SELF

Profissão: artista

Os desafios e a luta da classe pela valorização da arte como profissão no Brasil

“Imaginar o cenário da cultura em 2020 é pensar que, até lá, o povo brasileiro terá maior acesso à cultura e que o país responderá criativamente aos desafios [impostos na área] de nosso tempo”, imaginava o texto introdutório da 3ª edição de As Metas do Plano Nacional de Cultura (PNC), um projeto que estabelece objetivos, ações e metas a serem atingidas em dez anos no setor cultural brasileiro. As 53 metas, aprovadas em 2011, entretanto, não previam um vírus de escala global e as consequências drásticas trazidas por ele.

Integrado por artistas, o setor cultural também reúne profissões essenciais à arte, como costureiras, figurinistas, eletricistas, técnicos e uma pluralidade de mãos que trabalham juntas para o sucesso do grand finale. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o número total de pessoas empregadas no segmento era de 7,1 milhões em dezembro de 2019, uma queda de 12,2%, se comparado ao mês de junho de 2020 – quando foram registrados 6,2 milhões de trabalhadores.

Da publicação das metas do PNC para cá, a luta da classe artística caminha em direção “à luz no fim do túnel”. Isso acontece, ironicamente, como consequência da pandemia do coronavírus, afinal, por trás das produções cinematográficas, músicas, leituras e atividades buscadas como distração durante o isolamento social, existem profissionais que não deixaram de trabalhar por aquilo que escolheram: a arte.

Um desenvolvimento cultural e econômico atrasado no Brasil – em relação aos países mais antigos, que já passaram por cenários como o que vivemos hoje – é o motivo pelo qual há diferença na valorização da arte, segundo o professor de Pintura e Desenho da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Geraldo Leão. “Em um país novo como o nosso, em que tudo está sendo construído ainda, inclusive a identidade, isso [a valorização da arte] ainda não é muito claro para muita gente”, comenta. Para ele, essa ação deve ser implementada ainda cedo, por meio da educação. “Não tem outro jeito. A dança não é entendida da mesma maneira por um especialista e por quem não entende nada. Esse acesso aos códigos específicos da dança e da arte depende da escola, da educação. (…) não é mágico, não é natural. É cultural, é algo aprendido”, defende.

Quanto vale um artista? 

No livro “Por que os artistas são pobres?”, o autor Hans Abbing presume, como artista, que a baixa renda se deve ao baixo consumo, alegando que “as pessoas não estão suficientemente interessadas na arte”. Por outro lado, como economista, observa que a noção de “subconsumo” desaparece, levando em consideração o aumento do consumo em outros nichos. O cenário da remuneração para artistas ainda é a maior dificuldade para atuar na profissão no Brasil. “É por isso que muitos bailarinos resolvem sair do país, porque lá [no exterior] as oportunidades são bem maiores. Lá, grupos de dança já recebem [salários], não só as companhias. Aqui no Brasil, nem as companhias conseguem manter seus bailarinos profissionais recebendo”, relata a diretora e coreógrafa Eliane Fetzer, há 13 anos dona de uma escola de dança curitibana que leva seu nome.

Fetzer conta que, por pouco, não viu as portas de sua escola quase se fecharem devido à crise econômica causada pela perda de quase 70% dos alunos, que cancelaram as aulas diante da pandemia. Segundo ela, a maior dificuldade de viver da arte – além das questões financeiras – é fazer com que ela seja valorizada e acessível a todos. “A arte está aqui para influenciar, questionar e para colocá-lo(a) em um lugar de pensamento, seja ele filosófico ou não, mas para que você consiga se articular como ser humano. Eu não vejo o Brasil enxergando a arte e a cultura em si como a gente vê todas as artes”, opina.

(Foto: Carol Lancelloti)

Julia Meirelles, professora de dança e bailarina profissional há 15 anos, compartilha do mesmo sentimento: “acredito que uma minoria ame ou valorize a arte. Aqui, as pessoas não vão ao teatro com frequência, não apreciam a arte nem mesmo pelas redes sociais.” A maior indignação, para ela, vem por parte das pessoas que respondem “só isso?” quando lhe perguntam qual profissão exerce. “A arte salva vidas, assim como um médico em uma mesa de cirurgia. A cultura precisa mudar no país para que nós, artistas, possamos fazer a nossa parte e ser valorizados.”

O músico Fernando Ferreira, 28 anos, trabalha nessa área desde os 15 anos de idade. Atualmente, afirma que a maior dificuldade encontrada na profissão é a falta de espaço e apoio por parte do governo e da sociedade, que, de acordo com ele, não enxerga viver da música como uma profissão. “Com a pandemia, tive todas as dificuldades possíveis: as casas noturnas foram todas fechadas e, assim, cancelados todos os trabalhos que já estavam marcados. O que me deixa mais triste é ver somente os músicos sem trabalhar, mas ruas, bares, postos e shoppings lotados”, conta.

O novo olhar para a arte 

No início da quarentena, em março do ano passado, as pessoas se depararam com o ócio, com o isolamento, com um vazio que foi, aos poucos, preenchido com arte. Apesar da atividade ter sido prejudicada com o isolamento, já que artistas trabalham diretamente com público, a superintendente-geral de Cultura do estado do Paraná, Luciana Pereira, acredita que, do outro lado, houve uma valorização grande por parte de quem, diante do caos, encontrou conforto na arte. 

“Existe uma associação do ‘fazedor’ de arte, do trabalhador de cultura como um hobby e não, isso é uma profissão. Quando nós tivemos a pandemia, houve uma percepção do público de que o artista tem isso como profissão (…) as pessoas conseguiram enxergar que o artista não deixou de fazer um hobby, ele deixou de comer”, pontua Luciana.

Membro da International Biennial Association (IBA), a superintendente enxerga 2020 como um divisor de águas na classe artística, devido à grande mobilização dos profissionais, dos gestores de cultura e, até mesmo, do público, que se sensibilizou com a situação dos artistas na pandemia. O conselho de cultura, que, normalmente, reúne-se quatro vezes por ano, esteve presente em 28 encontros no ano passado. “Houve uma construção, um entendimento e uma percepção da classe, de toda a cadeia artística. Houve um amadurecimento muito grande, tanto de políticas públicas quanto de necessidades, e um mapeamento que nós não tínhamos.”

(Foto: Carol Lancelloti)

Como medida emergencial aos profissionais do setor cultural, responsável por 2,5% do PIB brasileiro, o Governo Federal sancionou a Lei Aldir Blanc e distribuiu R$3 bilhões para estados e municípios, que repassaram aos profissionais por meio de um cadastro em edital. São projetos como esse e como a Lei Rouanet que ajudam na sobrevivência dos artistas, afirma a coreógrafa Eliane Fetzer. “A gente vai fazendo isso [se inscrevendo em editais] para que o artista não seja vendido para fora e para que a gente consiga manter ele aqui, vivo, trabalhando com a arte.”

“A união, a sensibilidade, essa quebra de barreiras, a troca de informações, a quantidade de reflexão com todos esses encontros e esse banho histórico e coletivo, mudou o perfil, mudou a nossa forma de enxergar, mudou em termos de números e foi um choque superintensivo de debates e questionamentos que tivemos. Agora nós temos material para trabalhar mais assertivamente”, afirma a superintendente Luciana Pereira.

Leão destaca que a missão como artista e como categoria é cobrar que o governo, cada vez mais, crie possibilidades para que os artistas vivam do trabalho. “O que a gente faz tem muitas facetas. É difícil e apaixonante pelo mesmo motivo.” 

*Matéria originalmente publicada na edição #246 da revista TOPVIEW.

Deixe um comentário