Ety Cristina Forte Carneiro: “Hospital nem sempre pode curar, mas sempre pode cuidar”
Sentar para conversar com Ety Cristina Forte Carneiro em sua pequena sala na Avenida Silva Jardim, dentro do Hospital Pequeno Príncipe, inevitavelmente resulta em acreditar fielmente em uma sociedade com saúde e educação de qualidade para todas as crianças. É quase palpável. Se, ao sair da sala, a realidade se impõe, a esperança pela tão sonhada equidade de acesso a serviços básicos é igualmente verdadeira. \
Na infância, Ety, hoje diretora executiva do Hospital Pequeno Príncipe, estudava em um cantinho dessa mesma sala, na época ocupada por sua mãe, também Ety. A pequena questionadora gostava de brincar de cientista. Quando contou suas descobertas infantis a um conhecido, recebeu uma reação diferente do que esperava: “Essa pessoa me disse: ‘Imagina, menina, tanta gente inteligente pensando e você acha que é você que vai descobrir isso.” Ety não seguiu a Medicina para ser cientista, mas mostrou que o cuidado com o outro pode ser exercido por qualquer um. Ingressou no HPP em 1998, assumiu o Marketing dois anos depois, participou da implantação da faculdade e do instituto de pesquisa da casa e está à frente de um novo projeto grandioso: o Pequeno Príncipe Norte reunirá mais um hospital 24 horas, um ambulatório, um centro cultural e um hospital de alta complexidade e transplantes. “Eu logo entendi que o hospital nem sempre pode curar, mas sempre pode cuidar”, ressalta Ety, que chegou a ser presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescentes e a participar da Cúpula Mundial da Família, ligada à ONU.
Ela foi, ainda, uma das idealizadoras do projeto de captação de recursos do hospital, um dos maiores desafios da organização sem fins lucrativos, que dedica 70% dos leitos ao Sistema Único de Saúde (SUS). Só no ano passado, a operação do hospital teve um déficit de R$ 25 milhões – o instituto de pesquisa custa outros R$ 8,5 milhões. “Hoje, nossa operação fecha positiva e precisamos agradecer imensamente à comunidade, aos que querem, com a gente, transformar os indicadores de saúde no Brasil”, conta, orgulhosa do Pequeno Príncipe, que neste ano comemora seu centenário.
No bate-papo a seguir, Ety Cristina Forte Carneiro fala sobre a importância do Hospital Pequeno Príncipe, os desafios da saúde para crianças e adolescentes e seu chamado para a união em prol da saúde pública de qualidade e para todos.
Você é diretora-executiva do HPP, sua irmã Luiza Tatiana é diretora de pós-graduação da faculdade e a caçula, Patrícia, é diretora-geral da faculdade. Como o hospital influenciou sua infância e juventude?
Eu sempre quis fazer Medicina. No ano do vestibular, também me encantei por Arquitetura. Passei nos dois e fiquei nesse dilema. Entretanto, no início do curso de Medicina, muitas das coisas que eu achava importantes naquela época não eram valorizadas – todas ligadas à humanização do atendimento: tocar no paciente, chamar pelo nome, explicar o que ia fazer. Isso me fez optar pelo curso de Arquitetura. Íamos para as ruas, pensávamos em como tornar a cidade mais acolhedora para as pessoas, como fazer áreas onde as comunidades pudessem ter uma boa qualidade de vida. Muitas vezes, depois de formada, eu sentia falta de algo em que eu sentisse que estava contribuindo mais para a sociedade e para as pessoas. Depois de alguns anos, repensei a vida e vim para o Hospital implementar um projeto.
“Estou aqui e tenho a obrigação de querer ser um dos melhores hospitais do mundo – e eu quero.”
Como foi esse início? Quais foram os principais projetos?
Em 2000, [logo depois de ingressar na organização] o hospital faria um congresso. Ele tinha 14 módulos, era algo inédito no Brasil, gigante. Quando assumi o projeto, em 1998, tínhamos 64 convidados internacionais. O congresso foi um sucesso, teve mais de 4.500 participantes, os convidados adoraram e acabou virando uma tendência mundial – mas sobrou uma conta imensa para o hospital, maior que o valor captado na época. Ao ir apresentar o congresso para os fornecedores, percebi que eles sabiam da nossa excelência na área de saúde, mas desconheciam que éramos filantrópicos: não visamos lucro, atendemos 70% SUS. Foi aí que vi a oportunidade de reapresentar o hospital para a sociedade em geral.
Fui convidada a assumir o Marketing, em 2000. Começamos a pensar primeiro como nós iríamos abordar as pessoas, posto que elas já tinham a referência de que o Pequeno Príncipe era o hospital que elas queriam para as suas crianças. Mas elas não tinham noção da filantropia e nem do grau de complexidade do que acontecia aqui dentro. O HPP era o hospital dos sonhos de todas as mães, mas elas não sabiam que tínhamos 32 especialidades, pioneiro na área de câncer e UTI pediátrica. A presença da família de crianças pobres começou em 1982, com a criação do serviço de psicologia. Isso foi um diferencial maravilhoso. O projeto foi um sucesso, melhorou o choro, o cuidado com a criança ficou facilitado. Imagina deixar uma criança no hospital e voltar só dois dias depois – era assim no Brasil. Em 1987, o HPP implementou um programa de educação. As crianças da nefrologia foram as primeiras a utilizá-lo, já que eles passavam muito tempo aqui e, às vezes, desistiam de estudar, tinham problemas na escola. Incrementamos o setor de educação e cultura por compreender que precisamos garantir direitos básicos para as crianças. Precisamos ter equidade no atendimento. Então saúde, políticas de alimentação, educação, cultura, presença familiar, integração à comunidade, compreensão da importância de sustentabilidade e equilíbrio com a natureza eram imprescindíveis para quem quer cuidar.
Isso ficou muito claro para mim: o hospital nem sempre pode curar, mas sempre pode cuidar. Além da doença e para além dos nossos muros, o Pequeno Príncipe não é só um hospital. Temos, também, a faculdade e o instituto de pesquisa. É um complexo que trabalha a integração entre assistência, ensino e pesquisa, que os grandes hospital mundiais têm. No nosso caso, também a mobilização social. Cada criança que é internada tem o melhor que a Medicina pode oferecer, mas também oportunidades de continuar o conteúdo escolar, ter apresentações culturais estimuladoras. Tudo que alguém que está no hospital precisa é não ser paciente, mas sim protagonista: é estar ativo, querer alegria, querer produzir, se sentir pertencente, querer fazer mais. Esse é um grande projeto, bem além da saúde física.
E como isso influencia na saúde física do paciente?
Nós acompanhamos por 10 anos e vimos que a vinda do familiar, nos anos 1980, diminuiu o tempo de internação pela metade. É fantástica para a criança e para o familiar. Gosto de trazer esse indicador porque, além de beneficiar aquela criança e aquela família, libera mais cedo leitos de hospital para que possamos atender mais crianças.
Quais são os desafios de estar à frente de um hospital tão grande e prestigiado, mas que é filantrópico e tem um custo altíssimo?
Todo ano que termina a gente renova o compromisso simbólico de continuar buscando o melhor atendimento para crianças e suas famílias, incorporar novas metodologias e inovação. A operação do hospital teve um déficit de R$ 25 milhões no ano passado, só o instituto de pesquisa custa R$ 8,5 milhões. Imagina abrir o ano sabendo que vai faltar R$ 33 milhões só pra fechar a conta. Hoje, nossa operação fecha positiva – e precisamos agradecer imensamente à comunidade, que quer, com a gente, transformar os indicadores de saúde no Brasil. Hoje, temos telemedicina, robô de telepresença, criamos uma frente de buscar novos métodos de diagnóstico e tratamento. Implantamos o primeiro biobanco do sul do Brasil. Temos um laboratório genômico, que permite que muitas doenças primárias sejam identificadas e tratadas. O volume de recursos que as pessoas têm doado ao hospital vêm aumentando seguidamente. É graças a isso que temos a modernização e a melhoria de resultados. Isso se refletiu na diminuição dos tempos de internação e infecções hospitalares, mas principalmente na queda da taxa de mortalidade. Em 2008, nossa taxa de óbito hospitalar foi de 2,5%; em 2018, tivemos uma taxa de 0,59%. Me emociona poder comemorar isso ao fazermos 100 anos.
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Como é dar continuidade ao legado de sua mãe?
É uma honra e uma enorme responsabilidade. Eu considero um presente. Quando vim para o Pequeno Príncipe eu tinha uma expectativa muito grande e me cobrava muito. Já era fantástico, como eu poderia ajudar a fazer cada vez mais? Eu desisti da Medicina, pela Arquitetura conheci meu marido e tenho meus filhos, os amores da minha vida, e voltei para essa área de cuidar das pessoas – não sendo médica, mas sim com planejamento. Estou aqui e tenho a obrigação de querer ser um dos melhores hospitais do mundo – e eu quero. Quando decidimos abrir o instituto de pesquisa disseram que éramos loucos. A mesma coisa na educação e cultura. A gente se inspira em bons projetos e no exemplo de várias pessoas que querem equidade e entendem essa interação de garantia de direitos com sustentabilidade numa sociedade em que todas as crianças tenham as mesmas oportunidades.
“Eu acredito em um sistema público de saúde. Não apenas na saúde, mas também na educação, deveríamos ter organizações que acolhessem os filhos de todo mundo.”
Você fala bastante de equidade no acesso de direitos básicos. No HPP, 70% dos atendimentos são feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No fim do mês de maio, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou, em entrevista ao programa Roda Viva, que vai “provocar” o Congresso a defender o fim da gratuidade universal do SUS. Como você vê essa afirmação?
Essa afirmação me preocupa tanto quanto o fato de o SUS subfinanciar a saúde. Estima-se que para cada R$ 100 que um hospital filantrópico gasta para adulto só recebe R$ 60. A gente vive uma situação que é completamente atípica, que é o fato de receber menos pelo que fazemos. Por isso esse grande esforço de captação de recursos. Com uma tabela bastante defasada e sem reajuste, em um cenário em que, na última década, o Brasil perdeu mais de 30 mil leitos de SUS – desses, 10 mil pediátricos. Esse é o equivalente de ter fechado, nos últimos seis anos, 27 hospitais Pequeno Príncipe. Acho que a questão da saúde e do SUS precisa ser repensada. É uma política muito bem escrita e precisa ser revisada para ser melhor operacionalizada. Eu acredito em um sistema público de saúde. Não apenas na saúde, mas também na educação, deveríamos ter organizações que acolhessem os filhos de todo mundo.
Você chegou a participar da Cúpula Mundial da Família, ligada à ONU. Como foi essa experiência?
Essa experiência congregava organizações de maternidade e infância. Foi muito interessante me aperceber, ao visitar outros países e conhecer outros projetos, o quanto estamos tão perto e tão longe de outras mulheres, mães e realidades. E o quanto a mulher, a criança e a educação precisam ser protegidos e valorizados em todas as sociedades.
“Esse ano vou ser avó. Aí tive certeza: nós somos eternos.”
Quais são os desafios de conciliar o trabalho e a vida pessoal?
O que a gente faz é muito envolvente e apaixonante. O hospital é 24 horas por dia, 365 dias por ano, não tira férias. Então, é muito delicado, acho que nossos filhos precisam compreender o quão envolvente isso é. E a gente precisa compreender o quanto nossos filhos precisam da gente por algumas horas. É o equilíbrio que a gente vai buscando. Nesse sentido, meu filho Luis me ensinou muito. Aos 12 anos, ele me disse uma coisa que foi muito marcante: “Nas outras famílias os filhos têm que disputar os pais entre si. Na nossa, a gente tem que disputar com todas as crianças do hospital”. Aquilo foi um divisor de águas. Me ensinou que é muito importante estarmos abertos para as pessoas – e para nossos filhos. Temos muito o que aprender com eles. Ter um filho é a chegada do infinito e a gente precisa ter abertura para ouvir e aprender com eles. Esse ano vou ser avó. Aí tive certeza: nós somos eternos.
JOGO RÁPIDO COM ETY CRISTINA FORTE CARNEIRO:
Uma inspiração: minha mãe.
Um momento: o nascimento dos meus filhos.
Um sonho: saúde e educação de qualidade para todas as crianças.
Uma motivação: pessoas.