Ele tem nas mãos – e na caracterização – o poder do sonho
“Um mito é uma máscara de Deus – uma metáfora daquilo que repousa por trás do mundo visível”, definiu Joseph Campbell no livro O Poder do Mito. Carlos Amazonas Azevedo sabe bem o poder que tem, como representante de um mito, ao desempenhar o papel de Papai Noel há quase 20 anos.
Neste ano, aos 55, ele está diariamente no shopping Crystal, no Batel. Por 12 anos, atuou na Casa do Papai Noel, em São José dos Pinhais. O funcionário público da prefeitura da cidade vizinha tira férias em dezembro para poder virar o bom velhinho. Deixa a barba crescer por seis meses, faz curso de dicção, atualiza-se sobre os brinquedos do momento. É um trabalho quase em tempo integral.
Azevedo até desenvolveu um método para se aproximar de crianças: vai com cuidado, não olha diretamente nos olhos, deixa que elas tomem a iniciativa. Ouve com cuidado tudo o que dizem e tenta entender ao invés de se impor. “Criança é puro sentimento”, filosofa.
Seu pai e seu avô já se vestiam de Papai Noel, tradição que Azevedo classifica como um “fantasma” que ronda a família. Nesta entrevista, ele respondeu às perguntas do mesmo jeito com que conversa com as crianças: atenciosa e cordialmente. Deixou algumas lágrimas escaparem ao relembrar situações emocionantes. E diz, com muita ênfase, que gostaria que as pessoas se lembrassem do papel que a fantasia e o sonho têm nas nossas vidas: “O ser humano sem fantasia vira um grão de areia. Sem sonho, não se tem nada”.
Quando o senhor descobriu que era um Papai Noel? Meu pai e meu avô já eram Papai Noel. É um “fantasma” que ronda a família. Mas me senti Papai Noel pela primeira vez quando me vesti assim para a minha filha, quando ela tinha dois anos [hoje tem 30]. Senti uma felicidade enorme ao visualizar nos olhos dela a alegria de ver o bom velhinho. É uma responsabilidade muito grande.
Por quê? Porque você representa todo o sonho da criança. Então fiz curso de Papai Noel, procurei aprender como falar com crianças, a entonação da voz… Não é só deixar a barba crescer. As crianças agora estão acostumadas a ver o Papai Noel na tela do tablet, da televisão e, quando o veem ao vivo, uma pessoa de carne e osso, levam um choque.
Como o senhor faz para se aproximar das crianças? Não pode ser ríspido, tem que se movimentar devagar, sempre deixar as mãos à mostra, abrir um sorriso. Eu pergunto algumas coisas, bato um papo, dou uma balinha. Tudo com criança é mais intenso, elas são puro sentimento.
Às vezes não dá certo? Acontece bastante de os pais terem uma ansiedade de levar o filho para ver o Papai Noel. Aí, quando chega, a criança se assusta e quer ir embora. O pai se frustra e até briga com a criança. Tem que ir com calma. Se não deu certo no primeiro dia, vai dar depois. Mas uma coisa que é ruim é transferir para o Papai Noel a responsabilidade de tirar o hábito de chupeta ou cobertor.
Tem muito disso? Sim. Eu pergunto para a criança “você está com dificuldade?” e digo que pode largar [o hábito] na hora em que se sentir feliz e segura. Às vezes, ela está com medo, como de dormir sozinha. Eu digo que também tinha medo. Ela se sente mais compreendida. Quando pergunto como ela está se comportando em casa, é bem comum dizerem “não estou obedecendo”. Eu digo para tentar ser melhor, sempre friso essa palavra: tentar.
É um trabalho difícil? Não. É a época mais linda do ano. Eu me preparo por seis, sete meses, cuidando da barba, da dicção, dos dentes… sei que estou representando um mito. Tenho que no mínimo fazer a criança sorrir.
Há quem diga que as crianças de hoje são impossíveis, mais mimadas. O senhor confirma essa impressão? A criança é o retrato dos pais. Se ela não recebe limites em casa, o mundo dará limites mais tarde. Há uma desvalorização até da conquista de ganhar um presente. Às vezes, um presente simples, mas de coração, é melhor do que 20 presentes.
Ainda há crianças boas? Todas são. Elas são o fruto do meio em que vivem. Fazem o que o lar ensina. Ou, se moram na rua, o que a rua ensina.
Qual foi o seu pior dia como Papai Noel? Não foi o pior, mas eu estava despreparado para uma resposta. Uma menina de uns quatro, cinco anos me disse que não queria brinquedo, mas que o pai saísse das drogas. Eu balancei. Disse que esse pedido o Papai Noel não podia ajudar do jeito que ela queria. Falei: “Hoje, nós dois vamos nos ajoelhar no cantinho da cama e pedir para que o Papai do Céu dê forças para o seu pai”. Disse a ela que o pai não tinha culpa, que isso acontece com muitas pessoas e que pode passar. Ela me abraçou bem forte. Às vezes, a criança desmonta a gente.
Há muitos pedidos assim? Sim. Que o pai volte para casa, que o pai não brigue mais com a mãe… uma vez, um menino de 12 anos pediu uma boneca. O pai perguntou o que ele pediu, ele disse que não podia falar, era assunto dele com o Papai Noel. A gente tem que respeitar a criança. Idosos vêm pedir paz, o fim da corrupção. Eu digo que a gente tem que orar.
E o melhor dia como Papai Noel? O Natal de 2015 foi o mais lindo da minha vida. Eu havia me preparado muito, mas naquele ano não fui chamado para trabalhar em lugar nenhum. Era noite de Natal, eu já tinha sido Papai Noel para os meus netos e fui para o banheiro para cortar a barba. Quando estava com a tesoura na mão, tocou meu celular. Perguntaram se poderia fazer o serviço baratinho. A moça no telefone disse que já tinha ligado para mais de 20 e ninguém podia. Era para visitar uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 24 horas. Eu falei “Guarde o dinheiro e compre umas uvas com ele, que eu faço de graça”.
E aí? O marido dela foi me buscar e fiz toda a UPA. Tinha uma ala de pacientes muito debilitados em que não se podia entrar, mas eu quis. Quando abri a porta, vi uma senhora chorando. Ela me viu e seu rosto se iluminou. “Você veio?”, ela perguntou. Eu disse: “Sim, você me chamou”. Ela disse que precisava de um milagre, que o filho de 21 anos com Aids não queria mais comer. Eu sentei do seu lado, ele começou a sorrir. Dei a comida do potinho de colher e ele comeu. Eu me emocionei na hora como me emociono, hoje, contando [enxuga as lágrimas]. Eu falei no ouvido do menino: “Você tem que comer por sua mãe. Queria que você ficasse com coragem até o último minuto, por ela”. Ele falou: “Eu vou”. E sentou na cama. Me abraçou. Apertava minha mão bem forte. A gente desejou feliz Natal um ao outro. Eu saí de lá flutuando. Minha filha foi me buscar e falou: “Você se preparou o ano inteiro, não teve trabalho, mas era para este momento”. Não soube o que aconteceu com eles, mas senti que eu tinha que ter feito aquilo.
O senhor é Papai Noel na sua família? Sim, todo ano. A minha esposa transforma a nossa casa na casa do Papai Noel, faz toda a decoração.
Seus filhos e netos sabem que o senhor é Papai Noel? Tenho três filhos e sete netos. Eles sabem, acompanham-me onde vou trabalhar. Quando eles encontram outro Papai Noel, olham embaixo da barba para ver se é de verdade. Aí dizem: “Não é o vovô”. Quando eles nasceram, eu já era Papai Noel, então não acham estranho.
Por que alguém acredita em Papai Noel? É a fantasia. O ser humano sem fantasia vira um grão de areia. Sem sonho, não se tem nada. E por que se deixa de acreditar? As pessoas se esquecem do que os sonhos são feitos. Eles são feitos de amor.
A gente esquece o amor? Quando você deixa de amar e ser amado, deixa de acreditar nas coisas simples, de valorizar quem está ao lado. A família é quem vive ao seu lado, nos momentos bons e ruins, mesmo se não for de sangue. O que vale no Natal não é o champanhe ou o banquete, é a companhia, é estar junto e entregar amor. A gente tinha que dizer mais “eu te amo”.
O mundo está precisando de fantasia? Sim. Porque as pessoas vão ver um filme de super-herói? Elas querem ver um mundo em que as coisas se realizam.
Se o senhor pudesse dar um presente a todas as pessoas, o que seria? A verdade. As pessoas vestem máscaras no trabalho, com a família, os amigos. Ser verdadeiro, respeitar e ser respeitado: é isso o que vai mudar o mundo.
Como o senhor se prepara para ser o Papai Noel? Cuido da saúde: faço caminhada, cuido da alimentação, da respiração… e começo a olhar os brinquedos nas lojas, ver quais são os desenhos que estão passando, o que as crianças querem. Eu adoro brinquedo, entro no mercado e vou direto para a seção. Tenho coleções em casa, principalmente de bonecos de super-heróis.
O senhor comentou que fez uma cirurgia bariátrica. As pessoas dizem: “que Papai Noel magro!” Mas eu sou alegre, fitness e com saúde. Também sou cantor, todo domingo canto, às 14h e às 17h [no shopping Crystal], músicas do Elvis, de quem sou fã, e de Natal. Como é cultivar a barba o ano inteiro? Ela cresce rápido. No dia 26, eu já corto, porque minha esposa não gosta. Depois, deixo crescer por seis meses antes do Natal.
O que o senhor pediria ao Papai Noel? Paz. É o que precisamos.
*Matéria escrita por Amanda Audi e publicada originalmente na edição 21 do TOPVIEW Journal.