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Carlos Ferreirinha: Futuro do luxo

Confira a quinta parte da matéria principal "Vozes que pensam o amanhã", na edição 237 da revista

Presidente e fundador da MCF Consultoria, especialista em mercado e gestão do luxo e líder da ABRAEL – Associação Brasileira das Marcas de Luxo.

Como você define luxo hoje?
Minha definição de luxo é sempre a mesma: é o posicionamento de produtos e serviços que alcançam o patamar da excepcionalidade, da exclusividade, da excelência por completo. Eu não acredito em mudanças de luxo. Na verdade, o que muda é o hábito de consumo – e não o luxo. O luxo é o mesmo que o petróleo e a gasolina: é uma atividade e continua sendo exatamente da mesma forma.

Como a pandemia impactou o setor?
Na verdade, o setor do luxo não é um setor sacro, que não sofre as situações. Eu tenho uma visão muito pragmática sobre a atividade do luxo: ele sofreu da mesma forma que sofreram todos os outros setores de atividades – a interrupção do fluxo de caixa, a queda brutal de consumo e de vendas, uma queda expressiva, principalmente em alguns setores, e, na Europa, o desaparecimento dos consumidores asiáticos, que são os mais importantes do mundo. O que o setor de luxo está sofrendo é exatamente o que estão sofrendo os restaurantes, bares e shopping centers. É uma interrupção por completo. Já se espera que, no volume da atividade, haja, no mínimo, 50% de queda para o final deste ano.

Especialistas falam sobre como esse momento, que, em tese, é de reflexão, está mudando a mentalidade dos consumidores. Como você acha que isso influencia o mercado de luxo?
Alguns consumidores serão mais conscientes, mas isso não é por causa da pandemia. A pandemia acelera um comportamento que já existia antes. Já existia um crescimento em relação à sustentabilidade, em relação à responsabilidade social de uma forma geral. A Covid-19 acelera esse comportamento. Eu não comungo da linha de muito do que está sendo colocado, em que parece que estamos entrando em um novo mundo de hábitos e consumo. Não acredito. Até porque parte das marcas de luxo explodiram de vender durante esse período no e-commerce – crescimento de 40, 50, 60%. Eu não acredito em ruptura de consumo. Alguns consumidores se tornam mais conscientes, outros continuam exatamente da mesma forma que estavam. O que eu vejo é que crescerá cada vez mais – e agora acelerada pela Covid – a possibilidade de um consumo que, possivelmente, torna-se mais consciente para uma série de pessoas. Eu vejo a pandemia como a aceleradora e não como a responsável por ter criado um novo mundo de possibilidades que a gente não tinha antes. Não é o início de algo que nós nunca tínhamos ouvido falar ou novo, pelo contrário, muitos indicadores já eram claros.

O André Carvalhal, grande divulgador de comportamentos de consumo e sustentabilidade, postou sobre o revenge buying, essa explosão de consumo por “vingança”, depois da abertura do comércio na China. Muitas pessoas ficaram chocadas. Você acha que aqui no Brasil a gente pode experienciar algo parecido?
O cenário é muito diferente. Nós vamos ter, sim, o revenge spending, que acontecerá em qualquer lugar do mundo. Não tem nenhuma condição de evitar isso, é muito tempo de confinamento. É apenas uma questão de consumo reprimido. Agora, nos volumes que se faz na Ásia, nunca. Nós não temos aquele potencial de consumo. Não temos aquele potencial médio de riqueza, a gente não vem crescendo nos últimos anos. A América Latina está em recessão, o Brasil está em recessão há quase seis anos. Eu acho que é utópico e ufanista quando eu ouço o André e tantos outros acreditarem que é quase um [caráter de] desespero das pessoas fazendo fila na Hermès. Fizeram fila antes e vão continuar fazendo agora. A gente tem que entender, claramente, em que ponto da cadeia nós estamos. A Hermès é uma empresa muito séria, de responsabilidade social e altíssima capacidade de reflexão mercadológica. O André, que tem um trabalho espetacular, comunga
de uma direção de consumo em que basicamente toda civilização humana tem que ir para um lado. Eu não acredito nisso. Quem vai fazer o revenge buying, que faça. Qual o problema? Não tem problema nenhum. A gente não tem que questionar o que os outros consomem. A gente tem que questionar outros códigos. Códigos de ética, morais. Nós não temos nenhum poder para saber se alguém que está consumindo demais também está sendo um excelente filantropo, se está fazendo projetos sociais responsáveis.

“Alguns consumidores serão mais conscientes, mas isso não é por causa da pandemia. A pandemia acelera um comportamento que já existia antes.”

Há setores que agora já estão crescendo muito nesse período, inclusive.
Muito, muito, muito. Decoração, imobiliário. A gente tem que entender o consumo de uma forma muito mais plena, ampla e com uma visão de mercado. Não com a minha visão individual. O que o Ferreirinha faria como consumidor não está em jogo. A parte do jogo é eu entender mercado. É totalmente diferente.

Você acha que teremos um mercado ainda mais global no futuro ou vamos voltar a valorizar o local?
Eu não tenho ufanismo nem utopia de aspectos nacionalizados. A gente tem que consumir aquilo que é bom. Se o que é bom está dentro do Brasil, maravilhoso. Temos que tomar um pouco de cuidado com isso, na minha visão, sempre de mercado, porque tem uma série de brasileiros que são amantes de moda brasileira, mas que, quando têm a chance de viajar, entram na Zara, na H&M, na Uniqlo, não há nenhuma culpa nisso. Eu não acredito que passará a ter um ufanismo, em que as pessoas só passarão a comprar produtos brasileiros. Em hipótese alguma. O que eu acredito é que nós teremos mais consumidores por mais tempo no Brasil, porque terão muito menos viagens internacionais nos próximos meses. Então existe uma chance muito boa de ter mais brasileiros consumindo produtos brasileiros. Outra vez, desde que sejam produtos ótimos. Ninguém vai decidir
sair comprando produtos que não estejam em um nível de competitividade excelente.

O Business of Fashion publicou um texto de opinião falando que o luxo não funciona no digital. Como você analisa isso?
Como alguém lança um relatório desse? Eu chego a ter um constrangimento. O luxo já fez a transformação para o digital há muito tempo, é só ver o case da Farfetch. A Farfetch é a líder global de venda online de luxo. O que as pessoas tentam [fazer é] levar é para uma questão meio épica, em que tudo tem que ser digital ou tudo tem que ser físico. Esses extremos chegam a ser constrangedores para mim. A Louis Vuitton já vende horrores no e-commerce há muitos anos. A Net-a-Porter foi uma das maiores operações digitais de luxo da história. Esse tipo de relatório que o luxo não fará… o luxo já fez. O que não acontecerá é tudo virar online. Mas nenhum setor vai ser totalmente online. Eu não tenho o perfil de polarização, de extremo, eu tenho um perfil de inteligência de mercado, em que existe oportunidade para todos.

Você vê outras tendências e movimentos que, possivelmente, vamos presenciar daqui para frente?
O movimento que será mais acentuado, que não é novo também, é o das marcas de luxo expressarem, de forma mais clara, as suas posturas de responsabilidade social. As marcas exercitarão, de forma mais contundente, a transparência sobre esses temas. Muitas delas já fazem trabalhos espetaculares, mas não é suficiente. Agora, eu vejo que elas deixarão mais claro quem elas são no seu papel social, na sua voz de responsabilidade social. Meu comentário pode parecer quase uma dicotomia, um paradoxo: eu não tenho nenhuma dúvida de que o sustentável vai continuar crescendo, mas ele vai crescer em um ritmo menor agora. É o contrário do que o André Carvalhal e outros estão dizendo. Mas por uma razão muito clara: porque as perdas são muito grandes. Criar projetos sustentáveis é muito oneroso. Agora, a regra número um das empresas é resolver o buraco que teve [com a pandemia]. Nos próximos meses, a principal preocupação de todas as empresas é vender estoque. Sobreviver. Qualquer investimento ou projeto que vinha sendo feito no sustentável será interrompido no volume de dinheiro, porque a prioridade agora é estancar o sangramento, que é muito forte.

“Agora, eu vejo que elas [marcas] deixarão mais claro quem elas são no seu papel social, na sua voz de responsabilidade social.”

*Matéria originalmente publicada na edição #237 da revista TOPVIEW.

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