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Yasmin Zippin Nasser: “A culinária árabe é tão requintada quanto a francesa”

Dona do Nayme conta como resgatou as receitas da avó para criar um dos melhores restaurantes árabes da cidade

O restaurante árabe Nayme, instalado há quase dois anos no Batel, leva o nome da avó de sua chef e proprietária, Yasmin Zippin Nasser. Não é apenas uma homenagem: Nayme — uma libanesa que se estabeleceu em Curitiba ainda na década de 1930 e morreu em 1989 — legou à neta todas as receitas do cardápio, que vêm conquistando seguidores desde que começaram a ser preparadas num bistrô perto da Praça do Japão, em 2015.

O negócio manteve seus princípios ao se mudar para o casarão na Rua Vicente Machado. O preparo continua fiel às velhas técnicas de Nayme, e o serviço foi pensado para proporcionar uma verdadeira experiência de refeição árabe — longa, com saladas e várias pastas de entrada quando se opta pelo “banquete”. O restaurante – eleito o Melhor Árabe de Curitiba pelo Prêmio TOPVIEW Gastronomia 2017 – não fecha as portas à tarde, aliás, para não apressar ninguém. E foi cuidadosamente montado para recriar o ambiente familiar acolhedor que ficou na memória de Yasmin — os quadros, móveis e enfeites que decoram o salão pertenciam a Nayme.

“Minha avó, a vida inteira, amou receber”, contou Yasmin, em uma conversa no deque do restaurante na tarde do dia 20 de abril. “As nossas melhores lembranças sempre foram da cozinha, desses almoços em família. Essa memória afetiva relacionada à culinária sempre foi muito forte em mim.”

Entre um café árabe e o chá feito com uma hortelã cultivada a partir de uma mudinha trazida do Líbano nos anos 1950, Yasmin — que é advogada de formação — falou sobre a ligação do restaurante com as tradições de sua família, seus laços com a cozinha e sua visão sobre a culinária árabe.

 

Você atuou por um bom tempo como advogada, fazendo tribunal do júri. Largou?
Adoro o Direito, mas não como um trabalho para ganhar a vida, digamos. Continuo adorando, lendo, me interesso, mas não para trabalhar na área. Já tinha deixado a advocacia quando abri o Empório Dona Nayme. Eu queria resgatar a culinária árabe.

Qual é o lugar da cozinha na história da sua família?
A culinária é muito forte nas famílias árabes. É realmente onde a família se encontra, onde se juntam os amigos. É uma refeição longa justamente para propiciar esse encontro. Tem um ditado árabe que diz que, à mesa, não se envelhece. A refeição árabe é um ritual. Por isso é que vêm primeiro os pratos frios: você curte aquela mesa dos frios, os aperitivos, uma boa conversa. Depois vêm os pratos quentes, a sobremesa, o chá de menta. Tudo acaba girando em torno de uma mesa. Você chega à casa de um árabe e a primeira coisa que ele faz é colocar na mesa seja lá o que for. Quando se chegava na casa da minha bisavó, ela já trazia um vidro de azeitona, coalhada, azeite, pão. Ela dizia que casa que tem coalhada, azeitona e pão tem festa. Para o árabe isso é o início do banquete.

As coisas giravam em torno da cozinha?
O preparo também é importante. As mulheres ficam na cozinha, põem música, dançam. É tudo muito divertido — aquela mulherada enrolando charutinho. É uma culinária trabalhosa. Você fica horas enrolando charutinho, fazendo kafta, o quibe. É tudo feito à mão, então a mulher passa muito tempo na cozinha. É um ambiente gostoso, de conversa, de confidências. Na casa da minha avó sempre era assim. Tinha no mínimo dez mulheres na cozinha — minha mãe, minhas tias, minhas primas, crianças, todo mundo. Nesta questão, era bem tradicional. É a mulher que cozinha.

Kibe Burj do Nayme. (Foto: Priscilla Fiedler/Divulgação)
Kibe Burj do Nayme. (Foto: Priscilla Fiedler/Divulgação)

Que relação você criou com isso tudo?
Quando os almoços passaram a ser feitos nas casas dos meus pais, era a mesma coisa: eu, minha mãe, minha irmã e minhas amigas, todas ajudando — sempre essa farra. Era o lugar favorito da casa. Todo mundo aprende a cozinhar. Claro, eu sempre gostei, minha irmã sempre gostou. Não era uma obrigação. A gente aprendia por prazer. Quando éramos crianças, minha avó nos sentava nas cômodas e ficávamos vendo elas cozinharem. Minha mãe conta que a gente ainda não tinha nem dente quando minha vó ia fazendo e colocando quibe cru nas nossas bocas para experimentarmos.

 

“Eu sempre digo: não sou chef de cozinha. Não tenho curso de chef. Sou uma cozinheira de cozinha árabe.” Yasmin Zippin Nasser

 

O paladar aguçado para a comida árabe tem raízes profundas para você, então.
Desde criança. Quando eu era bebê, minha mãe estava preocupada porque eu não comia. O pediatra falou: “Ela é descendente de judeus e árabes. Frite um alho e uma cebola na manteiga, faça um molho bechamel e coloque na mamadeira”. Minha mãe fazia e eu tomava mamadeira com alho [risos]. Aí ia que era uma beleza.

Toda a sua formação na cozinha vem da tradição familiar?
Sim. Eu sempre digo: não sou chef de cozinha. Não tenho curso de chef. Sou uma cozinheira de cozinha árabe. Eu me viro na italiana, me viro na francesa — até porque minha mãe gosta de cozinhar, então aprendemos outras coisas com ela. Mas meu forte é a culinária árabe. Às vezes penso em fazer um curso, mas eu não quero mudar as técnicas. Quero continuar fazendo da forma antiga. Aí já tiro a ideia da cabeça.

 

“O que sirvo [no Nayme] é o que eu comia em casa, o que minha avó e minha mãe serviam.” Yasmin Zippin Nasser

 

O preparo é o mais tradicional possível ou há espaço para mudar?
Eu crio algumas coisas em eventos especiais, às vezes até no formato de servir, mas a receita é tradicional. A inovação é mais no modo de servir, de decorar um prato. Mas o forte do restaurante é a comida árabe que a gente come em casa. O que sirvo aqui é o que eu comia em casa, o que minha avó e minha mãe serviam.

Onde ficaram registradas as receitas de Nayme?
Minha mãe, quando começou a namorar o meu pai, aprendeu a cozinhar com a minha avó e bisavó. E minha mãe anotava. Minha avó não gostava: ela dizia que a comida árabe era muito de sentir na mão, olhar, sentir a textura. Lembro que as anotações da minha avó eram sempre [instruções como] “pique bem até dar ponto”, “um tanto bom”. Não tinha medida. Minha mãe era a mesma coisa. Quando resolvemos montar [o empório] lá na República Argentina, a gente fazia tudo no “olhômetro”, com sempre fizemos. Mas quando vim pra cá, que era uma estrutura maior, tive que colocar no papel.

Foi difícil trazer as receitas para uma cozinha de restaurante?
Foi superdifícil. Minha mãe ia colocar um tempero e eu tinha que segurar a mão dela para pesar e fazer uma ficha técnica, porque aquilo tinha que ser replicado todos os dias do mesmo jeito. Não era mais “um tanto bom” de sal, de tempero. Pegamos cada receita e fizemos a ficha técnica com os ingredientes específicos — tudo pesado, para manter sempre o mesmo padrão. Foi um trabalho árduo. Levamos uns seis meses pra fazer. Mas deu certo.

Interior do restaurante Nayme, decorado com móveis da avó de Yasmin Zippi Nasser. (Foto: Divulgação)
Interior do restaurante Nayme, decorado com móveis da avó de Yasmin Zippin Nasser. (Foto: Divulgação)

O que você queria mostrar sobre a cultura e a cozinha árabe com o Nayme?
A cozinha árabe é muito refinada. Acho que, no Brasil, quem veio [do mundo árabe] e começou a abrir restaurantes não veio numa situação financeira boa. Sabiam cozinhar, mas normalmente os lugares não era bacanas. Era sempre aquela coisa enjambrada, com cadeiras de plástico. Não honrava o requinte da culinária árabe. A meu ver, a culinária árabe é tão requintada quanto a culinária francesa, a italiana. Não vejo diferença. É uma cozinha trabalhosa, cheia de detalhes, segredos, mistérios.

Acha as pessoas têm uma ideia um pouco errada sobre o que é a comida árabe?
Eu acho. Claro, depois que conhecem, sim, mas as pessoas não têm muita noção do que é o trabalho de uma cozinha árabe. Todos os processos são manuais, trabalhosos, levam tempo. É uma cozinha cheia de segredinhos, bem detalhista, requintada. Tem uma riqueza de especiarias incrível. É uma alquimia que você faz na cozinha. Tudo tem uma mágica. Eu achava que o lugar tinha que ser condizente com tudo isso. Por isso que me apaixonei quando vi essa casa. Achava que ia unir as duas coisas: a alta gastronomia árabe com um lugar que estivesse à altura dela.

 

“Às vezes penso em fazer um curso, mas eu não quero mudar as técnicas. Quero continuar fazendo da forma antiga.” Yasmin Zippin Nasser

 

Como o mobiliário da sua avó veio parar no salão?
Quando vim para cá, meu pai e o meu tio, que eram os herdeiros da minha avó que ainda estavam vivos, falaram: “Leve todos os móveis da vó para o restaurante, que tem o nome dela”. Estava tudo guardado num depósito. Os dois concordaram em me presentear com os móveis dela e eu trouxe tudo — todos os móveis, os quadros, era tudo dela.

A ideia era que ficasse com um ar caseiro, mesmo maior?
Todos os clientes que eu tinha na República Argentina continuam vindo, e é justamente isso que falam: que a gente conseguiu, não sei como, deixar isso aqui tão aconchegante quanto era lá — com os móveis da Vó Nayme, essa cara de casa. E até essa proximidade, de eu estar sempre aqui. Gosto das pessoas, de conversar, contar a história dela. Os garçons gostam da história e também sabem contar a história da Vó Nayme. É um conjunto de características. Para mim, é como se eu estivesse recebendo em casa. Não muda nada.

Você foi ao Líbano atrás de referências?
Eu fui uma vez e vou voltar neste ano. Eu ia levar meu pai — o sonho dele era voltar para rever a família —, mas ele faleceu em janeiro. Mas vou manter a viagem. Ainda tenho uma família grande no Líbano. Provavelmente vou trazer umas novidades. Quero ficar hospedada na casa da minha família em Jdeideh, em uma aldeiazinha. Eles têm oliveiras, vendem azeite de oliva, e têm árvores de figo, que vendem para Beirute. É uma coisa bem artesanal.

Paleta de cordeiro do restaurante Nayme. (Foto: Priscilla Fiedler/Divulgação)
Paleta de cordeiro do restaurante Nayme. (Foto: Priscilla Fiedler/Divulgação)

Qual é sua impressão de lá?
É um país lindo. As cidades são lindas, as pessoas são maravilhosas. Tem muita história, muita riqueza. Não dá vontade de vir embora. É uma cultura muito diferente. Mas o povo é parecido. Essa coisa do latino, essa paixão, essa coisa de festa. Eles são muito calorosos, muito amorosos. Nesse sentido até acho o libanês parecido com o brasileiro. E o brasileiro tem ido bastante para o Líbano. É um destino que está na moda.

Os pratos do Nayme são todos do Líbano? Quais são as diferenças entre as culinárias regionais?
Na culinária árabe, tem gente que acha parecidas a comida síria, a turca, mas cada uma tem as suas peculiaridades. A culinária árabe não pesa tanto no tempero. A síria é mais forte, mais carregada no tempero. E no Líbano, apesar de ser um país pequeno, a culinária muda de região para região. Então tem pratos que eu sirvo aqui que são da região da minha avó. Hoje eu tenho família em Jdeideh, Balbeque e Beirute. É a culinária desses lugares que eu sirvo aqui. Mas o geral tem no Líbano inteiro.

Nem sempre a cultura de origem permanece tão forte nas gerações seguintes. Por que acha que isso é tão presente na sua família?
Acho que, no nosso caso, a família era muito forte nesse sentido. Então a gente preservou tudo. Tudo isso era muito próximo, muito presente na vida da gente. E a gente gosta. Então acho que a gente não quis se afastar; quis trazer cada vez mais para perto. Nas festas da minha casa, a certa hora da noite, alguém sempre puxava uma dança. Sempre foi esse fervo árabe. É muito forte, é sangue [risos]. É como falam: sangue não é água.

Isso tudo parece ser uma história que você gosta de contar.
Adoro [risos]. As pessoas adoram perguntar para a gente também, então a gente conta 500 vezes. E é uma delícia, porque é uma forma de estar próxima dela.

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