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Carlos Piazza: Futuro do trabalho

Confira a sexta parte da matéria principal "Vozes que pensam o amanhã", na edição 237 da revista

Darwinista digital, polímata, nexialista, futurista, embaixador do Teach the Future no Brasil, escritor e consultor que auxilia empresas e pessoas a compreender o mundo digital.

Você consegue criar uma imagem do que vai ser este novo mundo que as pessoas estão especulando?
Consigo um pouquinho perto do que já tem disponível para nós. Uma coisa que é importante neste mundo: sabemos que o normal já não existe mais. A normalidade ficou no passado, simplesmente já não está mais no mesmo lugar. Primeiro, porque as empresas tiveram a experiência da aceleração da transformação digital, o que vejo como algo bastante positivo. Demoraram 10 anos, agora tiveram que fazer tudo em dois, três dias. Vemos duas coisas para o futuro. Um esgotamento, que já vem de algum tempo, do capitalismo. A quinta Revolução Industrial, que é a convergência homem-máquina. A gente tem estruturação de empresa da segunda [revolução] e estamos pisando na quinta. Você imagina então como é difícil para as empresas darem um salto de 200 anos
em tudo aquilo que é sistema de trabalho. A quinta revolução impõe a confluência do ser humano no overflow da inteligência artificial. Isso significa que a harmonia ou a convergência homem-máquina está vindo com muita potência. Não percebemos, quando testamos em casa, que estamos entregando para as máquinas tudo aquilo que a gente gostou de fazer no lugar delas. É tempo de nós observarmos confluências humanas com mais propriedade do que tecnologia do outro lado. Embora a tecnologia seja muito importante, ela nunca foi um fim em si. Nós, futuristas, vemos que a pandemia é algo como um freio de arrumação. Muitas coisas foram para o chão, porque elas estavam em uma correria sem fim, em busca de algo que nem elas sabiam o que era, em um redemoinho, tudo puxando-as para baixo. A pandemia roubou as nossas rotinas. As pessoas, agora, estão meio perdidas. A noção do tempo, também: antes, você não tinha nenhum, porque era tragado por ele, agora, você tem todo o tempo do mundo. Primeiro, elas descobrem o que a gente já vem falando há muitos anos, há sete, oito anos, que o viver, o trabalhar e o aprender são uma coisa só. Nós nos separamos em três avatares diferentes, inclusive se vestindo para isso. A visão que temos agora é que conseguimos trabalhar, aprender e viver em uma expressão da gente mesmo. Vai ser muito difícil as pessoas voltarem para um sistema de regramento como é o sistema de trabalho e de emprego. Por que o emprego determina que você é criativo só das 9h às 18h? Eu posso ser criativo em qualquer horário. As pessoas também estão descobrindo que são elas que estão no centro dessa distribuição, não mais as empresas. Então vai haver muita resistência em se voltar para modelos anteriores.

Viveremos uma fase de hipercolaboração?
Sim, a hipercolaboração global. É tempo de conversarmos muito entre nós. Esse grande overflow de lives, de bate-papos, de conversas colaborativas, que está acontecendo pelo meio digital é uma coisa que ninguém tinha tempo de fazer, porque estavam muito preocupados em competir com o colega para ser melhor do que ele e, em alguns casos, até para derrubar ele naquela competição do mundo corporativo. Agora, as pessoas têm tempo de colaborar. Já entenderam que existe o outro, porque agora dá tempo, finalmente, de enxergar o outro. A cultura da hipercolaboração vem a partir do momento em que temos coisas absolutamente novas no nosso segmento.

Esse momento vai redefinir o morar também, não é? Muita gente nunca passou tanto tempo na própria casa.
Exatamente. Me chamou atenção em uma live, outro dia, que a gente praticamente não prestava atenção [ao fato de] que vivíamos em um cenário [de novela]. Porque você montava uma casa bonita que não tinha muito bem a funcionalidade que ela deveria ter. De vez em quando, você chamava alguém para jantar com você – o resto do tempo ficava vazia, você estava trabalhando. E agora, o que acontece? Você está nos espaços e vê que eles não estão mais funcionais para essa nova partida que estamos vivendo. Altera profundamente a estruturação dos espaços. Não só dos espaços como da cidade. Prevê-se também o grande volume de imóveis que vão ficar vazios no planeta. Porque, na verdade, as empresas não pararam, né? Elas descobrem que as pessoas são mais criativas, mais produtivas, estando nos seus lugares de origem. Descobrem que não é necessário ter esse monte de equipamento e é como sempre falamos: o mundo digital é desmaterializado. E aí, o que acontece é que as pessoas estão prestando atenção ao fato de que existe uma hipermaterialização de tudo. Para que você tem uma empresa que tem um prédio gigantesco?

Um aspecto interessante é que várias empresas notaram que podem trabalhar no regime de home office. Como isso vai impactar o trabalho?
Isso impacta muito. Outro dia, estive com o presidente de uma empresa e ele falou: “Piazza, eu estou sendo extremamente mais produtivo, não tenho a tensão que a minha sala no trabalho me dava. Agora, em casa, eu estou muito mais à vontade. As reuniões que a gente faz pelos sistemas aí, as pessoas não atrasam e são extremamente contributivas, são muito mais rápidas. Além de tudo, posso agora ficar jogado no sofá, tomando uma taça de vinho.” Várias fronteiras foram sendo demolidas sistematicamente. Poderíamos já, há muito tempo, ter essa maior comodidade, trabalhando em casa, porque, na verdade, o sistema de trabalho das empresas ficaram muito obsoletos. Sempre lembro da segunda Revolução Industrial, de 1850, que determinou que as empresas, desde aquela época, tivessem hierarquias e organogramas. As empresas até hoje estão fazendo igual. Isso é característica do fordismo, porque havia a necessidade de aumentar a produção. Então, ao longo desse tempo todo, vemos produção massiva, sobretudo. Agora, a pressão das empresas é para poder voltar à produção massiva que faziam até então.

O capitalismo, tal qual o conhecemos até aqui, está sendo colocado em xeque por muita gente. Qual seria uma alternativa eficiente a esse modelo atual de capitalismo?
O capitalismo cruel não faz o menor sentido – e isso fica evidente agora. Temos que enxergar três coisas que vêm nessa mesma batida. O capitalismo selvagem não faz o menor sentido, porque, agora, o inimigo não é visível. Quando tínhamos inimigos visíveis, os países gastaram uma fortuna absurda com armamento. O que adiantou esse monte de gente fazer desfile em praça pública, do poder armamentista, se, de repente, vem uma coisinha, um inimigo poderoso [o vírus]? Por isso, há até autores que falam que o [presidente Donald] Trump não se reelege [nos Estados Unidos]. Eles falam assim: “tá bom, a gente tem o país mais poderoso do mundo,
porque ele é visto como uma grande economia capitalista, superarmado até os dentes, mas que não tem um
sistema público de saúde decente para as pessoas.” Que lógica há nisso?

Existe alguma chance de voltarmos a esses velhos padrões?
Não. O conteúdo da sociedade 5.0 já prevê o fim da produção massiva de coisas. Sabemos que no mundo digital lá dos anos 1990, quando começou a internet, houve um movimento de individualismo muito grande das pessoas, que as levou, também, ao hiperconsumo. O que está acontecendo agora é que estamos vendo o consumo consciente, dentro de um capitalismo consciente, em que existe um freio de arrumação no consumo. Outra coisa que a tecnologia nos traz é a possibilidade de experimentar coisas customizáveis para nós. Em um
curto período de tempo, vamos ter impressoras que vão fazer tudo para nós. Você vai imprimir sua roupa, sua toalha de banho, da comida até o sapato. Isso faz com que o processo massificado de produção não faça sentido. A impressão, por exemplo, de comida. É a única forma de fazer duas coisas impensáveis: poder ter uma comida que se parece tanto com remédio que provavelmente não vou precisar nem tomá-lo e ser a única chance que temos, perante o meio ambiente, de produzir comida sem resíduo. Saímos da produção massiva para a geração de valor. Então a economia muda. Isso está muito claro para todos os futuristas, o nome que se dá é “Fluxonomia 4D”. O que tem nisso? A economia do compartilhamento, economia criativa, economia circular, a mais sustentável de todas, porque olha a cadeia inteira e a plataforma multimoeda. São as quatro economias que vemos dentro da Fluxonomia 4D. De que maneira vai ser nossa vida? Completamente diferente.

O que precisamos pensar sobre o mundo digital?
A questão dos algoritmos e dos andronitmos. Andronitmos são as capacidades humanas que as máquinas são  incapazes de reproduzir: compaixão, mistério da vida, amor, ética, criatividade, ambiguidade. Então, o que nós estamos experimentando? Um pezinho na quinta sociedade, ou na sociedade 5.0, na qual vamos trabalhar em harmonia com as máquinas, criando valor. Não tentando se parecer com ela, produzindo massificação. Na sociedade 5.0, vamos trabalhar em convergência com as máquinas. É o melhor das máquinas com o melhor do ser humano voltado para criar valores. Isso é oposto do que tentávamos fazer, em que tentávamos nos parecer com uma máquina fazendo o trabalho dela, em um processo de grande massificação de alta produção. Estamos em tempo de criar valor, não de criar massificação. As empresas que são forjadas na segunda revolução ainda só enxergam produção massiva. Elas entendem que têm que produzir um monte de coisa para vender, para transformar tudo o que produzem em dinheiro. Isso não faz sentido, estamos em busca de valor.

Isso está ligado a um tema que você trata, o human centered design.
Exatamente. Quando falamos de human centered design, o foco total é no ser humano. Na forma de viver, trabalhar, aprender, vestir-se, na forma com que modifica sua casa. Entendemos que os sistemas de produção são voltados ao valor. O human centered design é o desenho de tudo, inclusive do design organizacional, que é a forma como as empresas fazem o design de operação. Para aonde estamos indo? Para a hipercolaboração global. Agora, o marketing é de causa, não de consumo. Essa é uma outra vertente que puxa as empresas para
uma causa.

Nas redes sociais, vemos um movimento expressivo cobrando das personalidades um posicionamento sobre o momento. Nessa nova era, não há como ser neutro?
Não, não tem como. Peguei uma frase do Dante Alighieri, que, em determinado momento da história, disse que “no inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que não se pronunciam em tempos de crise”. O tempo em que a gente vive, o zeitgeist, que é a reconstrução do habitat, supõe participação colaborativa intensa.
Não dá mais para sermos protagonista do nosso próprio futuro. E aí o futurismo entra em ação, justamente na forma como a gente olha. Tudo o que vamos encontrar daqui para frente é desconhecido. Se é desconhecido, é porque vem do futuro. Portanto, o passado ficou no lugar dele. Não tem mais volta. O futurismo sempre fala
isso: você pode modelar o futuro previsível e buscar dentro dele um futuro preferível, mas, hoje, o que você faz? Você dá forças para o presente, usando intensamente o passado, para justificar o que você faz no presente.

O estilista Ronaldo Fraga disse algo semelhante em uma live: que não há nada mais triste do que as pessoas que querem viver em um passado que já não existe.
Exatamente. Já não tem mais lugar seguro para trás. Tudo o que a gente vai ver daqui para frente é novo. Por isso que a gente tem a explicação do pós-normal. As pessoas que tentam buscar o normal agora estão loucas, elas não vão encontrar nada do que era. Isso é tenso para várias pessoas que não sabem se terão um emprego. Não, não vão. Vai ter trabalho, é diferente. Há um futurista muito famoso que diz: “nós estamos vivendo um novo ciclo do Renascimento.” Como no Renascimento, quando saímos da Idade Média e entramos na Idade
Moderna, estamos vivendo um novo ciclo. Os grandes exemplos: Senado fazendo deliberação online, STF também, governo liberou telemedicina, etc.

Você sente que as pessoas tendem a não aceitar bem o novo?
Sim, isso é geral, tem em todos os lugares. É algo que está previsto no livro do Taleb, A Lógica dos Cisnes  Negros, que o negacionismo aparece poderosamente no nosso mundo. Porque o mundo digital, da convergência digital, fez aquela coisa maluca da internet 2.0., que é a internet relacional, que fez com que as manchas digitais sejam formadas com grande confluência arquetípica. Por isso, as manchas se batem na internet por convicções. Quando você já tem um protagonismo muito grande rastreado pelos arquétipos, o que acontece com o negacionismo? Ele faz parte de um pensamento de um dos arquétipos. Então, renega tudo o que você puder imaginar. Nós estamos vivendo o cisne negro de todos os cisnes negros do universo. Essa era algo absurdamente impensável, que o planeta pudesse fechar em menos de dois meses. Todo grande cisne negro vem acompanhado de negacionismo. Porque é tão difícil a gente compreender que o planeta parou em dois meses que as pessoas renegam o quanto puderem.

“Na sociedade 5.0, vamos trabalhar em convergência com as máquinas. É o melhor das máquinas com o melhor do ser humano voltado para criar valores.”

 *Matéria originalmente publicada na edição #237 da revista TOPVIEW.

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