Os limites da beleza: a perfeição existe?
Na Grécia antiga, a beleza era uma dádiva. Quem recebia esse presente dos deuses era, logo de cara, considerado uma pessoa perfeita – já que um exterior bonito representava um interior ainda melhor. Era algo tão importante que ganhou uma palavra no dicionário: kaloskagathos, o que é bonito de se ver. Com musas como Afrodite, a deusa do amor, as mulheres gregas eram especialistas nas artes do embelezamento e da maquiagem. Já os homens podiam passar até oito horas por dia na academia.
Com o passar dos séculos, os padrões do que é considerado bonito mudaram diversas vezes. Mas ainda hoje a busca por ser belo se mantém presente em nossa sociedade. A beleza tem um sentido marcado por um determinado período histórico, como explica Marcelo Moraes e Silva, professor do curso de Educação Física da UFPR e especialista em história do corpo.
“Os objetos sempre vão determinar essa história pra gente. Beleza é marcada com a utilidade de um tempo”, contextualiza. Hoje, por exemplo, vivemos a exaltação da juventude. “Vivemos numa sociedade que tem horror à velhice. Por isso, a todo momento vemos impulsos para rejuvenescer”, reflete.
A exaltação da beleza pode ter um efeito contrário, contribuir para o desenvolvimento de uma feiúra “imaginária”. É a chamada síndrome dismórfica corporal, que consiste na percepção exagerada de aspectos do corpo, ou parte dele, que não é real. “Pode ser sutil ou até inexistente, mas o paciente tem uma imagem distorcida que compromete funções afetivas, sociais e até profissionais”, explica a cirurgiã plástica Beatriz Lassance, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. “É como se a vida girasse em torno daquele aspecto.”
É difícil estabelecer uma causa, mas o transtorno está ligado à uma cobrança social, frustração e sentimentos de não-aceitação ou pertencimento por um grupo. Os sintomas passam pela atenção excessiva e distorção de algo sutil ou que não existe e pelo body checking, o ato de checar o corpo de forma repetitiva – olhar-se no espelho ou pesar-se, por exemplo. “A preocupação é tão grande, que afeta funções sociais, [a vida] afetiva ou profissional”, aponta a cirurgiã.
A influenciadora e ex-BBB Rafa Kalimann sentiu na pele a luta para ver seu próprio corpo de verdade, como contou, em entrevista à Universa, neste ano.
“Tinha uma imagem completamente distorcida do meu corpo, ainda que não tenha chegado a um nível preocupante de saúde. (…) Mais tarde, comecei a terapia, porque percebi que nada do que eu fizesse, seja dieta ou lipoaspiração, me traria autoestima ou amor-próprio”, relembra.
Casos de distorção de imagem são comuns em consultório, pontua o cirurgião plástico Paolo Rubez, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. “É importante o médico estar atento, porque o tratamento disso não vai ser a cirurgia. A pessoa precisa de ajuda psicológica, porque por mais que ela faça os procedimentos, ela estará sempre insatisfeita. É importante diagnosticar isso antes de fazer qualquer coisa.”
Para Lassance, que também é membro da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), as mídias sociais têm forte impacto na maneira como as pessoas olham para si mesmas.
“As mídias sociais com seus filtros propagam uma ideia que não existe. Pele impecável, pessoas magras, ricas e felizes o tempo todo, o que pode contribuir para um sentimento de inferioridade, uma comparação cruel com pessoas que não existem”, ressalta.
As mudanças na relação com o corpo
Abaixo, traçamos um panorama histórico das principais mudanças acerca das relações com o corpo.
A partir do século 18
O espartilho é o primeiro mecanismo que atua externamente no corpo, a primeira grande forma de modelá-lo. “O padrão deixa de ser as madames rechonchudas do Renascimento para ter essa intervenção extra na modelagem do corpo”, conta Moraes.
Final do século 18, início do 19
Com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, na Europa, os sentidos mudam: o corpo passa a ser mais valorizado e outras preocupações surgem. Neste período, emergiram as ginásticas.
“É um movimento de não usar mais espartilho – mas sim agir diretamente sobre o corpo. Há uma preocupação com a silhueta e com a alimentação”, ressalta. No século 19 começa a se propagar a ideia de beleza como sinônimo de saúde.
Final do século 19, início do 20
No Brasil, as pessoas mais abastadas começam a se preocupar com exercício físico. Criam salões e clubes. É neste período que há o pontapé no mercado da beleza. A mídia impressa vai difundir esse movimento, os ideais de uma vida ativa. “As pessoas com maior poder aquisitivo começam a ditar os padrões – e isso se torna o padrão corporal da época”, reforça.
Anos 20 e 30 no Brasil
A beleza passa a ser muito valorizada pela vida ativa – não mais pelo ócio. Nascem as principais revistas, e são cada vez mais especializadas. “No plano político, entramos no Estado Novo. É um momento de ruptura em que se rompe com o tradicionalismo”, analisa. No livro História da beleza no Brasil, a autora Denise Santana aponta três imperativos que surgem nesta época:
1. Rejuvenescimento: uma ideia de que precisamos buscar parecer jovens na aparência.
2. Urgência: essa necessidade é urgente. Além de ter uma aparência jovem, é preciso fazê-lo de maneira rápida.
3. Distinção: as pessoas buscam as duas opções acima porque isso as distingue das demais, a ideia de se tornar único. “É uma ideia de se tornar diferente se tornando igual”, comenta Moraes.
A realidade editada
“É comum as pacientes trazerem a imagem com filtro [do Instagram] e pedirem pra ficar parecido com aquele resultado” – Paolo Rubez
Antes, eram capas de revistas que tinham forte influência nos ideais de beleza. Hoje, o Instagram pulverizou esse papel. Neste espaço virtual, coexistem diversos movimentos ao mesmo tempo, entre eles o discurso da aceitação do próprio corpo, visto em hashtags como a body positivity, e, na contramão, a normalização dos procedimentos estéticos, com inspirações nos contornos de Kylie Jenner – lábios aumentados, nariz afinado, foxy eyes e bichectomia. As características típicas dos retoques feitos pelos filtros no Instagram.
O celular tornou-se um espelho disponível em mãos 24 horas por dia. Em um momento em que o mundo virou digital, a tendência é se enxergar ainda mais através das telas. Mas os filtros têm ultrapassado a imagem computadorizada e impactado os rostos reais? Rubez, que também é membro da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), tem percebido em seu consultório que sim.
Desde o início da pandemia, o cirurgião notou um aumento significativo na procura por procedimentos faciais, especialmente a rinoplastia. O perfil continua o mesmo: maioria mulheres jovens, entre 18 e 40 anos, mas o foco agora é o rosto.
“É comum as pacientes trazerem a imagem com filtro [do Instagram] e pedirem pra ficar parecido com aquele resultado. Tem o fato de que querem se sentir confortáveis em postar fotos e vídeos nas redes sociais, como todos fazem”, reflete.
Sair bem em fotos foi a motivação de 55% dos pacientes para realizar cirurgias plásticas, segundo dados de 2017 da Academia Americana de Plástica Facial e Cirurgia Reconstrutiva (AAFPRS). Nem sempre é possível chegar no resultado criado por uma imagem computadorizada. “Podemos aproveitar o filtro para entender a expectativa do paciente, mas uma coisa é manipular uma imagem, outra é conseguir reproduzir isso no corpo, depende de como o corpo vai responder, da cicatrização – não é a mesma coisa.”
Os procedimentos estéticos não cirúrgicos também despontaram. Entre 2014 e 2016, a procura por eles cresceu 390%, segundo dados da SBCP. No Censo anterior da instituição, de 2014, representavam 17,4% dos procedimentos realizados – em 2016 já eram 47,5% do total.
A nova campanha da Dove propõe a ideia de uma “selfie reversa”. No vídeo, vemos a foto de uma mulher adulta em um aplicativo de edição, com lábios carnudos, cabelos alisados, nariz fino e maquiagem marcante. Aos poucos, enquanto as cenas voltam no tempo, vemos as edições sendo apagadas e ela voltando ao seu rosto natural – ainda jovem e sem as intervenções criadas virtualmente.
O objetivo é mostrar a ilusão criada pelas imagens editadas em redes sociais – e como a busca por esse padrão inalcançável pode levar adolescentes a ter uma baixa autoestima. Estudos já têm mostrado os reflexos disso. Uma pesquisa realizada pela Royal Society for Public Health, do Reino Unido, mostra que as redes sociais são mais viciantes do que álcool e cigarro. E, de todas, o Instagram é a mais prejudicial à saúde mental dos jovens. Mostra ainda que a postagem de fotos na rede social afeta negativamente a autoimagem e o sono, além de gerar o FOMO (Fear of Missing Out), o medo de ficar de fora das novidades.
O que fazer?
A cirurgiã plástica Beatriz Lassance ressalta que é importante fazer o melhor por você. “Tratar a si mesma da forma como trataria uma amiga”, resume. Para isso, há três pilares da auto compaixão:
1. Troque frases como: “como estou gorda e feia” ou “como sou burra e desastrada”, por: “só engordei um pouco” ou “imagina, acontece, vamos limpar, eu te ajudo”;
2. Coloque as coisas na devida proporção: “foram apenas os ovos que caíram no chão, isso não faz ninguém burro ou desastrado”;
3. Aplique a humanidade compartilha ou o “quem nunca”: quem não engordou um pouco na pandemia? Quem nunca deixou os ovos caírem no chão?
4. Em casos nos quais o distúrbio causa diminuição de funções, um psiquiatra deve ser procurado.
As cirurgias plásticas
“Não quero dizer que é totalmente errado fazer cirurgia plástica, mas tem que pesquisar muito e pensar se realmente quer e precisa daquilo” – Sarah Cardoso
O número de pessoas que fizeram cirurgias plásticas estéticas no Brasil entre 2009 e 2018 dobrou. Foi de pouco menos de 500 mil em 2009 para mais de um milhão uma década mais tarde, de acordo com dados da SBCP. Foi em 2019 que a modelo e influenciadora Sarah Cardoso, 28, decidiu fazer uma rinoplastia. “Sempre trabalhei como modelo e geralmente quando fazia foto, colocava photoshop no meu nariz – de frente achava ele meio gordinho, só queria dar uma afinadinha, coisa simples”, conta.
Na época, já tinha silicone, e ao pesquisar sobre o novo procedimento, não achou nada que apontasse aspectos negativos da cirurgia – “parecia uma coisa muito fácil de fazer, duas amigas fizeram na mesma época, e eu fui na mesma médica.” Foi o começo de uma saga que ainda não terminou.
“A cirurgia no nariz é uma das piores, porque ela muda completamente seu rosto, você não se reconhece. Você olha no espelho e se pergunta: quem é você?”, analisa.
Ao sair do consultório, após a primeira rinoplastia, percebeu que algo estava errado: seu nariz havia ficado assimétrico e com uma ponta que não tinha antes. Desde então, foram seis cirurgias. O processo envolveu erros da primeira médica, infecção pós-cirúrgica, desvio de septo, dificuldades para respirar, e precisou usar enxerto das costelas e da boca. Agora, acompanha os resultados da última cirurgia para que possa fazer um – tão esperado – último procedimento para fechar um buraco no nariz.
“Não sabia dos riscos, não sabia o que podia dar errado. Jamais imaginei que isso poderia acontecer na minha vida”, conta. “O problema é que não tem muito alerta na Internet, só tem gente falando de cirurgia que deu certo.” Foi para alertar outras pessoas que decidiu mostrar a situação em seu perfil no Instagram. O vídeo em que conta a história já tem mais de 1,2 milhões de visualizações.
Seu objetivo não é se posicionar contra as intervenções, mas a favor da ponderação. “Não quero dizer que é totalmente errado fazer cirurgia plástica, não acho errado buscar melhorar, mas tem que pesquisar muito e pensar se realmente quer e precisa daquilo”, avalia. “Meu papel é ajudar as pessoas mostrando o que aconteceu comigo para que não aconteça com mais ninguém.”
Repensando as intervenções
Assim que acordou da anestesia, ainda na maca do hospital, a artista e empresária Karla Keiko, 32, sentiu o peso das próteses de silicone e percebeu que havia se arrependido. Tudo aconteceu muito rápido: a curitibana morava fora e, durante uma visita à cidade, foi levada de surpresa a um cirurgião – e no quarto dia da viagem, estava operada.
Na primeira cirurgia perdeu a sensibilidade do mamilo e, oito meses depois, as próteses caíram. “Tive várias crises, mas não falei para ninguém. Ninguém fala, as pessoas têm vergonha. Meu peito estava quase no meu umbigo, mas levei meses para conseguir falar para alguém da minha família”, relembra.
Decidiu operar a segunda vez, para diminuir o tamanho da prótese. Queria o menor tamanho possível, mas o médico insistia que ficaria melhor com mais. Keiko pediu 200ml, mas acordou com a notícia de que o cirurgião tinha decidido colocar 300ml. “Quando sentei na cama, sabia que ia fazer a terceira [cirurgia]. [O processo] é só uma venda, não existe uma triagem psicológica. Temos que ter uma legislação, em que o médico assine um documento em que se compromete com o que você quer”, defende.
Ao entrar em contato com outras mulheres e discutir sobre o tema, percebeu que não estava sozinha. “Quando eu reclamava, diziam para eu parar, porque estava linda. Eu estava linda, mas apodrecendo por dentro. Ninguém me ouvia, mas elas me ouviram pela primeira vez”, conta. “Eu achava que era louca de não gostar das próteses e não gostar de ser hipersexualizada. É horrível.” A cirurgia de retirada completa das próteses veio sete anos depois da segunda, em 2017.
A história de Keiko foi precursora de um movimento que tem crescido: o de explante do silicone. Personalidades da mídia, como a estilista britânica Victoria Beckham e a artista plástica brasileira Monica Benini realizaram o procedimento. Monica contou que foi incentivada a colocar as próteses por sua booker na época em que era modelo, mas não foi algo que lhe fez bem.
“Parece que ganhei um sopro de vida novo. Me reencontrei. Nosso corpo é nosso templo. Alterar as nossas formas é muito forte”, relatou, em seu Instagram.
Para Keiko, o explante foi um alívio. “Quando sentei na maca, só de não sentir aquele peso, fiquei muito feliz. Passei oito anos carregando 600ml dentro do meu corpo, me sentia carregando um peso inútil. Mas até hoje eu penso que queria meu corpo de volta, meu peito de volta. Não só pela cicatriz, mas pela agressão que a gente faz ao nosso corpo sem propósito.” A artista chegou a produzir um documentário sobre o tema. “As pessoas estão tentando comprar confiança e amor-próprio, e estão colocando a saúde em risco.”
Os relatos têm impulsionado os questionamentos – muitos deles relacionados à Síndrome Asia. O cirurgião plástico Mário Farinazzo, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), sentiu isso no consultório. Entre os sintomas mais comuns da doença autoimune, estão dor no corpo, dor de cabeça, fraqueza e mal-estar.
“É, na verdade, uma reação do próprio corpo à presença de um corpo estranho. Não pode-se demonizar a cirurgia [de prótese de silicone], mas é uma doença que existe. Tem mulheres que retiram a prótese e têm uma melhora”, observa.
O médico, que também é chefe do setor de rinologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), explica que há predisposição em pessoas com doenças reumatológicas, “nas quais o corpo tem uma hiper reação contra o próprio organismo.” A SBCP, em comunicado, afirma que a relação entre a síndrome e doenças reumatológicas ainda é inconclusiva. Não há dados disponíveis sobre a ocorrência da Ásia.
A procura pelo aumento das mamas representou 22,5% do total de cirurgias plásticas em 2014. Em 2018, nos dados mais recentes da SBCP, caiu para 18,8%. Há outras razões para mulheres optarem pelo explante ou troca, como o endurecimento da prótese, no geral após 10 anos de utilização.
Para você entender mais sobre o assunto
História da beleza no Brasil: Denise Berzunni de Sant’Anna – Editora Contexto
As metamorfoses do gordo: Georges Virgarello – Editora Vozes
*Matéria originalmente publicada na edição 249 da revista TOPVIEW.