A gota d’água
“Curitiba não tem água”, sentencia Carlos Mellos Garcia, professor do curso de Engenharia Ambiental e do programa de pós-graduação em Gestão Urbana da PUCPR. A exclamação não soa como nenhuma novidade para a população, que já convive com o racionamento há meses. Mas aponta uma crise que é agravada por outras questões para além da seca meteorológica que a região vem sofrendo desde meados de 2019 – como a má gestão dos recursos hídricos, a falta de cuidado com os rios e o desmatamento.
“Curitiba é uma espécie de fio de navalha, porque está sempre no seu limite de capacidade de produção [de água], considerando o consumo que está estabelecido. A demanda de água de Curitiba é quase igual à sua capacidade de produção”, resume Garcia, que é, também, mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. “Então, com essa estiagem, com certeza faltaria água. Não está sobrando água. Nunca sobra.”
A questão já é conhecida por pesquisadores e profissionais da área. Relatórios mais antigos mostravam as limitações do abastecimento da capital paranaense e da região metropolitana (RMC). Um deles, datado de 1995 e divulgado pelo jornal Plural, fez uma análise dos usos de recursos hídricos no estado, encomendado pelo governo brasileiro e realizado pela Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA).
O relatório estimou que, em 2015, seriam necessários 15 mil litros por segundo para abastecer a região, segundo a expectativa de crescimento populacional, que era de 3,1 milhões de habitantes. A população da RMC já ultrapassou a estimativa. Na época, a demanda era de 7 mil litros por segundo, ou seja, precisaria de um expressivo aumento. O reforço ficaria por conta da Barragem Miringuava, em São José dos Pinhais, mas a obra, prevista para ser entregue em 2016, ainda não terminou.
Uma questão multidisciplinar
“A minha crítica é sempre de se colocar o problema sobre um lado. Tudo tem um contexto. Há uma política pública ambiental que tem que estar afinada com a mentalidade de investimento e planejamento das empresas de saneamento, como um todo, e a própria população, por meio da educação ambiental. A solução do problema não é isolada”, pondera Glauco Requião, consultor em sustentabilidade e CEO da Plataforma Postura Sustentável.
O diagnóstico da agência japonesa colocou, entre os principais desafios, o aumento do esgoto doméstico e industrial, as ocupações irregulares próximas aos rios e, consequentemente, a redução das áreas verdes. É o que indica, também, uma tese de 2009, realizada pelo doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sanderson Alberto Medeiros Leitão na Universidade Federal do Paraná (UFPR). A partir da pesquisa, centrada nos anos de 2002, 2003, 2006 e 2008, períodos em que a população enfrentou falta de água, conclui-se que, entre as causas das crises hídricas na cidade, está, em primeiro lugar, o fato de estar “localizada nas cabeceiras de uma bacia hidrográfica, próximo a nascentes, em que as vazões dos rios são limitadas, portanto, sujeita a menor disponibilidade hídrica, o que se constitui em um risco de ordem natural.”
“A demanda de água de Curitiba é quase igual à sua capacidade de produção” – Carlos Mellos Garcia
A urbanização tem seu papel nessa conta. Com o crescimento populacional da cidade, tanto aumentou a demanda quanto potencializou o número de ocupações irregulares em áreas de mananciais. “A população de renda mais baixa, por falta de opção de oferta pública de habitação de baixo custo, é levada a procurar locais para construir suas moradias onde a fragilidade ambiental é maior, como áreas de mananciais, áreas de riscos de inundação, adjacentes a rios, etc., lógica conhecida como urbanização corporativa. Essa ocupação desordenada gera pressão sobre os recursos hídricos locais e aumenta os riscos de contaminação dos mananciais”, explica Leitão.
O engenheiro civil Luis Christoff chegou a conclusões semelhantes em sua dissertação, um estudo de caso sobre a bacia hidrográfica do rio Piraquara, que engloba dois importantes mananciais, os reservatórios de Piraquara 1 e Piraquara 2. “A erosão e o assoreamento dos rios [causados pelo avanço da mancha urbana] são dois fatores que vão acelerar o processo de crise. Quando chove muito, a vegetação tem o papel de retardar a água da chuva que corre para os rios. Ela faz com que essa água infiltre no solo e o encharque e, assim, abasteça os reservatórios de uma forma melhor. Quando não tem vegetação, a água da chuva cai e escorre rapidamente para o rio – e essa água vai embora. Então não consegue reservar essa água”, ilustra Christoff.
As relações com a natureza
A falta de chuva, é claro, impacta na falta de água. Desde meados de 2019, a chuva está abaixo do esperado. O estado teve o verão e a primavera secos, se comparados ao normal, e isso repercutiu no que vivemos agora. “Estamos em uma seca meteorológica. É um processo que tem acontecido. Ainda não é possível dizer que a causa são as mudanças climáticas: existe uma variabilidade natural e, de tempos em tempos, as secas podem ocorrer”, esclarece Pedro Augusto Breda Fontão, geógrafo e um dos coordenadores do Laboratório de Climatologia da UFPR.
Mas não é a única causa. Para Fontão, a seca tem menos relação com as mudanças climáticas do que com a má gestão dos recursos hídricos. “As reservas hídricas de Curitiba têm alertas, desde 2010 e até antes, de que Curitiba precisava construir novos reservatórios. No Brasil, não temos o costume de fazer uma gestão de risco – geralmente fazemos a gestão da crise. Quando acontece [a crise], o pessoal resolve sentar e tentar resolver – e não arrumar antes para tentar evitar os prejuízos.”
Independentemente do aquecimento global, a seca é um fenômeno natural da variabilidade do planeta. Justamente por isso, é preciso levar em conta esse cenário ao pensar no abastecimento urbano. “O grande problema, para mim, não é a seca em si. A ideia de manter a mata ciliar em volta das represas é muito mais importante para preservar essa água”, constata o geógrafo.
O desmatamento de áreas verdes pode acentuar essas secas. “Quando falamos de vegetação, estamos falando de manter a umidade do ar. Quando você desmata uma floresta, acaba gerando um impacto no microclima”, resume Fontão. No caso de Curitiba, a Mata Atlântica cumpre um papel essencial. Ou seja, o desmatamento de sua área pode causar o aumento do desequilíbrio do ecossistema, o que pode representar a diminuição de chuvas e absorção de água. Somente entre 2018 e 2019, o bioma sofreu um aumento de quase 30% no desmatamento – foram 145 quilômetros quadrados perdidos da mata, de acordo com um levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica. Isso coloca o bioma como o mais ameaçado do país: de sua área original, restam apenas 12%.
“O grande tema é como podemos garantir que a universalização tenha efetivamente um alcance para que a água seja um direito de todos.” – Pedro Roberto Jacobi
Entra aí a necessidade de fiscalização e políticas públicas pensadas pelo estado. É o que sugere Pedro Roberto Jacobi, doutor em Sociologia e coordenador do grupo de Estudos de Meio Ambiente e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). “Nós temos um problema que tem que ser enfrentado por meio do fortalecimento da fiscalização e do acompanhamento da forma como se ocupa o território – o território agrícola, inclusive. As autoridades públicas têm que ter cada vez mais clareza de que essa biodiversidade é fundamental, no sentido de ser uma absorvedora. Ela transpira. Sua presença é absolutamente crucial para que o sistema tenha uma certa regularidade, um certo equilíbrio”, ressalta.
Christoff acrescenta que a legislação de recursos hídricos no Brasil é de excelência. Ela deriva das leis da França, país que é exemplo na gestão dos recursos hídricos no mundo. “É muito consistente, mas a gente tem que cumprir. Não adianta termos muito comando e pouco controle”, analisa. “Precisa sempre fiscalizar as empresas, de vários setores, da agricultura, pecuária, mineração – de todos os que usam a água para um determinado fim. Com isso, a gente consegue elaborar um planejamento mais efetivo e robusto, de forma a garantir um abastecimento para os próximos anos.”
Há outra ponta solta na busca por um abastecimento satisfatório da população: o cuidado com os rios. Essa é a pauta defendida por Garcia há 40 anos. Para ele, a cidade avançou sobre o rio, mas não teve a preocupação de cuidar dele. “Meus alunos perguntam ‘como é uma cidade sustentável?’. Eu digo que só tem uma coisa: se você me levar para a beira de um rio e eu ver águas cristalinas, vou pensar que esse é um povo limpo. Agora, se você me levar para essa cidade e o rio estiver sujo, vou dizer que essas pessoas precisam rever seus conceitos”, reflete. “Nós precisamos de um compromisso social. Para o rio ficar limpo, precisamos parar de sujá-lo.”
Essas preocupações podem amenizar o que especialistas chamam de “injustiça hídrica”, quando determinadas parcelas da população, com menor poder aquisitivo, são mais afetadas por crises como essa. Elas, no geral, têm menor capacidade de armazenamento de água, por exemplo, o que é um agravante durante um racionamento intenso. “A água é um direito humano fundamental. O grande tema é como podemos garantir que a universalização tenha efetivamente um alcance para que a água seja um direito de todos”, opina Jacobi.
A urgência é real. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cinco bilhões de pessoas podem sofrer pela falta de água até 2050. A preocupação aumentou, já que a escassez hídrica pode gerar guerras ao redor do planeta. Um estudo da Universidade de Columbia mostrou que o risco de uma guerra civil dobrou, de 3% para 6%, em 90 países afetados pelo fenômeno El Niño, que provoca, entre outras coisas, diminuição do volume de chuva. Especialistas já consideram a água “o petróleo do século XXI”.
Outro entendimento sobre a água
A noção da água como um recurso natural abundante e inesgotável, que é perpetuada há séculos, está equivocada e representa uma barreira para os avanços na gestão sustentável dos recursos hídricos. “Precisamos de uma nova cultura do uso da água. Nós temos que ter, cada vez mais, a percepção da população de que é um
bem escasso. As pessoas precisam perceber que a água percorre todo um percurso até chegar à sua torneira e que, nas situações mais acentuadas de escassez hídrica, vários tipos de uso deverão ser modificados”, defende
Jacobi.
“(…) Se você me levar para essa cidade e o rio estiver sujo, vou dizer que essas pessoas precisam rever seus conceitos” – Carlos Mellos Garcia
Se os problemas envolvem vários setores, as soluções precisam ser igualmente interdisciplinares. “É preciso que todos [os setores] se associem na percepção do problema e se unam por uma solução. [Assim,] você começa a achar saídas para não ser tão surpreendido por essas crises climáticas, que vão estar cada vez mais acentuadas. Não contar com isso é um erro gravíssimo de planejamento”, aponta Garcia. Glauco acredita que buscar parcerias pode ser uma saída estratégica para o trabalho da Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná). “Ela tem que, urgentemente, buscar parcerias e fazer novos negócios na área da água de reuso. Considerar suas estações de tratamento de esgoto como indústria. Você tem ali uma estação de tratamento de esgoto que recebe o esgoto in natura e pode produzir gás, água de reuso, energia”, opina.
Argumenta, ainda, que as empresas de saneamento devem pensar em novos carros-chefes, além dos instrumentos fornecidos pela legislação, como o pagamento por serviços ambientais. “Ao invés dele [agricultor] olhar aquela APP [Área de Preservação Permanente] como inimiga da produtividade ou uma impedidora para ter mais área plantada, ele [deve] enxergá-la como uma aliada – não só do ponto de vista de melhorar a qualidade do terreno e garantir a qualidade do rio para poder puxar água para sua irrigação”, sugere.
Soluções nas indústrias
O reuso da água é uma das estratégias que precisam ser adotadas pelo agronegócio, visando a uma gestão dos recursos hídricos mais sustentável. Até porque o setor tem uma alta demanda: cerca de 72% da água produzida no país é destinada à produção agrícola, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA). A título de comparação, no mundo, a marca é de 70%.
A falta dela comprometeu parte do potencial da safra de outono/verão e do plantio de milho e feijão da segunda safra, além dos cereais de inverno. “A crise hídrica complicou muito as criações, porque o Paraná é líder na produção de proteínas animais e os processos produtivos atuais, modernos, exigem água. E não é qualquer água, é água de qualidade, para a produção de leite, suínos, frangos e peixes”, observa Norberto Ortigara, Secretário da Agricultura e Abastecimento do Paraná.
Outras práticas incentivadas são a reserva de água da chuva, a proteção e a criação de microambientes arborizados nas nascentes e, na lavoura em si, a cobertura do solo. “Sustentabilidade é uma palavra que já ficou chata de tanto ser usada, mas não tem como… não se deve discutir se o agro tem ou não tem que ser [sustentável], ele precisa ser, até para a sobrevivência [do setor]”, conclui Ortigara. “Precisamos produzir condições favoráveis à reprodução do ciclo da água.”
Novos caminhos com inovação e sustentabilidade
Curitiba tem uma forte imagem como capital verde do país – e, também, ganha visibilidade por conta de uma indústria de soluções sustentáveis. Uma delas é ter o primeiro prédio do mundo a ganhar uma certificação de autossuficiência em água, a LEED Zero Water.
O Eurobusiness, no Ecoville, faz o ciclo completo da água: capta de um poço artesiano para abastecer torneiras e chuveiros e utiliza água de reuso para descargas e esgoto, além tratar in loco toda a água utilizada no edifício, tanto do esgoto e dos vasos sanitários quanto das torneiras.
“Temos uma economia de quase 100 mil reais anuais. É bem significativo – e só vai aumentar ao longo do tempo, uma vez que o metro cúbico vai ficando mais caro. Hoje, a sustentabilidade nada mais é do que economia, no final das contas. As pessoas buscam espaços mais saudáveis e que custam menos para operar”, afirma João Vitor Gallo, diretor técnico da Petinelli, empresa responsável pela consultoria junto à certificação. “Água não tem preço quando você chega a um momento de estiagem. Ter um sistema autossuficiente, que consegue cruzar um período de estiagem – isso é sustentabilidade.”
A mentalidade já foi incorporada pelo mercado. “Não construir um edifício comercial certificado, hoje, em Curitiba, é fora do padrão. Já virou modo operante para as construtoras curitibanas [construir] edifícios comerciais para serem certificados”, observa. “Os curitibanos já vivenciam as questões ambientais há muito tempo, então o mercado está cada vez mais apto a receber essas novidades.”
A grande oportunidade para otimização nos edifícios está no tratamento das águas cinzas, que vêm de atividades domésticas, como lavar louça e tomar banho. Gallo aponta que haveria um aumento de eficiência de 80% nos prédios caso eles tenham um sistema de captação água da chuva e tratamento das águas cinzas cinzas. “Se colocarmos políticas de reuso para novas construções, a fim de começar a melhorar esse panorama a partir de agora, vamos conseguir reduzir bastante o consumo nos edifícios, nos grandes centros urbanos.” Em novos
prédios comerciais, acima de cinco 1.000 m², já é obrigatório o tratamento dessas águas.
Outro setor que utiliza grandes quantidades de água é o dos lavacars. Ainda assim, é possível criar outras maneiras para economizar. É o que fez Felipe Henrique Feutrin Boell, ao criar o WOW Lavacar, com uma tecnologia que lava mais rápido que o normal, entre três a cinco minutos. “Usa 100 litros, mais ou menos. Já a lavagem à mão gasta, pelo menos, 500 litros. Isso equivale a um milhão de litros economizados por mês
em cada unidade do lavacar, é o consumo de quase 200 casas/famílias economizado”, ressalta. “Nosso propósito é economizar recursos escassos. O mais escasso é o tempo e depois o planeta, que se não cuidar, amanhã não vai ter.”
“Não contar com crises climáticas é um erro gravíssimo de planejamento” – Carlos Mellos Garcia
É a união de esforços do estado à consciência da população que pode construir um cenário menos arriscado quanto aos recursos hídricos. “Nós precisamos repensar os investimentos e a tecnologia. Isso coloca toda uma questão de repensar a própria forma como se produz água em outras escalas, mais locais, e significa, também,
avançar cada vez mais nas tecnologias sociais, de fortalecer o diálogo com a população”, conclui Jacobi.
*A Sanepar foi procurada pela reportagem, mas preferiu não dar entrevista.
*Matéria originalmente publicada na edição #243 da revista TOPVIEW.