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Luci Collin: “A literatura nos coloca perante a nossa própria existência”

A escritora curitibana, autora de mais de 20 títulos, resiste diante da desvalorização da arte com a sua principal arma: a escrita

Em uma crítica no jornal Estadão, o autor afirma que A palavra algo mostra uma poeta em busca do caos. Não é o que parece quando sento na sala do apartamento bem iluminado de Luci Collin, no coração de Curitiba. “Minha família toda é do [bairro] São Francisco, então continuo aqui”, ela anuncia. Entre uma xícara de chá e bombons, a aclamada poeta, contista e professora universitária conversa, por horas a fio, sobre a paixão que a tirou do mundo da música: a literatura.

Mas os livros a chamaram muitos anos antes. A pequena Luci, aos quatro anos, espionava as aulas que sua mãe lecionava em casa. Achava sensacional como os sons se formavam – mas fazia tudo escondido da mãe, já que aquele ato era destinado apenas aos mais velhos. “Eu acordava cedíssimo, pegava livros enormes no escritório do meu pai  e começava a ler”, relembra, saudosa. Deixou a mãe estupefata no dia que perguntou o significado de uma palavra que tinha lido em uma obra do Jorge Amado. “O livro sempre foi meu passaporte para essa coisa misteriosa”. Hoje, ocupa a cadeira número 32 da Academia Paranaense de Letras.

Pouco tempo depois, Luci aprendeu, também, a ler notas musicais. Anos de prática resultaram em uma graduação em percussão e piano, diversos concertos e até participação na Orquestra Sinfônica do Paraná. “Minha relação com a poesia é totalmente a partir de uma noção de que não há uma separação possível entre música e poesia. O poema é uma entidade sonora”, reflete. Em sua sala, uma grande edição de Divina comédia, de Dante, divide espaço com um piano adquirido recentemente. Com sua aposentadoria do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), neste ano, pretende dedicar-se mais ao instrumento.

“Se eu vivesse tudo que meus personagens viveram, eu só poderia estar em dois lugares: ou presa ou num manicômio (gargalhada)”. Foto: divulgação.

Querer Falar é um de seus livros de poesia, lançado em 2016. O título sintetiza bem a relação de Luci com a literatura. Tem tanto a falar que já acumula mais de 20 títulos. Entre eles, A palavra algo, Prêmio Jabuti de melhor livro de poesia em 2017. Lançou o primeiro, também de poesia, aos 17 anos. No final de semana anterior a esta conversa, nos primeiros dias de junho, Luci foi a São Paulo lançar Fascinação, que escreveu a quatro mãos com o dramaturgo Flavio de Souza. No final do mês, lançará, na livraria Arte & Letra, seu novo trabalho: Rosa que está.

“Quando você compra um livro, está fazendo um pacto: eu aceito que eu vá sofrer uma intervenção”, analisa. O leitor, que aceitou esse compromisso, é parte essencial da obra de Luci: “Eu e meu leitor vamos juntos. Quero comover, ou seja, mover com o outro”.

Por mais que transite entre gêneros diferentes, em especial a poesia e o conto, a escritora sempre sabe o alvo de seus impulsos literários. Nunca aconteceu de um conto se transformar em um poema — ou vice-versa. Antes de mais nada, Luci sabe o fim de suas histórias – escreve de trás para frente. “O poema é mais um jorro”, compara. Luci trabalha, ainda, como tradutora. Já deu vida em língua portuguesa a livros de autores como Gertrude Stein, E. E. Cummings, Gary Snyder e Jerome Rothenberg.

Diante da realidade dura da arte no país, Luci não perde o otimismo. Vê importância em constatar a situação – que não é das melhores –, mas sem se abater, e sim agir imediatamente. No caso do escritor: escrever. “Não podemos ficar no ‘chororó’ de ‘não temos e não teremos’. Temos que pensar: ‘não temos e vamos construir esse espaço em que possamos existir com mais vigor’.” Uma conquista recente é a inclusão de uma de suas obras na lista do vestibular da UEM (Universidade Estadual de Maringá). “Além de ser emocionante, é um avanço, porque é uma literatura que provoca uma reação diferente.”

No bate-papo a seguir, que rendeu mais de três horas, na casa de Luci, a curitibana debate as funções do escritor e do livro, a relação da sociedade brasileira com a arte e o cenário literário no país.

Por que escrever?
Escrever está no hall das atividades humanas que considero mais essenciais, porque está ligada à expressão. A gente fala escrever, mas penso: “por que se comunicar?”. A gente se comunica pela escrita, mas em algum momento em que não estávamos articulados em função da escrita, da publicação e da leitura, também nos comunicamos. Escrever é, hoje, a maneira como a gente se vincula à expressão pela palavra, que sempre existiu. É tão vital quanto a respiração humana. A literatura possibilita uma expressão essencial de verdades, de elementos da nossa própria percepção e comunicação que são vitais. Não existe essa possibilidade de pensar essencialidades que não tratem da nossa própria humanidade, que não redimensionam a nossa própria humanidade. E coloco outra questão. A gente pensa que a escrita, dentro desse caos que se apresenta, é inútil. As pessoas fazendo coisas práticas e você vai fazer, como o Paulo Leminski chamou, o “inutensílio”. É exatamente aí que precisamos estar e produzir. A gente questionar o valor da escrita, dessa percepção especial, mostra não a fragilidade e desimportância da própria escrita, mas sim a doença da sociedade e a corrupção dos nossos valores sociais, emocionais, espirituais, psíquicos, filosóficos. É justamente o declínio de todos esses valores que faz com que a literatura possa parecer inútil. É só por isso. A literatura sempre esteve muito bem e é forte por si. Ela é digna, consistente e sólida por si. Então, por que escrever? Porque a literatura trata do que é real para o homem, do que é verdadeiro, belo e importante. Ela, como outras linguagens artísticas, nos ajuda a fazer uma re-dimensão. Nós nos olhamos, descobrimos coisas, mas mais do que isso , nós olhamos o outro. Nós estamos com o outro. E é essa a função máxima: nos colocarmos perante nossa própria existência. É inquestionável o valor da literatura — e das outras artes.

O livro é uma obra de arte como as outras?
Temos dificuldade de olhar o livro como uma obra de arte, mas ele é. Estou falando da função estética. A estética é a parte da filosofia que estuda esse impacto da arte nas pessoas. Ele não tem nenhum tipo de obrigação para além de sua função estética, que é de estimular leituras, de revelar possibilidades. O livro é, sobretudo, essa abertura maior para o âmbito estético, uma sensibilização para a possibilidade de apreensão estética da nossa natureza. Então, o livro é uma experiência reveladora. É um investimento no sentido de promover revoluções, colocar-se em situações de reflexão, mudança, questionamento, de se emocionar. Quando você compra um livro, está fazendo um pacto: eu aceito que eu vá sofrer uma intervenção. O livro é esse veículo, te abre essa possibilidade de se comover.

“A literatura brasileira sempre foi muito boa e agora está melhor do que nunca, não fica devendo nada a ninguém, mas é [feita] a duríssimas penas.”

Você é muito ligada à música. Acha que isso influencia nas suas criações literárias?
Totalmente. Na verdade não são coisas separadas. Minha relação com a poesia é totalmente a partir de uma noção de que não há uma separação possível entre música e poesia. O poema é uma entidade sonora. Ela é uma maneira de falar certas coisas em uma linguagem que trabalha nesse nível metafórico, simbólico, mas também sonoro. Na nossa relação com a poesia, especialmente no Brasil, amputou-se o elemento principal da poesia, que é a sonoridade. Via de regra, a gente não abre o livro de poesia para fazer justiça à condição de um poema – lemos o poema de forma silenciosa. Claro que tem o âmbito da leitura subjetiva, momento solitário de apreensão, mas, para além disso, a poesia existe dentro de um outro set de referência — e somos injustos. É preciso ler o poema em voz alta, ler com outras pessoas, que seja uma atividade de libertar o poema. Do contrário, todo esse jogo, essa escolha vocabular, essa escolha rítmica, métrica e melódica, fica totalmente comprometida, ela não acontece quando se faz uma leitura silenciosa. Na ficção nós somos maus leitores. A gente quer ler pelo que de ação tem ali, só o enredo. Queremos saber quem fez o quê e acabou. Raramente voltamos para reler certos elementos de sonoridade que estão na página. Ir para além da trama e saborear o livro. Falo que somos injustos com a literatura porque nos dedicamos de forma diferente para uma arte como a música. Todos nós temos a banda, cantor ou orquestra favorita. Quando gostamos de uma música deles, voltamos centenas de vezes para ouvi-la novamente. Passamos anos da vida voltando àquelas músicas. E toda vez que voltamos ela é diferente. Essa relação é revitalizada. Por que não fazemos isso com livros? Porque só estamos buscando uma história. Se passamos pelo poema e ele não nos dá tudo que esperávamos, a gente não volta, é descartado. Às vezes, tem um trabalho com a linguagem, tem sutilezas, requinte e isso demanda um leitor atento. Mais que isso, um leitor que estabeleça esse pacto de querer extrair tudo de maneira amorosa. A leitura é um processo lento. É como saborear uma coisa.

o homem
em mim
esculpe
(lentamente)
cicatrizes
a mulher
em mim
refaz
(ponto por ponto)
a estrada
a estátua
(olho por olho)
refaz
em mim
a mulher
o homem
em mim
fabula
(solenemente)
cigarras
Trecho de uma poesia do último lançamento de Luci, Rosa que está.

Para quem você escreve?
Eu preciso de um leitor que tope fazer esse acordo comigo. “Nossa, eu li três vezes aquela página para entender.” Era exatamente isso, era para ler. Eu preciso de um leitor diferente. Se você for procurar nos meus livros uma boa história corrida linearmente, não vai encontrar. Eu gosto de outra instância. Não estou dizendo que tem tipo de literatura boa ou ruim, estou falando de experiência de leitura. Eu preciso de leitores que encarem a literatura de outro modo, como essa instância de jogo, de pacto e lenta. Que tenha essa disponibilidade de investir nessa sutileza, é um outro processo. A minha literatura, por não ser feita em cima do enredo somente, ela requer um certo tempo para engrenar naquilo. Quando falo de pacto, falo do leitor que quer compor a obra comigo. Não tenho essa pretensão de que estou revelando coisas, eu dependo totalmente do meu leitor. E é para esse leitor que está afim do jogo que eu escrevo. A literatura é incrível porque se apresenta de diversas maneiras. Uma vez o Dalton Trevisan queria me passar uma mensagem e falou com um amigo em comum para não me ofender. Ele disse: “pergunta pra Luci por que ela escreve de uma forma tão difícil”. Eu falei: “fala pro Dalton que eu escrevo assim porque é só assim que eu sei escrever”. É assim a minha expressão. Hoje eu sei para quem escrevo, sei quem vai aceitar e assumir essa proposta. Lido muito bem com o fato de que nem todo mundo vai gostar — acho isso ótimo. Eu nunca sacrifiquei minha voz. Sabia que seria difícil porque as pessoas esperam a história linear — começo, meio e fim —, mas meus livros não são assim. Mas ter perseverado me dá muita alegria (risos).

A [escritora portuguesa] Matilde Campilho fala muito disso, ela diz que o livro só está finalizado quando chega às mãos do leitor…
Veja, isso coloca o escritor em uma posição muito mais humilde. De escancarar que o texto não vai existir sem a presença desse outro olhar. Essa postura [de desconsiderar o trabalho do leitor] já é vencida na literatura.

“Minha relação com a poesia é totalmente a partir de uma noção de que não há uma separação possível entre música e poesia. O poema é uma entidade sonora.”

Suas personagens carregam algo de você?
Essa pergunta é um barato. É impossível se dissociar de algo que você está criando. Se eu vivesse tudo que meus personagens viveram, eu só poderia estar em dois lugares: ou presa ou num manicômio (gargalhada). Um personagem vêm da sua observação. Mas às vezes ele nos arrasta, ele nos conta coisas. A gente não se cola totalmente ao personagem porque temos a criatividade. Emprestamos ao nosso personagem coisas que estamos especulando, intuindo… eles têm sua autonomia. Isso varia muito de um escritor para outro. Tem escritores que antes de estabelecer a história, vai colecionando coisas — carteira de cigarro, bombom que comeu, etc. Na hora de montar o personagem, ele utiliza os itens. Tem também a peculiaridade da escrita, que é sempre passar pelo autobiográfico, nós estamos filtrando aquilo. As histórias e os personagens têm que passar pelo escrito e, por isso, é claro que carregam algo da vida dele. E também existe a intenção deliberada de colocar coisas da vida ali. A gente empresta coisas para o personagem, mas também cria muitas outras.

“O homem se torna moderno com as angústias do homem moderno — e a literatura tem que refletir isso.”

Seu processo é metódico ou caótico?
Eu sou uma virginiana com ascendente em aquário, o que me permite ser metódica e caótica. É ótimo. Eu sou muito fiel a uma configuração psíquica no sentido de me dedicar. Eu tenho uma certa disciplina. Eu não me acho caótica em nenhum momento, é uma outra coisa. Eu trabalho muitas horas por dia, por isso não consigo ter horas exatas reservadas para escrever. Escrevo quando aparece uma brecha, não consigo ter uma rigidez. Para escrever, ainda não consegui abrir esse espaço regular. Me considero uma pessoa organizada, muito pacata e reservada — escrever no caos não me atrai.

“[Literatura] é um investimento no sentido de promover revoluções, colocar-se em situações de reflexão, mudança, questionamento, de se emocionar. Quando você compra um livro, está fazendo um pacto: eu aceito que eu vá sofrer uma intervenção.”

Quais são as peculiaridades de ser escritora no Brasil?
Não é só ser escritora. O problema está na cultura, na nossa formação histórica, que nos afasta de nossas essencialidades. A gente acha desimportante se expressar artisticamente. Temos uma elite econômica que não é cultural, então há uma discrepância. Por isso, não temos familiaridade com a expressão artística, então achamos que é só para uma elite — mas é o contrário. Tem uma história engraçada com a Hilda Hilst: pedem para ela um conselho para quem quer ser escritor no Brasil, ela sugere que a pessoa mude-se de país e escreva em outro idioma (risos). Escrever no Brasil passa por essas implicações sociais, econômicas, políticas, da configuração do nosso país. Sempre foi assim. A própria função do poeta e do escritor quase inexiste em nossa sociedade. É muito recente, por exemplo, que a gente tenha uma escola de escrita criativa [a Esc, de nossa colunista Julie Fank]. É a sociedade que estabelece essa figura [o escritor], essa necessidade. Infelizmente, aqui não temos a cultura de valorizar o trabalho do artista, porque consumimos pouca arte. Em muitos aspectos ainda não entendemos quais os benefícios dessa relação com o artístico. Esse é um sinal da nossa doença, do vazio, da superficialidade. Nossa sociedade, hoje, prescinde da figura do artista. O Brasil sempre foi muito imitativo, de querer receber um aval e ter uma chancela externa do que era produzido. Temos uma reverência a outras culturas que acaba obscurecendo nossa produção. Por outro lado, se formos otimistas — e eu sou muito —, acho que as condições que temos aqui acabam sendo estimulantes. A literatura brasileira sempre foi muito boa e agora está melhor do que nunca, não fica devendo nada a ninguém, mas é [feita] a duríssimas penas.

“É preciso ler o poema em voz alta, ler com outras pessoas, que seja uma atividade de libertar o poema.”

Como você vê a literatura brasileira atual?
Como já disse, não devemos nada a ninguém. Estamos em um momento áureo da poesia nacional. Temos muitos nomes, é injusto listar, porque, com certeza, vou esquecer algum. Estamos saindo dessa condição imitativa. Autores estão mostrando o quão universal e cosmopolita pode ser o Brasil.

“A gente questionar o valor da escrita, dessa percepção especial, mostra não a fragilidade e desimportância da própria escrita, mas sim a doença da sociedade e a corrupção dos nossos valores sociais, emocionais, espirituais, psíquicos, filosóficos.”

Os livros do vestibular da UFPR contemplam os principais estilos e épocas da literatura brasileira?
A lista, em si, é sintomática. Não tem como criticar as escolhas, elas passam por um nível [de análise] mais profundo. Tem uma grande complexidade, mexe com a própria educação do nosso país, como os adolescentes recebem a literatura. O nosso convívio com a literatura é bem precário. A literatura em sala de aula é apresentada ainda de maneira pouco atraente. E, por isso, parece ainda muito distante, desnecessária e chata. É afastado da realidade dos adolescentes. Ele vai receber isso goela abaixo porque vai cair no vestibular. A grande maioria vai conhecer a literatura por tabela, vai ler apenas os resumos dos livros. É um massacre. Essa lista acaba sendo uma coisa muito fria. A invisibilidade da literatura no cotidiano das pessoas faz com que a gente conviva com essa ruptura intensa. O que interessa saber é qual o real acesso dos estudantes a esses autores. Será que a leitura vai dar as respostas em profundidade? Ou o estudante vai decorar em blocos?

“A leitura é um processo lento. É como saborear uma coisa.”

JOGO RÁPIDO COM LUCI COLLIN:
Qual livro gostaria de ter escrito? O jogo da amarelinha — Julio Cortázar
Autor que representa o Brasil: Osman Lins, por não ter recebido o prestígio que merecia
Um livro seu: Rosa que está (próximo lançamento da autora)

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