Domenico De Masi: “Os verdadeiros vira-latas no Brasil são a elite, não as pessoas da favela”
A sociedade machista tem os dias contados. Domenico De Masi, professor de Sociologia do Trabalho na Universidade La Sapienza em Roma, não tem dúvida: em 2030, o mundo será liderado por mulheres. Além de estarem em número maior em relação aos homens, vivem por mais tempo, terão níveis educacionais mais elevados e não vão precisar mais de um marido para gerar filhos.
Esse é só um dos aspectos da sociedade do futuro traçada pelo sociólogo italiano, 81 anos, que no final de abril esteve no Brasil para apresentar seu último livro, Uma simples revolução (Editora Sextante). Em sua passagem por Curitiba, o intelectual, que há muitos anos virou uma celebridade no Brasil, ministrou uma palestra no Teatro Positivo, organizada pelo Projeto Phi, e conversou com a TOPVIEW.
Criador da expressão ócio criativo, ou seja, de um modo de viver que une trabalho, estúdio e jogo, De Masi analisa a sociedade pós-industrial, em que o trabalho será cada vez mais escasso, já que os robôs vão executar por nós, e o tempo livre de sobra.
“A escolha de um colchão cômodo é mais importante que a escolha de uma escrivaninha funcional; a escolha de um amigo com quem passar férias é mais importante que a escolha de um colega de trabalho; a escolha de um curso universitário que prepara para a vida é mais sábia que a de um curso que prepara para o trabalho. O que conta não é o estresse da carreira futura, mas a serenidade da sabedoria atual.” – Domenico De Masi
Marxista declarado, amigo pessoal do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que conhece desde os tempos do exílio na França, e do arquiteto Oscar Niemeyer, De Masi aproveitou a vinda a capital paranaense também para visitar Lula na prisão e se solidarizar com ex-presidente – segundo ele, vítima de uma justiça politizada. “A minha ideia é que o bem que ele fez para o Brasil é muito superior ao mal que ele recebeu do Brasil”, afirma. Confira a seguir os melhores momentos do bate-papo.
O sr. diz que a revolução feminista está dando seus frutos e que as mulheres vão liderar a sociedade no futuro. O mundo se tornará mais bonito?
Eu sou sociólogo e sigo os dados. E os dados indicam que até 2030, quando seremos 8 bilhões, as mulheres no mundo vão viver três anos a mais que os homens. Isso já acontece em muitos países: na Itália são seis anos a mais, no Brasil cinco. Esse já é um elemento de poder: quando o marido morreu, a esposa continua viva. Até 2030, as mulheres serão 60% dos diplomados nas faculdades e 60% dos mestres e pós-graduados. Outro elemento fundamental é que as mulheres poderão ter um filho sem marido, será suficiente ir a um banco de sêmen. Os homens não podem fazer o mesmo, eles sempre vão precisar de uma mulher.
“As mulheres chegarão ao poder sem um pacto com os homens, porque o homem não quis negociar. As mulheres estão buscando um acordo com os homens há 20 anos: por que as mulheres ganham menos?”
Tudo isso preocupa o sr.?
Essa é uma constatação. As mulheres chegarão ao poder sem um pacto com os homens, porque o homem não quis negociar. As mulheres estão buscando um acordo com os homens há 20 anos: por que as mulheres ganham menos? Vamos fazer um contrato de paridade e resolver isso. Por que as mulheres não encontram trabalho? Vamos fazer outro contrato. O homem resiste, isso significa que as mulheres quando chegarão ao poder, não chegarão por contrato de igualdade com o homem, mas contra o homem, porque é isso que o homem quis. O Fundo Monetário Internacional tem uma mulher na presidência, mas apenas 12 mulheres entre os mais de cem membros; o Banco Central Europeu tem 28 governadores, sendo 26 homens e apenas duas mulheres. É o homem que resiste. Eu imagino que as mulheres, quando irão ao poder, estarão em uma posição de vencedoras de uma guerra.
Qual é o seu juízo de valor a respeito?
Que o homem é burro. Não busca o acordo. Ainda dá tempo de fazer um pacto, mas daqui a dois anos não será mais conveniente para as mulheres.
“Se este não é o melhor dos mundos possíveis, é ao menos o melhor dos mundos que já existiram até hoje.”
Em seu livro, o sr., assim como muitos outros intelectuais e pesquisadores, nos lembra que vivemos no melhor dos mundos que já existiram. Porém, parece que nos esquecemos disso o tempo todo, só ficamos reclamando e vendo o lado negativo das coisas.
Se este não é o melhor dos mundos possíveis, é ao menos o melhor dos mundos que já existiram até hoje. Estamos muito melhor que ontem. O planeta jamais tinha hospedado tanta inteligência, ainda mais escolarizada e interconectada. Mas, assim como em nível pessoal, também em nível social existe o esquecimento social, um fenômeno que sempre existiu, não é de se surpreender. Só os jornalistas se surpreendem.
A mídia tem uma responsabilidade nisso?
Sem dúvida. Tudo é filtrado pela mídia. Entre eu e quem vai ler essa entrevista, há você, jornalista, no meio. É você que decide tudo, com uma vírgula e um título. Para mim, como sociólogo, é natural, não me surpreende.
“A distância entre ricos e pobres nos Estados Unidos hoje é maior que cem anos atrás. O problema é grave não só para o proletariado, mas também para a burguesia.”
Parte da sua análise é dedicada à desigualdade. A pobreza diminuiu enormemente no mundo nas últimas décadas. Se a riqueza cresce para todo mundo, para os ricos e para os pobres, por que se preocupar com a desigualdade?
As diferenças de poder, conhecimento, oportunidade, de proteção, de trabalho e riqueza são diferenças que crescem. A distância entre ricos e pobres nos Estados Unidos hoje é maior que cem anos atrás. O problema é grave não só para o proletariado, mas também para a burguesia. Dez anos atrás, 385 pessoas no mundo eram donas da riqueza de metade da humanidade, 3,4 bilhões de pessoas. Hoje, a riqueza de metade da humanidade, 3,6 bilhões de pessoas, é possuída por 26 pessoas. Então, a riqueza se concentra e isso é um dano para a burguesia. 26 pessoas podem comprar 26 mansões e 26 Ferrari, mas depois acabou. Isso vai atrofiando a economia. Pelo contrário, 3,6 bilhões de pessoas podem comprar 3,6 bilhões de sapatos, roupas etc. Essa concentração é intrínseca à natureza do neoliberalismo. A alternativa é a social-democracia, ou seja, a redistribuição da riqueza por meio dos impostos, mas os governos estão reduzindo os impostos para os mais ricos: Trump já reduziu, na Itália tem uma tentativa de fazer isso.
Muitos de nós têm a sensação que a política tradicional não cause mais um impacto direto sobre nossas vidas, mas que forças transnacionais como o mercado e as multinacionais sejam mais incisivas.
Estamos diante de dois fenômenos, paralelos e que interagem entre si. De um lado, a grande presença de multinacionais e, do outro, o surgir de cidades-estado: no mundo há cerca de 600 cidades com mais de um milhão de habitantes, sendo que cerca de 40 têm um poder imenso: o prefeito encontra chefes de estado, faz acordos comerciais, etc. No passado também havia multinacionais poderosas, por exemplo, no século 19 a Companhia das Índias cuidava das relações comerciais entre o Reino Unido e o Commonwealth, mas era uma empresa só. Hoje são muitas e possuem bens imateriais, que são as patentes e permitem um ganho imediato.
Vamos falar do futuro do trabalho. Que os robôs roubarão nossos empregos é um fato aclarado…
Não é nada aclarado. Muitos economistas dizem que os robôs vão criar mais emprego de quantos vão tirar. Somos nós sociólogos que dizemos que as máquinas vão roubar o trabalho e os dados estão dizendo que estamos certos, mas por ora os governos concordam com os economistas. Por enquanto, só a Alemanha reduziu o horário de trabalho para 28 horas semanais.
“É um perigo real. Não porque a Inteligência Artificial começará a pensar sozinha, mas porque quem controla a IA não será suficientemente inteligente para controlá-la.”
Muitos intelectuais acreditam que a Inteligência Artificial se tornará tão poderosa que poderá fugir do controle humano. É ficção científica ou um perigo real?
É um perigo real. Não porque a Inteligência Artificial começará a pensar sozinha, mas porque quem controla a IA não será suficientemente inteligente para controlá-la. Como ocorre na política, em que os políticos não são capazes de administrar o Estado. O Estado não foge da mão dos políticos, mas os políticos não estão à altura. É como um motorista de carro não muito habilidoso. No caso da IA, os danos podem ser enormes, por exemplo se entregarmos à IA a gestão da bomba atômica. O problema é entregar a IA a pessoas medíocres, que não a saberão usar.
“Os verdadeiros vira-latas no Brasil são a elite, não as pessoas da favela.”
Como grande amante do Brasil, o sr. deve conhecer o complexo de vira-lata que, se diz, aflige os brasileiros. Qual é a sua opinião?
Os verdadeiros vira-latas no Brasil são a elite, não as pessoas da favela. Os que acham que todo o bem vem dos Estados Unidos e todo o mal é do Brasil. Estou lendo o belíssimo livro do economista Eduardo Giannetti [O Elogio do Vira-Lata], em defesa dos vira-lata. Recomendo.
Ontem, visitei um lugar belíssimo: o Museu da Arte Indígena, aqui em Curitiba, organizado por um casal que todo ano viaja pelo Brasil e faz uma coleta científica extraordinária. É um museu tecnologicamente perfeito, que quase ninguém conhece. Ontem, jantei com Jaime Lerner, nem ele o conhecia. Visitei todos os principais museus etnográficos do Brasil e esse é o melhor, feito sem dinheiro público. Esse não é um caso de vira-lata, mas de grande consciência da importância da cultura e da estética indígena. É uma coleção de objetos atuais, não antigos, importantes do ponto de vista filosófico e esotérico.