Conheça a Gastromotiva, iniciativa do curitibano David Hertz que está mudando vidas por meio da gastronomia
Era a semana anterior à inauguração de um grande projeto e David Hertz cuidava para que tudo saísse perfeito. Entre a supervisão da obra do restaurante RefettoRio (que transformará as sobras de ingredientes da Vila Olímpica em jantares assinados por grandes chefes e servidos a moradores de rua do Rio) e sua incansável busca de doações – seja em espécie ou em guardanapos – o chef e empreendedor social arrumou um tempo para responder a esta entrevista. David, 42 anos, é curitibano e aos 18 deixou a cidade para viajar pelo mundo. Sete anos por diversos países lhe renderam a descoberta da gastronomia. De volta ao Brasil, formou-se na área pelo Senac Águas de São Pedro. Seguia o rumo natural de um chef, trabalhando em bufês e restaurantes, quando teve um insight que mudaria não apenas a sua vida, mas a de outras 85 mil pessoas (até agora): em 2006 abriu as portas de sua própria cozinha para ensinar gratuitamente jovens da periferia de São Paulo a cozinhar.
Assim nasceu a Gastromotiva, inicialmente como um curso de auxiliar de cozinha para jovens de baixa renda, aliado a uma rede de restaurantes interessados nessa mão de obra. Dez anos e 2 mil formados depois, a organização toca projetos voltados a presidiários, empreendedores e de combate à obesidade infantil. O curso de capacitação – atualmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Coacalco (México) e em breve em Curitiba – tem poder multiplicador por meio do Trabalho de Ação nas Comunidades (TAC). Os alunos retornam às suas comunidades para repassar o conhecimento – daí as 85 mil pessoas impactadas. “O diferencial do curso é a sua preocupação com a cidadania”, diz David. Hoje a Gastromotiva é reconhecida internacionalmente, já abocanhou diversos prêmios e conquistou o apoio de chefs reconhecidos no Brasil e no mundo. Conheça a Gastromotiva, iniciativa do curitibano David Hertz que está mudando vidas por meio da gastronomia
Top View: Qual era a sua visão para o futuro da Gastromotiva na época em que começou?
David Hertz: Durante os anos que passei viajando descobri minhas maiores paixões: pessoas, comidas e lugares. Os países que mais me marcaram foram a Índia e o Canadá. A Índia tem muitos problemas, mas as pessoas não sentem medo de sair na rua. De alguma forma, a diversidade religiosa e a estrutura das castas trazem respeito pela vida e pelo espaço uns dos outros. Por outro lado, me lembro que no Canadá meus amigos, que no verão limpavam piscinas e no inverno a neve, tinham condições de passar suas férias em Miami. Eram pessoas simples, mas viviam uma vida com dignidade, fazendo serviços que não recebem o devido valor na sociedade brasileira. A Gastromotiva é uma das formas que eu encontrei para contribuir para essa visão de sociedade mais justa e com mais oportunidades para todos.
TV: A aposta da Gastromotiva é na força transformadora da comida. Como se dá essa força?
DH: Qual é a coisa mais presente nas nossas vidas, que acontece em qualquer sociedade, em qualquer cultura, no mundo todo? Comida! Todas as pessoas precisam comer, não importando a classe social, cor da pele, religião, idade ou gênero. A comida pode ser a ferramenta mais poderosa para transformações de vida, para o desenvolvimento social e econômico, e tem o poder de influenciar e criar novas políticas públicas.
TV: Quais são as maiores dificuldades para manter a organização?
DH: No início, foi convencer pessoas e empresas sobre o nosso modelo de negócio e visão. Nos últimos 10 anos o mundo mudou muito e as pessoas se tornaram mais sensíveis aos temas relacionados à humanidade. Desde a crise financeira de 2008 muitos começaram a repensar qual o seu papel no mundo. Hoje eu vejo muita gente com vontade de trabalhar junto para o desenvolvimento do nosso país. Nossos desafios como organização são como gerar mais impacto e escala com recursos financeiros tão limitados para investimento social. O governo deveria dar mais atenção ao terceiro setor – que é seu maior aliado quanto às políticas públicas. Hoje existem leis de incentivos fiscais para projetos relacionados à cultura, mas não para projetos sociais de outra natureza – e atuar nesse sistema, sem benefícios para o doador, é muito difícil. E, por fim, embora já tenhamos feito muita coisa, ainda estamos em poucas cidades, mas para isso precisamos de mais patrocinadores e apoiadores.
TV: Falando em crescimento, neste ano a Gastromotiva iniciou sua expansão internacional. Por que o México?
DH: No ano passado, chefs mexicanos e empresários demonstraram interesse em levar o projeto para lá, que tem os mesmos problemas de desigualdade social daqui. E com o crescimento do mercado de gastronomia, é necessário pessoas capacitadas para trabalhar. Alejandro de La Pena, dono do Grupo Son de restaurantes, foi o responsável por tornar isso uma realidade. Formamos a primeira turma em julho.
TV: Nesses mais de 10 anos, você deve ter sido tocado por muitas histórias. Você pode contar algumas delas?
DH: Temos a Uridéia Andrade, que teve uma infância difícil no sertão, veio para São Paulo e ouviu todos os nãos que a vida podia lhe oferecer, até que descobriu a cozinha. Foi nossa primeira aluna e hoje é uma grande empreendedora, dona de seu próprio bufê e contrata diversos ex-alunos da Gastromotiva. Temos também o Diego Santos, que durante o curso se apaixonou pela ecogastronomia. Após o Gastromotiva, se formou em eventos e cursou um MBA em gastronomia, fez carreira em um restaurante vegetariano de São Paulo e recebeu uma bolsa de estudo para estudar na University of Gastronomic Sciences (UNISG), do movimento Slow Food, na Itália. E a Renata Camargo, que sempre morou em uma comunidade carente de São Paulo e após o curso da Gastromotiva se viu com uma necessidade enorme de compartilhar o que aprendeu. Hoje ela é coordenadora do curso e virou uma grande referência para todos os alunos. São apenas três histórias dentro de um universo muito maior.
TV: Como está a viabilização de novas turmas do Gastromotiva nos presídios?
DH: Esse projeto desenvolvido em São Paulo tem um potencial enorme, que impacta a reintegração dos presos. Estudos nos Estados Unidos mostram que, dando as ferramentas certas, dignidade e esperança para ex-presidiá- rios, pode-se reduzir em até 60% a reincidência. Por isso, gostaríamos de dar continuidade ao programa e estamos discutindo com o governo como nós poderíamos viabilizá-lo. Deve acontecer mais uma vez neste ano. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) também demonstrou interesse em investir nesse projeto.
TV: Você tem algum algum projeto preferido?
DH: Não tenho. Acredito em todos os trabalhos que a Gastromotiva realiza hoje, e desejo que ela possa cada vez mais contribuir não só para a qualificação profissional de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, mas inspirar e engajar a sociedade com temas ligados à gastronomia social. Dessa forma, pretendemos colaborar desenvolvendo projetos para a saúde, de valorização cultural, de empreendedorismo e gerar pontes entre o morro e o asfalto. Nos toca muito o desperdício de alimentos e os altos números de obesidade entre nossas crianças. Queremos também contribuir para que as políticas públicas sejam mais eficazes e que de fato gerem transformação. Mas ainda somos uma organização pequena e com recursos muito limitados, o que dificulta a ampliação de projetos.
*Matéria originalmente publicada por Érika Busani na edição 190 da revisa TOPVIEW.