Magrão bom de papo: a história de um dos agitadores culturais mais autênticos de Curitiba
O habitat de um dos agitadores culturais mais genuínos de Curitiba é o balcão de um bar. Um boteco que reúne a nata da juventude alternativa da cidade. O cenário é simples: uma estufa com os conhecidos bolinhos de carne (há uma opção feita com soja para os veganos), prateleiras altas com bebidas de todos os tipos, mesa de sinuca no centro, embaixo dela engradados de refrigerante para aproveitar o espaço. Aliás, espaço é o que mais falta no local. Não por acaso o grande barato dos frequentadores é ocupar as calçadas, sentar no meio fio, jogar conversa fora nesta fronteira não delimitada entre o público e o privado.
Diversão ao ar livre em Curitiba? Como é possível isso em uma cidade marcada pela chuva e pelo frio do clima e do comportamento de seus moradores? Ainda não se sabe ao certo. Mas quem atravessa a porta do Torto e bate um papo com o Magrão, começa a desenhar algumas hipóteses. Se ele é bom em algo, esse algo é a velha e tão extinta arte da verdadeira conversa. Escuta com atenção, fala com destreza. Um autêntico contador de histórias. Comunicador nato.
Encontro Magrão com a porta do bar aberta pela metade, apoiada em algumas caixas de cerveja. De fora, ouço que ele assiste pela televisão ao sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2014. Peço licença, curvo o corpo e adentro no espaço em que trabalha há dez anos. Estamos no bairro São Francisco, um dos mais tradicionais da cidade. Sento em uma banqueta alta enquanto ele prepara um café coado no saco de pano. Adoça ainda no bule. Inacreditavelmente, um dos melhores que já tomei. Entre um gole e outro, foi só deixá-lo fazer o que sabe fazer melhor: falar.
Seria simplesmente óbvio começar um papo com o Magrão a partir da sua admiração por Garrincha. Sim, ele sabe tudo da vida do craque de pernas tortas. Viaja para Pau Grande (RJ) todos os anos; é amigo íntimo das filhas do falecido jogador; bate uma pelada no descampado que revelou Manuel Francisco dos Santos para o Brasil; traz na bagagem sempre algumas histórias picantes sobre a vida sexual agitada que marcou a trajetória do atleta. Um rápido giro pelas fotos nas paredes contam uma longa história, é como um depositário das lendas garrinchianas.
Mas, além das imagens do esporte bretão, duas fotos revelam um tanto mais da sua personalidade: em uma delas, uma imagem dele ao lado de um dos maiores radialistas do Brasil, Zé Béttio. Na outra, um registro do apresentador e empresário Silvio Santos quando jovem: “Eu tenho uma performance do Silvio, uma imitação…” Naturalmente, mostro a intenção de ouvir um trecho. Antecipando-se, ele me nega a palhinha: “Mas só funciona com um microfone ligado.”
Natural de Mauá, na região do ABC paulista, Magrão veio de família pobre. Filho da Dona Edwiges, perdeu a mãe (cardíaca) aos 13 anos. Duas irmãs, três irmãos, dinheiro para lá de contado. “Eu cresci em um ambiente meio Cidade de Deus: periferia da periferia”, diz, referindo-se à evidente pobreza do local. Ainda na cidade natal, começou a trabalhar em um bar em 1988. Na função, substituiu um cara engraçado. Mais tarde viria a reconhecê-lo na TV como o comediante Batoré (Ivanildo Gomes Nogueira). No ano seguinte, chegaria de mudança a Curitiba para tentar uma vida nova.
Foi contratado para trabalhar em um dos principais points da juventude naquela década: a Love Lanches, no bairro Bacacheri. Fez de tudo por lá, de descascar batatas a servir mesas. Ficou um ano, voltou para Mauá para logo retornar à capital paranaense em nome de um amor que nunca deixou de ser platônico. Pouco importava. A paixão maior se revelaria pela cidade. “Uma das invejas que eu tenho é de não ter nascido em Curitiba”, confessa.
A década de 1990 seria de muito, mas muito trabalho mesmo para Magrão. Passou por alguns bares da cidade pegando firme como balconista, garçom, administrador. Fez de tudo. Além da rotina na noite, também trabalhou por longos períodos em estacionamentos como manobrista e lavador de carros, que era a maneira de tirar uns trocados extras. Chegou a vender pipoca na saída de cursinho pré-vestibular e fez apontamento de jogo do bicho (foi até preso por isso)… Tudo entre as ruas Paula Gomes, Mateus Leme e Carlos Cavalcanti: o miolinho do centro velho de Curitiba, conhecido como São Francisco. Enfim, se virou como pôde para sobreviver e fazer um pezinho de meia.
Poucos sabiam que Magrão tinha um objetivo muito claro em mente: conhecer Londres. Em 2002, com a poupança suficientemente cheia para pagar a passagem e bancar algum tempo na capital inglesa, embarcou. Parou antes em Paris. No serviço de imigração britânico, a resposta foi taxativa e decepcionante: não poderia entrar na terra da rainha. Por sorte, seu destino anterior era a capital francesa. Menos mal ser deportado para lá, ao menos poderia visitar a Torre Eiffel e pensar em uma desculpa para a torcida tupiniquim que tanto o incentivou.
Cheio de vergonha, voltou para o Brasil e ficou algum tempo pensando no rumo que daria para a vida. Com o dinheiro que não havia gastado na viagem, acreditou que poderia montar um negócio próprio. E procurou uma portinha no então desprivilegiado São Francisco, bairro que já conhecia tão bem. Para economizar, se propôs a morar no mesmo local onde montou o bar com o nome do seu ídolo da bola. “Se desse para pagar o aluguel, já estava satisfeito.” E deu. Não quer dizer que tenha sido fácil trabalhar dia e noite, dormindo no chão onde os boêmios apagavam xepas de cigarro. “Lavava minhas cuecas na pia do banheiro do bar”, lembra.
Magrão, que não tem sequer o ensino fundamental completo, construiu (e constrói) uma história digna de ser contada; de preferência, por ele próprio. Afinal, o cara é bom de papo. “Sempre acreditei na força da comunicação. Um português bem-falado, uma linguagem correta, é muito importante para você conquistar seus objetivos”, filosofa no balcão do seu boteco. Boteco, com todo o respeito, já que O Torto é hoje um dos principais espaços de agitação cultural da cidade.
E a Quadra Cultural?
Magrão fez uma boa leitura da tendência que chegava a Curitiba no início do século 21. A cidade começava a se interessar pelos espaços públicos. O curitibano queria (e parece querer cada vez mais) se “adonar” de seus logradouros, parques, calçadas e tudo mais. Em 2008, para comemorar os 50 anos da conquista da Copa na Suécia, montou um evento inusitado. Armou uma mesa redonda na rua em frente ao seu bar, reunindo a crônica esportiva local, as filhas de Garrincha e um bom tanto de malucos interessados em discutir a história do nosso futebol em um ambiente tão descompromissado. Nascia ali a Quadra Cultural.
Em 2010 seria a vez da dupla sertaneja As Galvão estrelar o evento. Já em 2011, Magrão traria o cantor romântico-brega Odair José, alçado para o evento como um ídolo cult. No ano seguinte, seria a vez de Germano Mathias, lenda do samba paulistano. E em 2013 o palco da Quadra daria espaço para Jerry Adriani, desta vez com um público que passou de 7 mil pessoas. Como conseguiu tantos nomes de peso para um evento de rua? Como um coquetel bem-preparado, soube misturar argumentação, um bom tanto de carisma, utopia na medida certa, organização, senso prático e as conexões certas.
“Eu sou um risco para os caras do poder!”, desafia Magrão, garantindo que chega a mostrar sua planilha de custos para os artistas, que em nome da sinceridade, abrem mão de cachês vultosos para apostar na iniciativa. “Eu trabalho com a sensibilidade nos meus projetos culturais. É isso que falta para o poder público”, sentencia.
O evento tinha data certa para acontecer: sempre no primeiro sábado depois do Carnaval. Digo “tinha” porque nada garante que ele se repita em 2014. A explicação passa por desafetos políticos, brigas de alvarás, licenças não concedidas, verbas municipais e federais negadas ou perdidas por falta de prazos e documentos. Magrão, apoiado no balcão que testemunha seus sonhos há mais de dez anos, destila um discurso contundente contra o poder público: “Ajudar a Quadra Cultural não é mérito: é obrigação”, desabafa.
Se o evento de fato sairá ou não, ainda não é possível dizer. Ele insinua que caso não consiga os apoios necessários, os frequentadores do bar agitarão algum protesto. Talvez algo nos moldes do abraço coletivo que foi dado no boteco quando um abaixo-assinado e uma fiscalização ameaçaram de fechamento o espaço.
Enquanto isso, o agitador cultural segue ocupando o São Francisco à sua maneira: comprou duas lojas na frente do Torto. Investiu o dinheiro da venda do seu apartamento para adquirir o local antes que um possível concorrente o fizesse. Tem planos de voltar a Londres, mesmo que não saiba se conseguirá entrar. Dando certo ou não, a certeza é que voltará com a mala cheia: cheia de histórias. O Magrão é realmente muito bom de papo.
*Matéria escrita por Luiz Andrioli e publicada originalmente na edição 159 da revista TOPVIEW.