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Música, costura e negritude: conheça Marcos Neguers

O lugar de fala é dos negros, de quem vivencia essa realidade no Brasil todos os dias — mas o problema do racismo é de todos nós. Conheça o alfaiate e cantor Marcos Neguers

Ao completar seis anos, Marcos Neguers ganhou seu primeiro kit de costura. O presente da avó materna era comum a todos os netos, para que tivessem a responsabilidade de costurar a própria roupa, caso precisassem. “Ela dizia que, já que éramos negros, não podíamos não andar asseados. Aí está um dos mecanismos de defesa [da população negra]”, relembra.

A consciência de sua negritude foi despertada desde cedo, em especial pela influência das avós. A materna representava carinho e doçura, passava sua mensagem pelo amor. A paterna era uma líder social no interior do Paraná e seu marido, vereador. Ela, uma figura forte, o ensinou a nunca abaixar a cabeça. “Por conta dela, sempre soube me impor. Esse equilíbrio das duas me fortaleceu como homem negro”, conta Marcos.

Essa história da infância também revela outro aspecto da trajetória de Marcos: seu encanto pela costura. O alfaiate passou por cargos de chefia comercial de gigantes da moda, como Puma, Luxottica Group e Armani, antes de criar sua própria marca. Há dois anos, abandonou a rotina de viagens e gestão para lançar a Dom Bernardino.

No entanto, Marcos nunca se limitou a apenas uma área: ao longo desse tempo, entrou também no mundo da música e das artes cênicas. A carreira como cantor pretende manter até o fim da vida. Inclusive, acaba de assinar um contrato com uma das maiores gravadoras do mundo — mas ainda não pode divulgar mais informações. O que já podemos esperar é um álbum completo até metade do próximo ano.

“É muito estranho, porque o homem é capaz de coisas incríveis — e, no meio disso, é racista. É como se tivesse um carro incrível, super tecnológico, mas com rodas de pedra. É burro.” — Marcos Neguers

Na atuação, notou como a cor da sua pele em alguns casos ultrapassa o talento. “Só vou pegar um papel se tiver no briefing ‘advogado negro’. Se for só ‘advogado’, mesmo com um teste impecável, a possibilidade de eu conseguir é quase nula. Isso aconteceu muitas vezes”, relata. Para mudar o cenário, entende que é necessária a criação de uma corrente estratégica, que deve ser pensada econômica, social e filosoficamente.

Mas os avanços são a passos curtos. Com três séculos de escravidão, Marcos acredita que a sociedade ainda vai conviver com resquícios do racismo por mais 600, 700 anos. “O branco de hoje não tem culpa sobre a escravidão, mas colhe os benefícios só pelo fato de existir”, reflete. “O avô do seu tataravô podia ser explorado, honesto e trabalhador, mas sem dúvidas o avô do meu tataravô era escravo, isso é fato.”

Banzo é o nome de uma das músicas de Neguers, como é mais conhecido no meio. A tradução da palavra, original do iorubá, significa depressão. Na canção, Marcos passa a dor e sofrimento dos negros que chegavam ao país como escravos. “Alguns morriam intactos, sem nenhuma doença física — morriam de tristeza. Era tão dolorosa a travessia, em todos os aspectos, que o cérebro desligava aquele corpo porque a dor era insuportável”, descreve.

“Quando me coloco aqui, no coração do bairro mais branco de Curitiba, é com o objetivo de ser uma bactéria penetrada nesse organismo para ruí-lo de dentro para fora, porque de fora para dentro eu sou uma pulguinha batendo no pé de um elefante” — Marcos Neguers

Com suas duas filhas tem uma relação de amizade e aprecia a maneira como, mesmo tão novas, já desenvolveram uma vasta consciência sobre o mundo. A mais velha, Luiza, de 11 anos, está acordando para a negritude agora, ao perceber certas atitudes ofensivas por sua condição de negra. Seu DVD cabeceira, desde os cinco anos, é da Esperanza Spalding. “Ela sumia e ficava duas horas vendo uma artista negra de jazz que tem os cabelos parecidos com os dela. Tinha essa identificação.”

A costura

Ao passar por um portão preto em meio a um muro com grafites, encontramos um belo jardim e uma escada que dá acesso ao estúdio-ateliê-casa do alfaiate. Lá, ao som de Leon Bridges, Marcos nos espera, com seu traje — alfaiataria, é claro — elegante como se estivesse prontíssimo para qualquer evento social. A ocasião? Nenhuma. “Me visto assim todos os dias para fazer tudo na vida. É preciso raciocinar o vestir, não pode ser completamente operacional. Hoje, temos a oportunidade de comunicar muitas coisas na maneira como nos vestimos”, comenta.

Na época em que trabalhava na Puma, chegava a ter até 30 voos por mês. Usou essa fase com muitas viagens para aprender mais sobre costura em fontes variadas. Aproveitou para fazer cursos e ir para a rua, conhecer os alfaiates dos Estados Unidos, Europa e, em especial, da África do Sul. “Em Cape Town fundamentei meu estilo de cortar tecido, absolutamente próximo do homem negro”, destaca. “Faço alfaiataria que tem fortes influências da África e da minha negritude – independente da peça ou de quem eu vá vestir.”

Mas seu início na costura foi ainda no fim dos anos 1990, quando decidiu costurar as peças que queria ter, mas não achava ou não conseguia comprar. Seus amigos começaram a gostar e a pedir peças iguais – na época, Marcos não sabia sequer como cobrar. Agora, mesmo com dois anos de existência da marca, ainda faz questão de cortar todas as peças — sempre do zero, sem uso de moldes.

“Faço alfaiataria que tem fortes influências da África e da minha negritude – independente da peça ou de quem eu vá vestir.” — Marcos Neguers

Longe dos padrões de tamanho e com foco em criar exatamente o que o cliente precisa, a Dom Bernardino também passa longe das tendências — o alfaiate entende que o clássico conversa verdadeiramente com as pessoas. “Quem precisa caber em você é a roupa, por isso faço peças sob medida. É como se eu fosse adaptar a pessoa ao avião, é ao contrário o raciocínio. Se você tem um corpo, nós vestimos”, sintetiza.

A localização de seu espaço, no Batel, também é um ato político. “Quando me coloco aqui, no coração do bairro mais branco de Curitiba, é com o objetivo de ser uma bactéria penetrada nesse organismo para ruí-lo de dentro para fora, porque de fora para dentro eu sou uma pulguinha batendo no pé de um elefante”, analisa.

Além de Marcos Neguers, conheça os outros personagens da matéria de capa “O Despertar do Século”:

*Matéria originalmente publicada na edição 227 da revista TOPVIEW.

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