PODER PERSONALIDADES

Nas mãos de Alexandre Linhares e Thifany Faria, a moda curitibana vira arte

Vestindo nomes como Letícia Sabatella e Elza Soares, a dupla por trás da H-AL diferencia-se pela moda artística, cuja roupa faz bem mais do que vestir

Entrar na H-AL é passar de uma tímida porta do lado de fora para um mundo de arte em cabides no interior. É esse tipo de transformação que Alexandre Linhares Neto – finalista do Prêmio Personalidades TOPVIEW na categoria Moda – e Thifany Noelle Faria, sócios há mais de dez anos na marca H-AL – antiga Heroína –, empreendem, com roupas que ultrapassam os conceitos de estética e moda como os conhecemos.

Alexandre começou sua carreira em moda em 2002, quando montou sua primeira marca de roupas, a nuvem. Naquela época, ele pintava camisetas e as revendia, principalmente para amigos. Já Thifany tinha experiência com atendimento ao público desde jovem, graças à lanchonete dos pais. Quando se conheceram, em 2006, ela trabalhava como gerente em uma loja de shopping e ele estava mergulhando de cabeça no projeto da Heroína.

Em 2007, lado a lado como estilistas, começaram a desenvolver um trabalho autoral focado em explicitar suas visões de mundo. Intitulando suas roupas “arte vestível”, eles já realizaram trabalhos performáticos no Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC) e no Museu Oscar Niemeyer, vestiram nomes como Elza Soares e Letícia Sabatella e, há cinco anos, participam da Bienal de Curitiba. Nesta edição, exibem o projeto “8 visões”, composto por um outdoor de tecido, um filme e um texto projetado. O projeto também foi apresentado em uma performance na noite de abertura da Bienal de Curitiba 2018, e é uma criação de H-AL com a participação da Curitiba Cia de Dança.

Desde 2015 a dupla trabalha com 95% das coleções apenas com retalhos e resíduos da indústria têxtil, além de produzir desfiles independentes e espetáculos autorais. Na entrevista a seguir, realizada no ateliê da dupla, Alexandre e Thifany falam sobre moda, a importância do ecodesign para a sua criação, e o que o ato de “se vestir” significa para a formação da identidade pessoal de cada um.

“O mesmo trabalho que fazemos com a roupa se faz com uma tela ou em uma performance ou no teatro.” – ALEXANDRE

Final do desfile “Muitas cáries numa Boca Maldita”, no Teatro Guaíra, em 2015. (Foto: Ana Willerding.)

Vocês chamam seu trabalho de “arte vestível”. O que querem dizer com isso?
Alexandre: Nosso trabalho é produzido distante de um processo tradicional de moda. O mesmo trabalho que fazemos com a roupa se faz com uma tela ou em uma performance ou no teatro. Ou seja, o pensamento que faz nascer a nossa roupa é o mesmo pensamento desses outros trabalhos artísticos. A diferença é que a roupa é passível de ser usada no corpo.
Thifany: E são peças que abrem diálogos, que fazem questionamentos. Eu não identifico o nosso trabalho na ideia que se tem hoje de moda. Acredito que o que fazemos traz muito mais questionamentos do que só vestir uma roupa. O próprio ato de vestir a roupa já é um diálogo. Em roupas comuns, por exemplo, você escuta: “Ah, sua roupa está legal”. Já a nossa roupa gera exclamação, do tipo: “Por que você está vestindo isso?”. Essa indagação, para mim, já é estar filosofando sobre se vestir.

“Acredito que o que fazemos traz muito mais questionamentos do que só vestir uma roupa.” – THIFANY

Podem me explicar um pouco sobre o conceito de ecodesign na arte de vocês?
Thifany: Desde o começo da Heroína nós trabalhamos com esse conceito. Os retalhos que sobravam de algumas peças eram convertidas em novas peças. Em 2015, o Alexandre fez a especialização em ecodesign e, em 2016, eu fiz um curso em slow design. Logo depois, por meio de um amigo do Alexandre, surgiu uma proposta de trabalhar com os resíduos de uma indústria de lycra. Daquele momento em diante, abriu-se a porta para a chegada de muitos resíduos para a gente. Desde 2015, trabalhamos 95% das coleções só com resíduos. Chegam até nós lycras, rendas, tules, malhas… e as nossas coleções são construídas a partir do que a gente recebe.
Alexandre: Até o restinho que sai na overloque é transformado em enchimento de bonecas e almofadas. Também não são eliminados resíduos químicos na água, tomamos cuidado extra na hora de tingir peças de roupas, colocando outros tecidos embaixo para que nada precise ser lavado e descartado na água. Esses são os parâmetros do ecodesign que nós usamos, mas existem várias maneiras de trabalhar com ele.

“Essa foto foi em setembro deste ano. Fizemos a performance de pintar alguns painéis, dando início à linha que estamos desenvolvendo com a Inove Design.”, explica Alexandre. (Foto: Cyntia Hein.)

Pensando nesse reaproveitamento, acreditam que a roupa traz consigo histórias passadas? É algo que vocês pensam na hora de fazer arte?
Alexandre: Sim. Nós não só recebemos resíduos, como também toalhas de mesas antigas, lençóis, cortes antigos que as pessoas estavam guardando da mãe ou da avó. Acreditamos que todo pedaço de tecido traz histórias.
Thifany: Uma vez recebemos um lote de retalhos de linho que tinham pertencido a um casal que fazia camisas. Enquanto eu emendava esses retalhos, eu só pensava no carinho que aquelas pessoas tinham por aquelas roupas, guardadas há tanto tempo. Também já recebemos retalhos de vestidos de noivas e eu fico pensando: “como isso não ia me trazer histórias”? Eu digo que são fragmentos de celebração. No momento em que a pessoa foi fazer esse vestido, ela estava impregnada de amor e esperança, e isso passa para nós também.

“Queremos que as roupas representem você, suas causas, sua visão de mundo, a maneira como você se apresenta no mundo.” – ALEXANDRE

Quando a paixão por moda e pelo ato de se vestir surgiu na vida de vocês?
Thifany: Quando nova, eu só comprava em brechós, porque as lojas de departamento me irritava um pouco, eu não sentia que tinha roupas para mim nelas. Então, eu comprava tecidos e levava na costureira perto de casa, porque eu queria os vestidos da Dona Nenê, da Grande Família. Posso dizer que eu gostava de me vestir, mas sem prestar muita atenção a isso. Eu só queria que as roupas me identificassem. Queria que elas representassem quem eu era de fato, porque eu nunca quis ser só mais uma.
Alexandre: Eu tenho uma memória bem afetiva do ato de me vestir, mas também não encontrava o que gostava para vender. Eu tinha duas tias que ganhavam a vida costurando, então eu sempre ia até elas e sugeria peças para serem feitas. Hoje, eu já vejo o “me vestir” de duas formas: no dia a dia, eu me visto confortavelmente. Preciso que minha roupa me ajude a atravessar o dia, a trabalhar, andar de bicicleta. Em dias especiais, quando eu preciso usar uma roupa específica, aí eu presto mais atenção na construção dela.

Durante o Deforma, em 2013. (Foto: Luiz Costa)

A moda é política?
Alexandre: Acreditamos em uma liberdade de se vestir. Queremos que as roupas representem você, suas causas, sua visão de mundo, a maneira que você se apresenta no mundo. Eu acho que qualquer atividade criativa é política. Explicitando o seu ponto de vista, você está comunicando algo para o outro. Uma camiseta é uma tela em branco e ela vai receber o que quer que você coloque nela.

Quais são as suas inspirações para criar os desfiles?
Alexandre: Precisamos mostrar o trabalho recente, mas nunca é somente sobre as roupas, tem toda uma bagagem que vem junto com esses objetos que estão sendo usados no corpo. Cada tema da coleção ou cada mensagem que está sendo trabalhada, a gente apresenta de uma maneira distinta. Já apresentamos desfiles oficiais, em semanas de moda, já apresentamos na calçada ou dentro da loja. Já trabalhamos com vídeo, exposições e performances. Cada coleção é única, então, cada maneira de apresentar uma coleção é única também.
Thifany: O que eu mais gosto nos desfiles sãs as narrativas, porque tiramos as pessoas da zona de conforto.

Para o Id Fashion, em 2017. (Foto: Mel Gabardo.)

Vocês tinham o desejo de seguir por outro caminho? Qual?
Alexandre: Por várias vezes eu me aventurei por outras vertentes criativas, como quadros e pinturas. Mas eu sempre tive desejo pela moda, sempre achei realmente lindo.
Thifany: Eu sempre quis fazer filosofia, queria ser uma filósofa. Não sabia se seria professora, mas sempre tive uma busca infinita pela verdade. Hoje eu vejo que faço isso criando roupas. Espero que em breve eu possa fazer mais ainda, dentro da minha busca pessoal.

De toda a trajetória, podem apontar um ponto alto?
Thifany: Todos os degraus que subimos são pontos altos. Foi uma caminhada em que evoluímos. Eu posso dizer que, hoje, estar na Bienal [de Curitiba] e no MON [com uma performance em comemoração aos 25 anos da Bienal] é um ponto alto. Mas, em 2010, desfilar no PBC [Paraná Business Collection] também foi um ponto alto. Estar com uma marca há mais de 11 anos no mercado é um ponto alto.

“Não nos rendemos às tendências ou imposições de mercado.” – ALEXANDRE

Quais são seus próximos passos?
Alexandre: Estamos com trabalhos novos. Estamos fazendo o figurino para a Curitiba Companhia de Dança, acabamos de entregar o figurino para o grupo Mulamba, que vai ser lançado em dezembro. Estamos expondo na Bienal.
Thifany: Eu tenho um projeto de roupa infantil, porque queria trazer, por meio dos pais, essa reflexão para as crianças. Mas de uma forma mais ampla, estamos planejando o crescimento para a empresa, queremos nos dedicar à arte têxtil. Nosso projeto atual é um cronograma em que a gente possa concluir todos os nossos projetos, pessoais e profissionais.

Alexandre e Thifany na Bienal deste ano, com o projeto “8 visões”. (Foto: Mariana Alves.)

Quando não estão envolvidos com o trabalho, o que gostam de fazer?
Alexandre: Ficamos bastante tempo envolvidos no trabalho. Quando não, eu gosto de me dedicar a cozinha. Somos vegetarianos e nem sempre encontramos comida facilmente no dia a dia. Por isso, gosto de cozinhar no tempo livre.
Thifany: Eu gosto de ver o pôr do sol na Praça das Nações. Também gosto de meditar, de ler estudos budistas, adoro fazer escalada, andar de bicicleta por lugares desconhecidos… Mas, claro, ler, ouvir música e receber amigos para um vinho e um jantar.

“Somos seres completamente diferentes, cada um de nós é um mundo. Não tem como sempre vestirmos roupas iguais.” – THIFANY 

Por fim, qual é o seu diferencial no mercado?
Alexandre: É a constante experimentação no tecido. Não nos rendemos às tendências ou imposições de mercado. Nosso enfoque e compromisso é com o tecido.
Thifany: Eu acho que o uso dos resíduos também é um grande diferencial. Particularmente, eu procuraria consumir em empresas que não geram lixo. Também acho extremamente relevante uma marca que tem um traço autoral – e por onde a nossa roupa passa, as pessoas a reconhecem. O questionamento, sobre como é possível ficar bonita e se expressar dentro daquela peça, também é um diferencial. Afinal, somos seres completamente diferentes, cada um de nós é um mundo. Não tem como sempre vestirmos roupas iguais.

 

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