PODER PERSONALIDADES

A voz das vozes do Paraná

Especialista em contar as histórias de agentes do desenvolvimento no Paraná, o jornalista Aroldo Murá compartilha sua história

Por: Brenda Iung

Para José Saramago, “fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”. Conforme a Bíblia Sagrada, em Provérbios 10:7, “a memória do justo é abençoada”. Para a ciência, a memória ainda é um desafio, um mistério.

Literatura, ciência e fé. Três elementos que ora andam juntos, ora separados. Completam-se e se refutam. Já na vida do jornalista gaúcho – com alma paranaense – Aroldo Murá Gomes Haygert, esses são conceitos essenciais.

Murá nasceu em 1940, na pequena cidade de São Francisco de Assis (RS). Conhecido como Querência do Bugio, o município tem pouco mais de 18 mil moradores. Com apenas oito anos, o jornalista mudou-se para Irati (PR). E assim começou uma relação de amor e fidelidade com o estado ao qual, agora, dedica o seu trabalho.

O amor da mãe pela literatura e do pai pelo estudo dos cidadãos – Manoel Haygert fundou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, de Londrina – pode ter influenciado a carreira de Murá. No entanto, ele destaca outro ponto importante para a inclinação a contar as histórias que guarda quase fotograficamente: “a vida sempre me colocou ao lado da memória.”

O jornalista apresenta um currículo impecável de lembranças. Não só nas paredes de casa – nas quais exibe a própria trajetória e o caminho percorrido por artistas, em sua maioria paranaenses –, mas também nas histórias que traz com uma riqueza invejável de detalhes.

Uma delas remete à época em que ele ainda era pequeno. Em uma das visitas de Getúlio Vargas (1882-1954) a Curitiba, Murá e os irmãos acenavam animados para o então presidente, que notou e, mais tarde, enviou uma bandeja com guloseimas para as crianças. Murá conta essa história com, possivelmente, o mesmo brilho nos olhos com que avistou a bandeja recheada enviada por seu conterrâneo.

“Eu me formei tarde, com 29 anos”, afirma. Isso, no entanto, não o impediu de ser, mais uma vez, enlaçado pela memória. O autor estudou Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), quando ainda era chamada de Universidade Católica e tinha sede ao lado do Teatro Guaíra.

“Eu entrei na faculdade em 1960, no momento em que o jornal impresso era único e até um ditador”, conta. Seu primeiro emprego foi na antiga revista Clube, de Dino Almeida (1937-2001), antes mesmo de entrar na faculdade. A publicação trazia colunas sociais e perfis de grandes personalidades paranaenses. Esse foi o primeiro contato concreto de Murá com o ato de contar as histórias dos cidadãos. Mais tarde, já na faculdade, trabalhou no extinto O Diário do Paraná. Lá, conheceu Paulo Leminski (1944-1989), Sylvio Back e Luiz Geraldo Mazza.

Murá viveu um dos momentos mais importantes – e mais delicados – do jornalismo brasileiro: a Ditadura Militar (1964 – 1985). Na época, ele dirigiu o jornal Voz do Paraná, um dos maiores símbolos da resistência paranaense ao regime militar.

“Não foi fácil o jornalismo da época”, recorda, com pesar. Murá relembra que A Voz do Paraná “tinha cometido um grave pecado”: mencionar a cassação do governador do Paraná, Haroldo Leon Peres (1922-1992), em 1971. A equipe teve acesso à edição censurada da Veja, que continha a notícia. Murá reproduziu o material – igualmente censurado.

O escritor conta que, diariamente, os militares entregavam “bilhetinhos” com os itens a serem proibidos – o jornalista Mussa José Assis (1944 – 2013) guardava um a um. Já ele não o fez.

Carreira de Aroldo Murá

Em mais de 60 anos, o gaúcho conheceu o país ao ser repórter para a Esso, trabalhou no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, atuou na Biblioteca Pública do Paraná, participou de conselhos da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) escreveu para o Correio de Notícias e para a Gazeta do Povo. Apresentou, ainda, o Domingo VIP, programa da RICtv, do Grupo Ric.

Ele também escreveu a série de livros Memória da Curitiba Urbana, para o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), trabalho que classifica como “muito gratificante”. Nele, contava a história de pessoas que fizeram a diferença para o planejamento urbano na capital.

Escritor nato de perfis, também é autor de Seu Nome é João. O livro, publicado pela Editora Esplendor, conta a história do ex-Governador do Paraná João Elísio Ferraz de Campos.

Murá fundou e preside o Instituto Ciência e Fé. De cunho ecumênico, a entidade reúne esses dois caminhos de estudo, promove debates e fomenta pesquisas. Além disso, também já foi reconhecido como Comendador pela Ordem do Pinheiro – título emoldurado em um local de destaque na parede de sua sala.

Foi por volta dos anos 1980 que ganhou o título pelo qual é reconhecido no Paraná: “Professor Aroldo”. Deu aulas na PUCPR e, por manter o vínculo com os alunos, passou a ser chamado assim fora das salas de aula. Muitos dos alunos tornaram-se, também, colegas de trabalho.

A ex-governadora do Paraná Cida Borghetti é uma das principais apoiadoras do Vozes do Paraná.
Uma das edições conta com um perfil do fundador dos Grupos Ric e ND, Mário Petrelli.
O arquiteto, urbanista, ex-prefeito de Curitiba e ex-governador do Paraná, Jayme Lerner (1937 – 2021), foi personagem da 2ª edição do livro. (Crédito: Jonas Oliveira)
Murá conviveu com o poeta Paulo Leminski no início da trajetória do artista.
Em 2018, o advogado e professor René Dotti recebeu o título de Grande Porta-Voz do Paraná.

 

Em uma longa passagem de tempo, Murá relata os anos 2000. O professor, nessa época, atuava na revista Ideias, do jornalista Fábio Campana (1947-2021). Ao escrever um perfil da ex-primeira-dama do Paraná, Fernanda Richa, percebeu haver mais a ser falado – não só sobre ela, mas, também, sobre as pessoas que, diariamente, fazem o Paraná acontecer.

Para o Fábio Campana, o professor defendeu a ideia: “vamos fazer algo que reflita melhor a nossa preocupação com a história corrente do Paraná.” “Contamos a história de pessoas que não são lembradas pela história oficial”, contextualiza Murá. Assim, surgiu o livro Vozes do Paraná, projeto que deu reconhecimento à memória de Murá e ajudou a trazer credibilidade aos personagens do estado.

Voze do Paraná

A primeira edição do Vozes do Paraná foi lançada em 2008, com 32 perfis, entre eles: Fernanda Richa, os radialistas Airton Cordeiro (1942-2019) e Luiz Carlos Martins, o arquiteto Manoel Coelho (1940-2021). E, embora a História não admita coincidências, o reitor da PUCPR da época, Ir. Clemente Ivo Juliatto (1940-2022), e o sucessor, Waldemiro Gremski.

Hoje, na 13ª edição, já homenageou as memórias de mais de 280 personalidades do estado. Os perfis são escolhidos pelos feitos, pela diversidade e pelas contribuições que trouxeram ao estado. O número de nomes para os livros não é fixo e também depende das conversas de Murá – que, frequentemente, compromete-se a conta as histórias das pessoas com quem conversa.

Em uma das publicações, a sétima, o livro precisou ser impresso em edição dupla para dar conta dos 40 perfilados. A próxima edição, já em andamento, contará a história de mais 15 pessoas.

As entrevistas são feitas, em sua maioria, na sala de casa do professor. Rodeada por objetos de arte e memórias familiares, o local é propício para dividir histórias. Dali, saem os perfis, que buscam trazer o lado positivo de cada uma das histórias.

“Dizem que eu escrevo livros de elogios, mas, se junto ao elogio veio uma parte substancial da história do Paraná, justificou-se”, rebate o professor. Ainda assim, definiu uma regra: nenhum dos perfilados lê o próprio perfil antes do lançamento do livro.

A equipe enxuta, composta por André Nunes, Jubal Dohms e Maria Luiza Nascimento Mendonça, ajuda a escrever, revisar e diagramar os materiais. E conta com o apoio de um casal – cuja importância para a viabilidade do projeto é reforçada por Murá –, Elin Tallarek e Luiz Fernando de Queiroz. Unem-se a eles, como facilitadores, diferentes personalidades do Paraná, incluindo a ex-governadora Cida Borghetti.

Nos mais de 10 anos do projeto, Murá já foi procurado pela imprensa nacional e internacional para ajudar a traçar o perfil de paranaenses em destaque. Entre eles, Gleisi Hoffmann e o neurocirurgião Ricardo Hanel, que atua em Boston, nos EUA.

Essa credibilidade faz do Vozes do Paraná uma coletânea rara, mas que ainda conta com exemplares em plataformas online, sebos e até mesmo com o próprio autor. Nas edições anteriores, há perfis de Mário Petrelli (1935-2020), Leonardo Petrelli (que também já recebeu o título de Grandes Vozes do Paraná), René Dotti (1935-2021), Zilda Fraletti, Luiz Geraldo Mazza, Eduardo Pimentel Slaviero, Mara Cornelsen e Jayme Lerner (1937-2021).

Ao todo, o acervo já reconheceu 56 comunicadores, 52 empresários, 34 políticos, 34 artistas e escritores, 26 advogados e juristas, 25 médicos e profissionais da saúde, 13 religiosos de diferentes vertentes, sete engenheiros e dois arquitetos. Todos contribuíram para o desenvolvimento do estado.

Os livros, as memórias e o trabalho do professor Aroldo reforçam um conceito dele: “a história se faz todos os dias”.

 

No hall do apartamento, uma galeria com as próprias
memórias – vistas sob a ótica de outros jornalistas. (Crédito: Brenda Iung)

 

*Matéria originalmente publicada na edição #269 da revista TOPVIEW e produzida por Brenda Iung.

*Crédito das imagens: Brenda Iung, AscomPR, Jonas Oliveira, Drico Kremer, Divulgação | SMCS e Arthur Cordeiro.

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