pessoas estão perdendo, também, a capacidade de análise. Durante as eleições, nós vimos muito no Brasil, como aqui também, na época das eleições do Trump, uma quantidade enorme de fake news, que influenciaram a escolha de várias pessoas. Hoje, com a pandemia, temos que suspeitar mais do que a gente vê. Não acreditar de cara, não ler a manchete e repassar, parar e perguntar: “de onde veio? É possível? É plausível o que essa matéria está falando?” Da mesma
maneira que o Google responde rapidinho a pergunta “qual restaurante está aberto mais perto da minha casa?”, também pode responder “é verdade esse rumor?”

Você fez uma parte da sua carreira aí nos Estados Unidos, onde mora até hoje. Quais são as diferenças entre a imprensa brasileira e a norte-americana?
A grande diferença é que, no Brasil, os órgãos de imprensa dependem muito do governo para se sustentar. Em época de campanha, por exemplo, os jornais e canais de televisão ganhavam muito dinheiro. Só que o Bolsonaro introduziu uma maneira de fazer campanha totalmente diferente, esse universo paralelo por meio de
mídias sociais. Por essa razão, a imprensa se deu conta de que essa ideia de ganhar muito dinheiro durante as eleições, que talvez sustentasse as operações por algum tempo, já não ia ser algo com que pudessem contar.
Aqui, nos Estados Unidos, a dependência da mídia dos órgãos públicos é muito menor. Cada vez mais existe um mercado crescente de organizações jornalísticas e meios de comunicação sem fins lucrativos que estão sobrevivendo, basicamente, de assinaturas de pessoas que acreditam na missão deles e de dinheiro que recebem de fundações que trabalham para fortalecer a democracia. Ou até de organizações que trabalham para educar a população a respeito de seus direitos em relação à educação pública, por exemplo. Há um crescimento muito grande e uma fragmentação do mercado por meio desses meios de comunicação que exploram nichos. Existe um website, o The Marshall Project, por exemplo, que é sobre lei e justiça. Eles têm uma equipe mais enxuta, altamente qualificada e altamente conhecedora daqueles assuntos, e uma audiência mais fiel, porque está altamente interessada. Isso no Brasil ainda não ocorre muito. Aqui, existe muito mais independência na relação entre a mídia e o governo. Eu não estou falando de repórteres individuais, mas de algumas instituições que, no Brasil, foram contaminadas pela influência política. Seja atualmente, em canais de televisão que trabalham muito próximos à administração do presidente Bolsonaro, seja no passado, entre certos canais de televisão, jornais e revistas que também trabalharam muito próximos ao governo. A distância sempre tem que existir. A imprensa aqui nos Estados Unidos é conhecida como o quarto poder. Tem o poder legislativo, executivo, judiciário e a imprensa. Esses poderes não se misturam. Da mesma maneira como os poderes que definem a estrutura democrática de governo não se misturam – um existe para controlar o poder do outro –, a imprensa existe para observar o funcionamento desses três poderes, a reação da sociedade em relação às decisões que eles tomam e para relatar os fatos. Dessa forma, informar a população e permitir que ela possa tomar melhores decisões, seja se as pessoas devem sair ou não de máscaras de casa ou até em quem elas devem votar nas próximas eleições.

Você acha que os jornais têm que deixar seu posicionamento claro?
Todos os jornais têm um posicionamento claro, mas o problema é que muitas pessoas não conhecem o que compõe um jornal. O editorial é a visão institucional do jornal. O [norte-americano] New York Times, no qual trabalhei por 12 anos, é um jornal que tem uma posição mais liberal nas suas páginas editoriais. Isso não significa que a cobertura jornalística do dia a dia, feita pelos jornalistas empregados, seja, também, liberal. Os editoriais do Wall Street Journal são mais conservadores, mas isso não significa que os jornalistas que trabalham lá, fazendo a cobertura diária das notícias, sejam conservadores. Existe uma confusão muito grande e uma falta de educação [sobre isso]. A maior culpa disso é dos próprios jornais, que nunca educaram as suas audiências em relação às diferenças entre as seções do jornal. Se você lê a coluna da Miriam Leitão, é a opinião dela que está exposta nessa coluna, não é a opinião do jornal nem dos jornalistas que cobrem o governo ou a economia. Nos 12 anos de NYT, nunca, em nenhum momento, algum editor me pediu para fazer uma matéria de uma maneira ou de outra – eu sempre fui atrás da notícia.

“[Os ataques acontecem] porque as forças políticas não gostam do que o jornalista está reportando, mas não gostar da verdade não significa que a gente tem que escondê-la das pessoas.”

Com o distanciamento físico, nós, jornalistas, não podemos encontrar as pessoas para uma entrevista. Isso pode atrapalhar o desenvolvimento de uma reportagem? Como suprir?
Eu penso muito na minha relação com a minha família no Brasil. A minha família inteira está aí e eu já participei de vários aniversários e nascimentos, geralmente por WhatsApp. Da mesma maneira que eu me senti conectadas com ela, acredito que um jornalista pode fazer as conexões com as pessoas. É a mesma coisa? Não.
Mas, no momento, é a melhor opção que nós temos, então a gente tem mais é que se acostumar com essa situação e usá-la da melhor maneira possível para atingir o objetivo, que é poder entrar na vida das pessoas que estão sofrendo as consequências dessa pandemia e reportar para o mundo. Com meus estudantes de jornalismo narrativo, nós fizemos uma lista de diferentes estratégias para reportar quando você não pode estar presente. Uma das sugestões foi pedir para as fontes fazerem um vídeo delas mesmas falando como se sentem e o que está acontecendo. A maior qualidade do jornalista é saber se adaptar.

Como você tem conversado com seus alunos? Como tem preparado eles?
O que eu falo para eles é que tudo passa. As aulas, hoje virtuais, eventualmente vão voltar a ser em uma sala de aula. O mercado de trabalho, que está contraído, em algum momento, vai se abrir. A limitação do contato social que estamos vivendo hoje não vai ser para sempre. Esse é o momento de encarar os desafios como oportunidades. O que eu posso aprender? Quais são as ferramentas que eu posso incorporar a essa caixa de ferramentas de jornalismo que vão me fazer ainda mais valioso no futuro e mais atraente para um editor de jornal que esteja querendo contratar um novo redator? O jornalista deve,também, usar os desafios que está enfrentando como possíveis ideias para matérias. A vida é uma grande pauta.

*Matéria originalmente publicada na edição #237 da revista TOPVIEW.

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