Após um 2018 espetacular, curitibano Julio Campos aposta na dobradinha talento + obstinação para esta temporada
Há quem diga que existem dois caminhos para viver de automobilismo no Brasil – um dos esportes mais populares do mundo, embora extremamente elitizado: ter talento e vir de uma família abastada financeiramente ou ter talento aliado a muita persistência e obstinação. E este é o caso do piloto curitibano Julio Campos, na Stock Car há 12 anos e em sua 10ª temporada consecutiva. Desde 2016, ele voltou a integrar a equipe Prati-Donaduzzi, da indústria farmacêutica de Toledo, no oeste do Paraná. Ano passado, teve a melhor temporada da sua carreira ao terminar em 3º lugar no campeonato nacional – mesmo começando mal, em 14º na segunda etapa. Em 2019, mira a primeira colocação.
“Poucos pais têm dinheiro para colocar um filho [para] correr na Fórmula 1, por mais talento que ele tenha”, assegura Julio. Para ele, o maior talento do automobilismo é muito difícil de ser encontrado. “O melhor piloto às vezes nunca sentou em um kart, porque não são todos que tentam”, lembra. Diferentemente do futebol, por exemplo, onde há mais fácil acesso.
O pai de Giulia (6 anos) e Marco (4) cresceu em Santa Felicidade, é divorciado e está noivo da arquiteta Priscila Ruon. Começou a pilotar por influência do irmão mais velho, o ex-piloto de automobilismo Marco Campos, morto em um trágico acidente em uma corrida da extinta Fórmula 3000 (atual GP2), em Paris, na França. Ele tinha apenas 19 anos e era uma das grandes promessas do automobilismo brasileiro nos anos 1990.
Incentivado pelo pai e pelo irmão, Julio fez escola no kart dos 8 aos 19 anos. Com a morte de Marco, os pais tiveram receio e convenceram o filho mais novo, então com 13 anos, a permanecer nessa modalidade por mais tempo. “Eu tinha que ter saído com 15 do kart, mas me seguraram bastante. A conversa que a gente tinha em casa era: ‘Vamos esperar um pouco mais’”, conta.
Hoje um dos principais nomes da Stock Car paranaense, Julio Campos foi o primeiro e único piloto curitibano a vencer em casa uma prova da Stock Car, em 2015 – com ninguém mais, ninguém menos, que Rubinho Barrichello no seu para-choque.
No nosso bate-papo, o piloto fala da dificuldade de viver desse esporte no Brasil, da importância da experiência com o kart, da relação com os filhos e da expectativa para esta temporada, cuja primeira etapa acontece no dia 7 de abril, em Tarumã, Rio Grande do Sul.
TOPVIEW: Você ficou no kart dos 8 aos 19 anos. De que forma essa experiência te ajudou na Stock?
O kart é uma escola. É muito importante começar por aqui, você tem muito mais chance do que se começasse direto no carro. É o mesmo que botar uma pessoa na faculdade sem ela ter feito escola. Ela vai ter muito mais dificuldade, não é que não consiga fazer. Vai demorar mais tempo pra terminar a faculdade, não sabe o porquê das coisas. O kart te ensina a correr, a ter concentração, a largar – um dos piores momentos da corrida é a largada. É uma escola muito importante.
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O que você ainda carrega dessa influência do Marco?
Julio Campos: É muito difícil desvincular. Com pouca idade ele foi muito longe. Tinha acabado de assinar contrato para ser piloto de teste da Fórmula 1, já tinha sido campeão aos 18 [na Fórmula Opel] e faleceu muito novo, aos 19. Bem pesado. Começou tudo do zero pra todo mundo. Eu já era profissional de kart, não pagava nada pra correr, tinha ganhado alguns campeonatos, mas com a morte do Marco foi muito traumatizante. Esse medo de me colocarem pra correr no carro me segurou bastante. Aos 19, fizeram a transição dele direto de uma fórmula pequena para uma categoria antecessora à Fórmula 1. Era muito difícil, muito pesado. É a mesma coisa que sair de um carro mínimo e pegar um de 800 cavalos, é uma diferença absurda. Mas hoje, com toda a experiência, a gente vê que não foi só isso, foi simplesmente uma fatalidade. Ele estava pronto, poderia andar na Fórmula 1 ou qualquer outra.
Como você se prepara para uma temporada? Psicológica e fisicamente.
Acabei de sair de um treino (risos)… Treino em casa, na academia do prédio com personal, é uma necessidade. Fiquei um ano sem personal e agora retornei porque é fundamental. A resistência dentro do carro é muito diferente.
Em que sentido?
Um carro da Stock Car chega a atingir 60º C. É muito quente. Às vezes, você nem percebe e está tendo um déficit de concentração, de tão quente. Teu preparo físico acabou, teu cérebro para de ter a oxigenação necessária, você está cansado, para de ter as respostas na velocidade que precisa. O psicólogo esportivo é algo bem válido.
“De mil pessoas que jogam futebol, cinco andam de kart. Com certeza absoluta não é o melhor que vai sentar lá, é o que tem mais condição, mais dinheiro.”
Como lida com a pressão por vitórias e pontuação?
Eu não conheço uma vida sem isso. Se você me perguntar como seria uma vida sem competição, não tenho ideia. Sempre tive que matar um leão por dia… Tem que estar ali ganhando primeiro do teu companheiro de equipe, que é teu primeiro parâmetro, afinal, vocês têm os mesmos equipamentos, depois dos seus rivais. Todo mundo me pergunta: ‘pô, você tem rivalidade com teu companheiro de equipe?’. Nenhuma, eu simplesmente tenho que andar na frente dele (risos).
Dizem que você é bastante competitivo…
É natural isso, do esporte. As pessoas dizem que eu mudo quando chega a semana de corrida, sou outro ser humano. Pra mim, eu não sou. Mas provavelmente sim (risos). Eu realmente não presto atenção em nada [quando chega o fim de semana de competição]. São 12 finais de semana. A gente tem 50 e poucas horas por mês de trabalho, umas 20 e poucas dormindo. Acordado, vivendo aquilo, parece que é muito pouco tempo, não dá pra desfocar.
Você é o único curitibano que teve o gostinho de vencer em casa, em 2015. Qual a sensação?
Ah, a torcida é muito legal. Geralmente, acaba a corrida e todo mundo começa a ir embora. Nesse dia, ficou todo mundo pra assistir o pódio, foi um fuzuê bem grande. Todo mundo gosta do Rubinho Barrichello e estava torcendo por ele, que estava atrás de mim. Ganhei a corrida com o Rubinho exatamente no meu para-choque. E aí foi mais legal ainda, porque todo mundo queria torcer pro cara, mas, pô, era um curitibano em Curitiba e nunca nenhum ganhou, foi bem legal. Com essa corrida, eu assumi a liderança do campeonato.
Alguns pilotos conseguem conciliar o automobilismo com outras profissões. Você se dedica exclusivamente à Stock Car, certo?
Hoje, na Stock Car, você não consegue pensar em outra coisa. Não vejo nenhum piloto profissional que tenha 100% daquele negócio dele. Pode ter um sócio, que possa tocar tanto quanto ele. Já fui trabalhar com meus pais em uma empresa, mas nunca fui o mandante de nada. Fiz Administração… Já tive uma equipe de Stock Car, mas não corria nela, não passava perto dela durante um fim de semana de corrida.
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Quem são seus ídolos no automobilismo?
Eu sempre fui do contra. Na época em que todo mundo era Senna, eu era Piquet. Mas depois o Piquet parou de correr e o Senna continuou – ele era uma pessoa incrível. Participei de dois eventos na fazenda dele, tenho fotos no colo do Senna. Não tem como não dizer que o cara foi um ícone, foi o maior de todos os tempos. Como piloto, eu vejo o [Lewis] Hamilton e o [Fernando] Alonso tão bons quanto o Senna, mas por toda a história e o término, não tem outro pra bater. Por ser brasileiro, ter todo esse contato com o povo em uma época muito mais difícil, sem Instagram, Facebook. Ele era o Cristiano Ronaldo daquela época…
Falando em Cristiano Ronaldo… Você acompanha outros esportes?
O futebol acaba sendo aquele negócio que todo brasileiro gosta. Como esportista, é o que mais mata a gente, porque 95% da mídia nacional gira em torno do futebol masculino. Acaba que os outros esportes têm que sair correndo atrás desses outros 5%. Qualquer programa na TV que você vê tem o minuto do automobilismo, o minuto do vôlei – as outras 23h59 são do futebol. Temos coisas tão boas quanto futebol que não são nem vistas, handebol, vôlei… O automobilismo está crescendo, mas é muito pequeno perto do futebol e, às vezes, é muito grande perto de outros, né?
“Acho muito difícil você ser um bom empresário querendo ser o melhor piloto. Questão de foco.”
É difícil viver desse esporte no Brasil?
Desde sempre me banco do esporte. Se você colocar o número de pilotos que vivem só disso como eu, são muito poucos. Poucos de contar em uma mão. A maioria vem de família muito rica, que o banca até que vire profissional. O automobilismo é um esporte muito caro, para você entrar é muito difícil. É de uma elite. Ninguém entra numa Fórmula 1 hoje. São milhões de euros pra você sentar o primeiro ano. Poucos pais têm dinheiro para colocar um filho correr na Fórmula 1, por mais talento que ele tenha. Tem que ter patrocínio. Existe, lógico que existe. A gente tem uns dois ou três meninos brasileiros que estão nas escolas da Ferrari, são pessoas com um talento muito legal. Se você pegar o futebol: quantas pessoas jogam? De mil pessoas que jogam futebol, cinco andam de kart. Com certeza absoluta não é o melhor que vai sentar lá, é o que tem mais condição, mais dinheiro. O melhor piloto às vezes nunca nem sentou em um kart, porque não são todos que tentam. O maior talento do automobilismo é muito difícil de ser encontrado. Mas é um esporte muito legal por isso, porque é muito legal quando você consegue chegar lá. Não é um sonho impossível, mas o cara tem que ser muito batalhador, tem que correr muito atrás. E graças a Deus eu nasci com um bom tanto de talento.
Ano passado você ficou tão perto de levar o campeonato. O que pode fazer a diferença neste ano?
A gente está com um carro muito bom, mas precisa melhorá-lo um pouco. A gente vem com tudo pra tentar levar o título, tem três ou quatro carros que também vêm na briga.
O que você tenta passar pra Giulia e pro Marco? Eles vão nas corridas com você?
Sou divorciado, então, fico com meus filhos uma semana sim, uma não. Eles estão sempre nas corridas comigo. Quando tem que viajar, viajam. É muito bacana. Ano passado, das 12 corridas, 10 caíram no meu fim de semana. Então, eles foram a 10 corridas. Eu já faço uma programação de compra de passagem e deixo tudo sempre bem explicado, que eles vão junto. Não tem coisa melhor! Pra Giulia eu tenho que andar mais rápido e o Marco já é diferente, o papai é o primeiro, só faz coisa boa. Nos brinquedos dele sempre estão lá Cacá [Bueno], Átila [Abreu], Barrichello… Engraçado que eu nunca falo o nome de ninguém pra ver o que sai da cabeça dele e 70% do grid ele já sabe. Mas me coloca em último, ‘papai já ganhou muito’ (risos). O bom do automobilismo para eles é que é muito mais frustração do que vitórias… A frustração é constante. É muito difícil você ganhar todas as corridas, você perde infinitas vezes mais do que ganha. Schumacher é um cara que perdeu muito mais do que ganhou. Imagine os pilotos que nunca ganharam uma corrida? Às vezes, a vitória para uma equipe pequena é chegar em 10º. Largar em 6º, 7º é muito bom hoje na Stock Car. Mas chegar em segundo por milésimos é horroroso…
Já aconteceu com você, né? Como foi?
Parece que morreu alguém no box (risos). Tá todo mundo puto. Mesmo o resultado sendo bom, não tem quem consiga comemorar um segundo lugar por tão pouco. A cabeça entra em tela azul, as pessoas vêm falar com você e pode ser quem for, naquele momento você quer sentar de frente pra parede – sabe cantinho do castigo? Passam cinco minutos, respira, pensa. Mas passa. Você ganha, perde…
Até quando pretende pilotar?
Não tenho a mínima ideia. Nem consigo me ver longe da Stock Car. Ainda tenho pelo menos uns oito anos de alto nível pra “bater roda”. Você vai se espelhando nos melhores. O Rubinho está com 46 e tá voando, tá muito bem. Na última corrida do ano ele foi espetacular, preparação física perfeita, fazendo um monte de coisa. Meu companheiro de equipe, Valdeno Brito, faz 45 este ano. Mas pode ser que em dois anos eu seja mandado embora. Tem que estar no seu melhor pico sempre e com o psicológico muito bom.
Você pensa em fazer outra coisa quando parar?
Tenho várias coisas em mente para quando parar, até mesmo com o automobilismo. Trabalho, é só querer trabalhar.
Tentaria continuar no ramo?
Sim. Vivi muito, conheço muito bem o automobilismo. É um negócio que eu gosto muito e tenho uma facilidade, vivi a vida inteira. Dei muito tempo aula de kart. Já tive que me coçar muito para que as coisas acontecessem, não é igual um cara que vai investir cinco, seis milhões da família em um negócio. De repente você vai ter que fazer em 10 anos sem gastar nem um real do bolso dos seus pais. No meu caso foi praticamente o que aconteceu.
Visualizar esta foto no Instagram.Prestigiando o trabalho do meu amorzão. Na @tonsurtondec . @suelyepriscila.arq
Aos 37 anos e na sua 10ª temporada, como avalia que amadureceu ao longo da carreira?
Sempre consegui bons resultados, isso sempre me ajudou. Esse comprometimento… Tem que ter uma vida regrada, tem que treinar, fazer preparação física, estar dedicado àquilo 100%… Por isso acho muito difícil você ser um bom empresário querendo ser o melhor piloto. Questão de foco. Tem que ir ao kartódromo, tem que fazer uma corrida que, de repente, você não vá receber muito dinheiro, só pra treinar. São coisas que você vai tentando fazer pra que te conheçam, pra fazer outras corridas. O Daniel Serra, que hoje corre pela Ferrari, com certeza ralou uns três, quatro anos viajando por todo canto sem ganhar nem perto do que ganha hoje. É complicado… Todo mundo fala ‘pô, só tem pessoa muito rica’, mas é que ou você vai estudar com 17 anos ou vai se arriscar. Muitos pilotos com 30, 35 anos nunca ganharam nada, e aí? Falam cinco línguas, mas não têm faculdade. Têm que construir uma vida nova a partir dos 35 – o que eu também acho que vale a pena. O cara já conhece o mundo inteiro, viveu a vida pra todo lado, mas realmente não construiu alguma coisa financeira. Não tá nem se sustentando, é complicado. [O automobilismo] É uma vida na qual poucos estouram e muitos ficam pra trás.