O sonho de Vicky
Julinha tinha nove anos de idade e um sonho para dar de presente aos pais: não pedir mais dinheiro para o lanche na hora do recreio no colégio de burgueses em que estudava. Ela não era da turma dos que vinham com lancheiras chiques, compradas em viagens aos Estados Unidos, em férias passadas com a família, seja na Disney ou no Vale Nevado. Vicky tampouco entendia por que era diferente das outras meninas; afinal, estavam no mesmo lugar, debaixo do mesmo céu, na mesma cidade e com os mesmos hábitos: acordar, dormir, comer, brincar. Tinham “quase” as mesmas dúvidas durante as aulas, suspiravam pelos mesmos meninos bonitos, mantinham a admiração pelas mesmas professoras e “quase” as mesmas vontades de crescer um dia para poderem ser livres. Eu disse “quase”. Vicky queria mesmo era ser como a mãe da Julinha. A mulher chegava para buscar a filha em uma moto potente, descia dela com jeans rasgados, cabelos soltos, sorridente, e bastava assobiar para que a menina saísse correndo para subir na garupa e cair fora.
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A coleguinha contava que trabalhava as tardes com a mãe, uma confeiteira, uma mágica fazedora de bolos fornecidos aos estabelecimentos públicos para serem degustados na hora do café da tarde. E Vicky tinha esse sonho: fazer bolos, andar de moto e, principalmente, ser livre e ter seu próprio dinheiro. Ela sabia que pedir aos pais o dinheiro para o lanche desencadearia uma briga entre eles. A mãe culpava o pai por não terem dinheiro suficiente para proporcionar à filha o mesmo que “as outras” tinham. O pai, por sua vez, fazia o discurso reverso: não queria que sua filha fosse igual às “outras”, principalmente porque, naquela escola — segundo ele — ninguém era flor que se cheirasse. Quase todos os pais ali não tinham moral alguma para estarem onde estavam. Eram trambiqueiros, filhos de papai, playboys, um salseiro só, e a filha só estudava lá porque a madrinha havia oferecido os estudos.
Realmente, o nível escolar era alto, mas, em resumo, eles não eram do mesmo nível econômico e social, e a menina sofria gravemente com isso. O pai não curtia. Repetindo: ela não entendia por que estava no mesmo lugar, mas não tinha as mesmas coisas.
Um dia, na saída da escola, a mãe de Julinha chegou a pé. A moto quebrou no caminho. Vicky estava plantada, sentada nas escadas frias de azulejo, esperando a própria mãe. Atrasada, a mãe mandou uma vizinha avisar que estava presa no trabalho. A mãe da moto, vendo a cena, veio acompanhá-la e começaram a conversar: queria saber como ela se sentia na escola, já que a filha reclamava que não se sentia à vontade no meio das outras meninas. Vicky confessou que ela também não. Sentia-se envergonhada por não ter o lanche, por não ter as bolsas de carregar os livros, por não ter as canetinhas coloridas que cintilavam no escuro. A mãe da moto disse: “Filha, isso é assim mesmo, uns têm e outros não têm. Sabe o que você pode fazer para se sentir melhor? Crie um mundo seu. Eu aprendi a fazer meus bolos com a sua idade porque eu queria levar algo diferente para comer na escola. E veja só: cresci assim. Hoje dou de comer e estudo a meus filhos com essa minha ideia de criança.”
Agitada, Vicky voltou para casa, abriu um livro de receitas da avó, buscou o mel na despensa e começou a fazer as balas. No outro dia, antes de ir para a escola, passou em frente à padaria e as ofereceu ao proprietário. Ele, achando engraçadinho, comprou todo o estoque da menina. Assim, começou seu primeiro negócio. Nunca mais pediu dinheiro aos pais para o lanche. Nunca mais tampouco quis lanchar igual às outras meninas. Guardou todo o dinheiro para oferecer uma máquina de costura à mãe, que sonhava em abrir o próprio negócio, mas não podia trabalhar fora porque precisava cuidar da casa, dos filhos e do marido. Dali nasceram muitos vestidos lindos. A mãe virou a costureira mais badalada da cidade e ela, bem, foi muito mais além, sempre sabendo que adoçar a vida dos outros é uma bela maneira de se ganhar a vida, seja fazendo bolo, balas de mel ou vendendo alegria em forma de arte. É naif, mas vale o sonho de inovar para ser feliz. Só por isso vale e muito.
*Matéria originalmente publicada na edição #301 da TOPVIEW