Samuel Cavalcanti: o embaixador da cerveja artesanal
Samuel Cavalcanti parece ter saído de uma história em quadrinhos. O ar meio Einstein meio Chapeleiro Maluco conferido pelos cabelos grisalhos e desgrenhados cabe perfeitamente nessa figura que passa a maior parte do dia arquitetando fórmulas em seu laboratório – lugar que ele chama de “meu ateliê”. Metido em um uniforme que leva a cara de um bode coroado, Samuel cria cervejas. Mas não só isso. Pernambucano que há anos trocou sua ensolarada terra natal pela instável Curitiba, ele montou na capital paranaense a primeira cervejaria-escola do Brasil em 2009 – a Bodebrown. Passados apenas quatro anos, tornou-se estrela no mundo cervejeiro conquistando mais de 40 prêmios nacionais e internacionais, entre eles o de Melhor Cervejaria do Brasil de 2013 no Festival Brasileiro da Cerveja.
Em amalucada explanação sobre a participação de soldados escoceses na invasão holandesa do Brasil colonial,
Samuel encontra uma justificativa para sua paixão pessoal pela cerveja escocesa, mas principalmente por sua Wee Heavy, uma das cervejas que em 2009 abriram os trabalhos da Bodebrown. Inspirada em uma receita preservada por monges escoceses desde 1719, é uma clássica scotch ale encorpada e com doçura residual do malte evidente, aromas maltados, tostados e turfados de amargor médio-baixo e de coloração cobre avermelhada. Primeira do estilo no Brasil, foi premiada com Medalha de Ouro no Mondial de La Bière no Canadá em 2011.
Até há pouco tempo quase ninguém falava assim quando tomava uma cerveja no Brasil. Mas um movimento que leva a bebida de cereais fermentados mais a sério surgiu. Como se imitasse o que aconteceu com os vinhos nos últimos anos. E Samuel tem agitado essa mudança de cenário.
Com um Viva la Revolución estampado no site da Bodebrown, o pernambucano-curitibano revela a tendência que não pode ser mais ignorada: sede geral por um produto que vá além das simplistas cervejas comerciais da grande indústria. Só em Curitiba nasceram quase dez cervejarias artesanais nos últimos anos. “A revolução está na hora que a pessoa bebe e percebe mais aromas, mais sabor”, explica. “Ela descobre que estava escrava das cervejas mainstream, que têm menor índice de rejeição, uma vez que delas se tira a parte dos aromas, sabores a amargor, fazendo com que dez entre dez bebam dizendo que está bom.”
A escola anexa à Bodebrown nasceu para iniciar os sedentos consumidores nesse mundo cujas sensações os brasileiros conheciam muito pouco até agora. Lá se ensina a fazer cerveja de panela em casa (Homebrewing) e também a degustar e harmonizar as loiras, ruivas e morenas com cardápios variados. A iniciativa fez de Samuel uma espécie de embaixador da cerveja artesanal. Ele não só ajudou a formar apreciadores, como interessados em fazer da bebida um negócio. André Junqueira, antigo aluno, hoje presidente da Associação das Microcervejarias do Paraná (Procerva-PR) e dono da Cervejaria Morada Cia. Etílica, concorda: “É preciso informar o consumidor para que ele tenha discernimento e possa apreciar as cervejas que estão aí.” Para Samuel é tempo de evolução sensorial. Pela internet e viajando, o público conheceu a riqueza das cervejas de outros lugares. “Por isso o boom das artesanais. E esse tempo não é passageiro”, garante ele.
Bode o quê?
Vovó Amélia tem muito a ver com a paixão que o químico formado na PUCPR coloca no seu feitio da bebida. Se na faculdade a história da alimentação da humanidade já o fascinava, foi num telefonema para essa senhora culta que Samuel tomou a primeira lição: um produto artesanal merece carregar uma história sentimental que pouco se vê nos industrializados. Ele queria dar à sua cerveja um nome estrangeiro e ligou para vovó contando a novidade. “Se o nome não tiver uma relação com a família, a coisa vai virar pó”, lançou a velhinha sem dó nem piedade. Há mais de um século os Cavalcanti criavam bode no sertão e vendiam o couro do bicho do Nordeste ao Sul do Brasil. Tinha que ter bode aí! Um empurrãozinho de James Brown, que cantava no rádio I feel good, cunhou a marca naquela manobra de misturar línguas que o pernambucano adora. “Bode…brown”, dizia Samuel timidamente quando ouvia o frequente e debochado “Bode-o-quê?”. Os triunfos futuros seriam suficientes para convencer que o caminho era o certo e que vovó tinha razão.
A penosa saga do bode
Mas caminho certo não quer dizer caminho fácil. A trajetória das cervejarias artesanais passa por obstáculos. Microcervejeiros como Samuel (que produz 16 mil litros por mês) arcam com o mesmo volume de impostos aplicados às grandes fabricantes, que produzem milhões de litros mensais. A mega tributação acaba em uma cerveja que custa de 5 a 10 vezes mais que as variedades tradicionais. Some-se a isso as matérias-primas mais caras – entre elas, maltes especiais e leveduras importados que Samuel gosta de chamar de suas Ferraris e Lamborghinis. Segundo André Junqueira, 60% do valor de uma garrafa de cerveja se esvai em impostos e fica difícil colocar a bebida a um preço atraente no mercado.
Outro obstáculo é a pouca parceria com bares e restaurantes, que poderiam favorecer mais a inserção do produto, apesar do preço. Para André e Samuel, a experiência da cerveja só se completa mesmo com uma boa comida acompanhando. Os brewpubs – bares que produzem e servem a própria cerveja no mesmo local – são apontados como uma solução para se fazer conhecer a bebida. Mas no Brasil não há uma legislação específica sobre esse tipo de empreendimento e o máximo que as cervejarias artesanais conseguem fazer, com algumas poucas exceções, é instalar bares para degustação em suas fábricas. Não servem ao propósito. Acabam localizados em zonas industriais ou longe das áreas mais badaladas das cidades.
O bode versus a Revolução Industrial
“É chato que isso aconteça porque além de mostrar que há cerveja boa, estou comprometido com um resgate cultural”, defende-se Samuel, que vislumbra recuperar valores que a Revolução Industrial destruiu. Antenado com o resgate de tradições e receitas perdidas para a alimentação industrializada, ele acredita que incentivar quem faz e fornece localmente seu produto artesanal transforma para melhor a vida nas cidades. Para ele, uma boa cidade se faz de dentro para fora. “O bombardeio de produtos industrializados vem por todos os lados. Não acho totalmente ruim, afinal eu sou um cientista, olho para o futuro. Mas ao mesmo tempo vejo que não se pode perder os valores e tradições artesanais do passado”. Aliás, está nos planos do empresário lidar com os pães de fermentação espontânea feitos com os insumos restantes da fabricação de cerveja numa interessante união com outros empresários engajados em iniciativas artesanais.
Novidades vêm por aí. Enquanto isso não acontece, ele lamenta a burocracia com alvarás e a falta de uma revisão tributária. “Queremos gerar emprego, melhorar a cidade, apoiar o hábito de beber menos e melhor – e, se beber, não dirigir.” Beber menos? Sim. Não é porque ele é cervejeiro, que curte beber litros de loirinhas por dia. Samuel ama as bem lupuladas e alcoólicas, não gosta das muito leves e menos ainda de beber muito o dia inteiro. Valoriza a experiência.
No Réveillon talvez abra uma Brut da Wäls (elaborada com leveduras de champagne, complexa e delicada) ou uma 4 Blés da Bodebrown (tipo abadia, com 4 trigos, levedura canadense, damasco, tâmaras e chips de carvalho) esperando que em 2014 os obstáculos para a evolução cervejeira no Brasil comecem a ser todos removidos.
Direto da Fonte: na última edição do Mondial de La Biére, realizado em novembro no Rio de Janeiro, a Bodebrown lançou as growlers, garrafas com tampa de pressão que podem ser reutilizadas. Em tamanho para dois e três litros, convidam o consumidor a passar na Bodebrown e encher a garrafa com seu rótulo preferido direto da fonte.
Uma razão, uma cerveja
“Tem que haver motivo para uma cerveja nascer”, disse Samuel. Mônica, bela loira que circula na Bodebrown, foi um. Noiva do cervejeiro e colega de profissão, um dia ela reclamou que ele passava mais tempo trabalhando que juntinho dela. Ele, então, correu para o laboratório a fim de transformar seu nobre sentimento em cerveja. Descobriu o conto do poeta Ovídio, que viveu na Roma Antiga, no qual Píramo e Tisbe são jovens apaixonados que não ganham consentimento dos pais e fogem. A fuga é uma sucessão de equívocos e termina com a morte do casal e seu sangue derramado aos pés de uma amoreira branca. Os deuses se comovem e decidem que, após sete dias, as frutinhas brancas ganharão a cor vermelho-sangue do amor. E Samuel, também tocado, decide que a cerveja dedicada à Mônica (uma belgian tripel de trigo) será branca sete dias para, no oitavo, receber o sangue mitológico do amor de Píramo e Tisbe – mais precisamente, amoras vermelhas. Nasce assim, a Cerveja do Amor, mais um rótulo (com motivo) assinado pelo mestre cervejeiro Samuel Cavalcanti.