PODER PERSONALIDADES

Leandro Karnal: “A política não está toda podre como as pessoas supõem. Isso é uma maneira de esvaziar a democracia”

Historiador e professor que virou intelectual pop no Brasil fala sobre transformação, voto, fake news, educação e felicidade

Leandro Karnal esteve em Curitiba no dia 22 de março para palestrar no aniversário de 75 anos do Senai. A uma plateia cheia, discorreu por cerca de uma hora sobre transformação em uma era de mudanças, do Estado Novo à crise brasileira mais recente. A fala teria potencial para ser uma preleção sonolenta, mas é um evento disputado quando se trata deste historiador e professor universitário gaúcho de 55 anos, que virou uma espécie de intelectual pop no Brasil.

Karnal viralizou mais ou menos nos últimos três anos. Sua página no Facebook ultrapassa 1,3 milhão de seguidores e seu nome aparece em milhares de vídeos no YouTube — alguns, em que aborda temas como esforço pessoal e felicidade, chegam a dois ou três milhões de visualizações. Também é presença fácil na televisão e mantém colunas periódicas de rádio e jornal.

Formado em uma tradição humanística clássica, o historiador e professor, que leciona na Unicamp desde 1996, age como uma espécie de difusor da alta cultura para o grande público. Bem humoradas e cheias de metáforas e frases de efeito, suas “aulas” para as massas vão dos filósofos pré-socráticos à cultura popular, passando por todo o cânone literário e os grandes pensadores contemporâneos.

Isso também cria em torno do historiador uma certa aura de guru que o faz ser indagado sobre todo tipo de dilema da humanidade e do país. Foi mais ou menos assim na entrevista de Karnal para quatro jornalistas de Curitiba, 15 minutos antes de a palestra começar. Leia os principais trechos:

Por que se transformar é tão desafiador?
Eu participo de um sistema filosófico, fundado por Heráclito, na Grécia, que diz que tudo flui — “panta rei”, em grego. Panta rei significando que, se eu ficar parado, o mundo está andando à minha frente. Panta rei porque nós estamos em fluxo contínuo, somos um devir, ou seja, o futuro está sempre à frente. Em uma era tecnológica, não é só mais uma questão de escolha estratégica, mas é um manual de sobrevivência. O mercado se satura rapidamente, a concorrência é acirrada e não há maneira de você declarar que chegou a um ponto estável e que está vitorioso. Grandes empresas do passado faliram. E uma das questões centrais para isso é a da adaptação permanente, quebra de paradigmas, busca de atualização tecnológica, antecipar-se ao mercado e trabalhar com a sustentabilidade — tanto a ética, a pessoal, a ecológica e a financeira. Como apenas a ética financeira era o foco de muitas empresas, elas esqueceram que, sem as outras três sustentabilidades, ficam mancas. Então, hoje, por exemplo, ética é bastante inovador — faz parte da planilha Excel. Quem duvida disso provavelmente está chegando a Curitiba em breve.

“O desafio é conseguir um ensino que não passe mais informações, mas ensine a pensar e perguntar, e que o aluno duvide permanentemente.”

O voto é uma ferramenta de transformação. Como fazer o cidadão se conscientizar dele?
Muito bem dito que o voto é uma ferramenta de transformação. A democracia ou a política não podem depender apenas da ida às urnas a cada dois anos. Votar é essencial para a instituição democrática. Temos hoje a maior quantidade de votantes de toda a história do Brasil. Mas o que nós precisamos entender é que a ideia de que meu compromisso com um político se resolve na urna eletrônica é uma fantasia. O mau político depende do eleitor alienado. O bom político depende da total cobrança do eleitor. Há bons políticos no Brasil. Há políticos honestos, fazendo boas administrações. Há muitos ruins também. A política não está toda podre como as pessoas supõem. Isso é uma maneira de esvaziar a democracia. E mesmo porque a pior democracia é muito mais saudável que a melhor das ditaduras. É só na [democracia] que existe discussão, e por isso a [democracia] é muito mais lenta na resolução dos problemas. A ditadura tem uma eficácia que é sinal de passar por cima das diferenças. E todas as ditaduras, sem exceção — de direita ou de esquerda —, terminam em desastre para o país.

“O que precisamos entender é que a ideia de que meu compromisso com um político se resolve na urna eletrônica é uma fantasia.”

Como as pessoas podem lidar com as fake news no período eleitoral que está se aproximando?
Sempre houve notícias falsas no campo político. Nós, historiadores, estudamos pichações nas paredes de Pompeia onde se acusava determinado vereador de ter características físicas humilhantes quando nu. Sempre houve calúnias, [como] as famosas cartas falsas na campanha que envolveu Artur Bernardes contra os militares [1921]. [Em] eleições e guerras, a primeira vítima é a verdade. Mas existe hoje uma novidade, que é a capilarização do conhecimento, a atomização das informações. “Fake news” tem dois aspectos: um é a notícia falsa, veiculada deliberadamente para prejudicar alguém ou para melhorar uma pessoa. A segunda é mais complexa: faz parte do ramo da pós-verdade, em que as pessoas passam a acreditar [apenas] naquilo que esteja de acordo com o seu mundo. Está na hora de entender que temos que olhar com objetividade para as coisas. E temos que olhar além dessa superficialidade da internet. [Essas questões] nascem de um empoderamento do indivíduo, que esquece a perspectiva e acha que, por ter aberto um Facebook ou um Instagram, é um especialista em direito constitucional, sabe tudo de direito penal e é um mestre em filosofia e história. A formação é árdua, é lenta, custa muitos anos, muita leitura. O debate é válido; está faltando um pouco mais de conhecimento e humildade antes de começá-lo.

“O mau político depende do eleitor alienado. O bom político depende da total cobrança do eleitor.”

 

A post shared by Leandro Karnal (@leandro_karnal) on

No mundo do trabalho, como as pessoas podem ter alguma perspectiva ou esperança diante de um cenário de tantas mudanças e incertezas?
Quando o Estado Novo criou as instituições como o Senai, ele estava exatamente mirando numa deficiência do trabalhador médio brasileiro: a falta de formação, a falta de ensino técnico. E hoje isso aumentou. Em primeiro lugar, nem todo mundo precisa ir à universidade. Funções muito bem remuneradas no primeiro mundo, como encanador, eletricista e empreiteiro, não precisam de diploma superior. Nós temos um bacharelismo que é herança lusitana. É preciso, em primeiro lugar, formar mão de obra em todos os sentidos. Formar para potencializar a capacidade das pessoas, para que cada trabalhador, cada pessoa encarregada de uma área de produção, dê o melhor de si, consiga crescer, avançar, formar-se. E isso necessita formação permanente. Yuval Harari — historiador israelense, autor de Sapiens e Homo Deus — disse em um congresso em Portugal há pouco: somos a primeira geração que não sabe o que ensinar às pessoas. Ao formar hoje um aluno, quando ele completa o quarto ano de um curso, tudo o que aprendeu está defasado. Tudo que eu aprendi em outra época, desde utilização de máquina de escrever até mimeógrafo ou retroprojetor, ficou defasado ainda durante meu início de carreira. [O desafio é que] o trabalhador — o aluno, o intelectual, o professor — aprenda sempre; que faça perguntas, mais do que obtenha respostas.

“A escola está ficando na retaguarda das transformações.”

A escola e o professor perderam espaço. O que você aconselharia para a gente resgatá-lo?
Nós estamos perdidos porque a escola deixou de ser a preparação de um indivíduo com conhecimentos que serviriam para a vida toda. Assim eu fui formado. A certeza que tinham os meus professores de que aprender os pronomes de tratamento e os afluentes dos lados direito e esquerdo do Amazonas garantiria que eu fosse um homem trabalhador, honesto e ético não existe mais. A escola está perdendo uma corrida tecnológica, mas não exatamente porque tenha ou não máquinas. Eu posso fazer um ensino fascista utilizando tecnologia de ponta e um ensino revolucionário dando aula debaixo de árvores. Não é a questão da máquina: é ensinar as pessoas a aprender, ensinar a fazer perguntas, estimular a curiosidade. Romper, para usar uma palavra mais complexa, com a epistemologia — ou seja, um critério de acesso à verdade que marcou a educação antiga, que reproduzia um sistema fabril e militar, onde a ordem e a decoreba eram mais importantes. Atingir verbos superiores como analisar, criticar e relacionar é uma capacidade para a qual nós não fomos muito bem formados. A escola está ficando na retaguarda das transformações. E isso é mundial. Isso não é brasileiro, não diz respeito à escola pública ou privada. O desafio é conseguir um ensino que não passe mais informações, mas ensine a pensar e perguntar, e que o aluno duvide permanentemente. E [que] esse ceticismo seja a base de toda a ciência. Há um desafio muito grande. Alunos estão perdidos, professores estão perdidos, direção está perdida e os pais não sabem exatamente o que querem. Isso não é ruim: pode ser o começo de um salto extraordinário.

“Hoje a felicidade assumiu um tom inclusive cafona, kitsch, de achar que ela é obrigatória em todo o tempo e que tudo o que faço tem que ser recoberto de felicidade.”

Um dos grandes temas para você é a felicidade. O que aconselharia neste sentido para os brasileiros nos tempos em que estamos vivendo?
Hoje a felicidade assumiu um tom inclusive cafona, kitsch, de achar que ela é obrigatória em todo o tempo e que tudo o que faço tem que ser recoberto de felicidade. Felicidade entendida como um deleite, uma orgia, uma sensação estranha que percorre todo o corpo, é absolutamente inviável. As oscilações entre momentos mais e menos felizes fazem parte inclusive da luta por ela. A grande questão do brasileiro não é distinta de todos os seres humanos que lutam pela felicidade. Diz respeito a incluir-se no processo de atingir a felicidade. Uma questão típica da nossa cultura é a omissão do eu. É retirar a responsabilidade do sujeito e dizer: “Eu não dei certo porque o país estava mal, o governo é corrupto, a empresa não ajudou, meus pais não incentivam”. Raramente nós, brasileiros, nos incluímos na questão. Raramente entendemos que o ponto em que eu estou profissionalmente — meu corpo, a estrutura da minha família, tudo isso — diz respeito a escolhas feitas diante de reveses e acertos. Aquilo que a gente chamava de sorte e azar. Isso é fundamental acrescentar ao padrão brasileiro: incluir-se na resposta. A felicidade é um horizonte. E, como todo horizonte, quanto mais me aproximo, mais um pouco ele se estende. Isso é absolutamente definido pelo indivíduo e pelas relações que ele estabelece em meio a seus acertos e erros.

Deixe um comentário