Como os imperadores, também podemos ficar loucos
Sempre é tempo de rever conceitos e opiniões – e até de reescrever a História. A reportagem “Calígula, tido como o mais cruel imperador, é redimido em biografia”, publicada em março pela revista Veja, mostra uma faceta desse fenômeno. Nela, Raquel Carneiro analisa a recém-lançada obra Caligula: the Mad Emperor of Rome (Calígula: o Imperador Louco de Roma, ainda inédita no Brasil), do historiador australiano Stephen Dando-Collins, que tenta desmistificar muitas imagens errôneas que temos sobre o emblemático romano. A jornalista também traça um paralelo entre ele e outros grandes nomes históricos, como o imperador Constantino, que foi responsável pela adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano e sobre o qual muitos esquecem os malfeitos e honram as vitórias.
O imperador Tibério aniquilou a família de Calígula e o levou para Capri para viver em sua companhia e fazê-lo seu sucessor. Calígula era seu sobrinho-neto e tinha 19 anos. Para não sucumbir como seus pais e irmãos, para suportar as violências sexuais e psicológicas impostas pelo tio, e para conviver com os absurdos da corte, teve que exercitar a arte da dissimulação. Fingia seu pendor pela crueldade, seu gosto pelo exagero e sua necessidade por prazeres baixos e vulgares. Vivia em ansiedade, atormentado pela insônia, uma vez que não dormia mais que três horas por noite. Tinha medo de tempestade, quando se vestia como os deuses e se escondia embaixo das camas.
Quando assumiu o poder, quis apagar do imaginário coletivo as terríveis lembranças do reinado de Tibério, abrindo o “tempo dos esplendores”. Transportou obeliscos egípcios para adornar Roma, prometeu abolir os processos de lesa-majestade e publicar regularmente medidas referentes à gestão de Estado. Era adorado pelos romanos.
Após sete meses no poder, Calígula ficou gravemente doente, com muita febre. Por noites inteiras, o povo velava pelas ruas. Os romanos estavam inquietos e alguns fizeram o voto de sacrificar a vida se o imperador recuperasse a saúde. Entretanto, após a recuperação, o povo de Roma conheceu um Calígula em uma versão piorada. A doença parecia ter afetado seu cérebro. As crises convulsivas que tinha desde a infância se tornaram mais frequentes, sempre estava fadigado, houve uma mudança de sua personalidade e comportamento, além de alterações súbitas de humor. Em um banquete foi abruptamente atacado por uma crise de riso intensa. Torturou e assassinou senadores e cidadãos romanos das mais diferentes formas possíveis, fechou os armazéns e infligiu a fome, desejava que surgissem epidemias e terremotos, cobrou impostos extorsivos, queria governar como um deus: Oderint dum metuant (que me detestem, contanto que me temam, na expressão em latim).
Seus exageros sexuais, incluindo o suposto relacionamento com sua irmã Drusila, foram relatados com muitos detalhes por Suetônio e outros historiadores, durante os anos seguintes ao seu governo. Essa vida cercada de orgias foi retratada no filme Calígula (Felix Cinematografica, 1979), que ajudou a sedimentar a imagem dele como um ditador cruel, sanguinário e devasso. A biografia de Dando-Collins não quer transformar Calígula em um menino bonzinho, mas tenta explicar que muito sobre ele foi exagerado após sua morte, a partir dos vieses de sofrimento do povo romano por decisões que tomou depois de ficar doente.
As encefalites (infecciosas, auto-imunes ou de outras origens) são doenças neurológicas que podem levar a mudanças de comportamento, passageiras ou definitivas. No caso de Calígula, o quadro parece combinar uma encefalite viral com um distúrbio comportamental do lobo temporal. Essa situação pode ter agravado as crises epilépticas que tinha desde a infância. Uma encefalite herpética pode ser uma resposta possível para o caso. Também há a possibilidade de Roma ter passado por uma epidemia de gripe na época da doença de Calígula.
As encefalites por esses tipos de vírus têm potencial para serem muito graves. A provocada pelo SARS-CoV-2, por exemplo, é muito parecida com o quadro de Calígula. Associada ao quadro respiratório, com febre, o paciente fica muito sonolento, podendo entrar em coma, com delírio e agitação. Pacientes com quadros mais leves de Covid-19 podem ficar com dificuldades de concentração e memorização por meses.
Calígula não foi o único entre os imperadores romanos a ter doenças neurológicas. Juntamente com o também neurologista Hélio Teive, escrevi um artigo sobre isso na revista Arquivos de Neuro-Psiquiatria. Não apenas as infecções são as únicas doenças neurológicas que podem mudar o comportamento de uma pessoa. Derrames, doenças degenerativas e traumatismos na cabeça também podem provocar alterações cognitivas e comportamentais. Portanto, cuidar do corpo e do cérebro e procurar um médico aos primeiros sintomas vindos do sistema nervoso são fundamentais para a prevenção de problemas mais sérios.