Vera Miraglia: a “anja” do magistério
No momento em que entrei pela portinha que dá acesso à escola Anjo da Guarda, em Curitiba, fui transportada a um passado especial. O cheiro do material escolar no ar, o balcão da secretaria e os educadores circulando em um ambiente pequeno e confortável – diferente dos impessoais saguões dos grandes colégios – me levaram de volta a outra escolinha: a que estudei dos 6 aos 13 anos, onde me sentia acolhida e segura. Fui até lá para conhecer Vera Miraglia, a educadora à frente do Anjo da Guarda há mais de 50 anos e cujas trajetórias pessoal e profissional têm se entrelaçado ao longo do tempo.
Sorridente, Vera me recebe com um bom abraço – desses que só mãezonas e professoras dedicadas têm pra dar. Ela é uma dessas pessoas que emanam cuidados e proteção. Pudera, dedica-se ao desenvolvimento de gente desde os 15 anos, quando dava aulas particulares no Rio de Janeiro, sua cidade natal.
Quando se mudou para Curitiba acompanhando o marido – então engenheiro de estradas – foi convidada já na maternidade, onde dera à luz ao segundo filho, para assumir um jardim de infância com apenas quatro alunos. Aceitou o desafio trazendo junto a filosofia de uma família de educadores. Além da avó, que era dona do colégio Jacobina (um dos renovadores da educação nacional naquele tempo), a tia fora colega de ninguém menos que Jean Piaget. Só a menção desse nome faz os olhos de Vera brilharem. Piaget, talvez o nome mais influente no campo da educação a partir da segunda metade do século 20, criou uma teoria de que o professor não deve pensar no que a criança é, mas no que ela pode se tornar. O método procura instigar a curiosidade, já que o aluno é levado a encontrar as respostas a partir de seus próprios conhecimentos e de sua interação com a realidade e com os colegas. Vera e sua família pareciam estar bastante comprometidas com isso. Como quando ela fala do aluno que ia mal nos estudos, mas que melhorou depois que seu pai, a pedido dela, passou a dedicar um tempo da semana para jogar com o filho.
De quatro alunos, o jardim de infância foi crescendo e estabeleceu-se como um local de desenvolvimento humano na linha construtivista. Convencer a tradicional Curitiba a acolher a ideia não foi tão difícil, mas demandou trabalho. “O padre queria fazer uma escola socialmente bem aceita, então teve a ideia de fazer um desfile de moda com as crianças”, diz Vera gargalhando. “Eu disse ‘olha seu padre, minha ideia é valorizar o interior das crianças e não sua aparência’.” Deu certo. Por volta de 1970, a escola passaria a oferecer o 1º grau inteiro e assim continua hoje, desde o maternal até o 9º ano com o nome Anjo da Guarda – não só porque esse é um símbolo de proteção, mas porque “anjos têm asas e podem voar por outros mundos, conhecer novas pessoas, ter novas experiências. Os homens também, se lhes derem condições”. Por isso ela acredita que a Educação vai salvar o mundo.
Vera procura conhecer cada uma das crianças que educa e esse relacionamento proporciona a liga que ela diz ser necessária para uma boa relação entre todos. “Outro dia dei uma bronca num pai que foi meu aluno”, lembra. “Disse a ele que estava feliz com seu sucesso profissional, mas que ele precisava passar mais tempo com o filho.” O pai acolheu o conselho com respeito. Mas aí termina a intervenção. O resto ela deixa para a família resolver em casa.
Tantas vidas passam por Vera no dia a dia, que ela descansa só fazendo artesanato. Por uma hora, todos os dias, ela pinta caixas e brinquedos de madeira, e os vende na feirinha do Largo da Ordem desde 1977, porque gosta do burburinho e de estar em contato com pessoas diferentes.
Quando termino a entrevista, arrisco-me e perguntar uma coisa que me intriga há anos: por que aparece no muro da escola, na Rua 13 de Maio, um anjo fazendo a lição e uma criança observando? Não deveria ser o contrário? Ela acha divertido e revela quem foi o autor: seu filho, Flavio, quando era pequeno. “Para ele, o anjo da guarda era aquele que protegia ajudando a fazer a lição.” Não importa que pareça que os personagens estão com papéis trocados. O que importa é que Flavio pode se expressar e não foi tolhido. E fez o que Vera mais gosta e respeita nas crianças: uma interpretação bárbara e inesperada.
TOP VIEW – O que mais a atrai nas crianças?
VERA MIRAGLIA – O inesperado. A gente quase sempre sabe o que uma pessoa velha vai responder. Com crianças é o contrário. Elas podem responder coisas incríveis se você der oportunidade. E para trabalhar com conhecimento é preciso observá-las muito. Teorias são importantes, mas o conhecimento das crianças é fundamental na Educação.
TV – Hoje as crianças se atualizam muito rápido. Como acompanhar isso?
VM – Da mesma forma que me esforço para acompanhar as modificações, eles também aceitam as minhas deficiências. Aprendi com a idade a contribuir com experiência, mas também a pedir e aceitar a ajuda. Ninguém é dono da verdade e eu preciso da sua ideia para desenvolver a minha.
TV – Mas e os alunos que não pesquisam mais nos livros e só copiam e colam informações da internet para fazer um trabalho escolar?
VM – Pensamos que eles estão aprendendo muito mais rápido, mas não. Estão pulando etapas de aprendizagem. Precisamos colocar a internet como um dos recursos de pesquisa, mas também apresentar outros canais como revistas e livros. A tecnologia é mais um degrau para facilitar o aprendizado. Só recomendo que ela não substitua nada, mas que acrescente.
TV – E o celular na sala de aula?
VM – Isso é uma praga social. Não se pode fiscalizar o tempo todo, e eles são mais espertos que nós. O que temos que fazer é mostrar que podem usar o celular em todos os lugares, mas que se usarem na aula estarão perdendo uma oportunidade única.
TV – As crianças e adolescentes de hoje são pessoas com muito mais traquejo online do que pessoal. O que a senhora acha disso?
VM – O contato pessoal é indispensável. Temos que demonstrar isso no dia a dia. Por exemplo, avisamos pelo celular que o professor vai dar consultoria na sala tal, mas tem que ir lá pessoalmente. Em vez de mostrar que o celular é um empecilho, você o usa para chegar perto.
TV – Adiar ou antecipar ao máximo a entrada na escola?
VM – Uma pessoinha de dois ou três anos precisa se relacionar com a mãe e ter a oportunidade de construir o seu mundinho antes de disputar espaço com outras crianças. Para mim, quatro anos seria o ideal para se entrar na escola. É quando a criança já teve a oportunidade de construir uma relação com um adulto e depois pode dividir essa experiência com outros. Mas isso é minha posição pessoal. Eu tenho um maternal aqui porque a condição social do Brasil exige e porque é mais seguro colocar o filho num berçário do que deixá-lo com alguém que não se conhece bem. Todos trabalham e a licença-maternidade é curta. Deveria ser como na Alemanha, que é de dois anos.
TV – Hoje vemos uma geração de pais carregando culpa por trabalhar demais e presenteando os filhos com muitos brinquedos. Estamos criando crianças muito mimadas?
VM – Um pai que não dá o brinquedo, mas que tem meia hora de contato pessoal com o filho por dia, mostrando o quanto ele é querido, está ganhando uma ligação fantástica com ele. Assim ele mostra ao filho que ele não precisa de tantas coisas para ser feliz.
TV – Qual seu lugar preferido na escola?
VM – É o jardim, onde os Curupiras, o clube de alunos defensores da natureza, se reúne. Ali, no recreio, eles acompanham o plantio e o desenvolvimento de plantas e às vezes levam alguma para casa para cuidar.
3 comentários em “Vera Miraglia: a “anja” do magistério”
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
boa tarde!
somente uma correção.. o nome do filho é Fabio.
Sou testemunha dessa “anja” na vida dos meus filhos, hoje adolescentes e homens na essência, são frutos dessa educação. Sou grata, pela vida da Vera!!!!
Como mãe de ex-aluno, aprendi a admirar a Vera e sua escola, adotando sua filosofia de educação também em casa. Com todas as influências, às vezes adversas, vindas de todos os lados, acho que conseguimos contribuir positivamente na formação de um homem íntegro, responsável, amoroso e que, agora, tenta fazer o mesmo com sua filha. Tomara que a minha netinha venha a fazer parte do Anjo da Guarda, uma escola de todos os tempos!