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Uma década de magistratura

Roberto Dala Barba Filho compartilha trajetória e medidas de enfrentamento à pandemia

Chegamos à edição de junho e, para encerrar a trilogia especial com chave de ouro, conversei com o renomado presidente da Associação dos Magistrados do Paraná  (Amatra IX) sobre o advento e as medidas judiciárias de combate ao coronavírus. Confira!

Como se deu sua trajetória até a chegada à presidência da Associação dos Magistrados do Paraná? 
Sempre considerei a participação em movimentos associativos e de representação muito importante e fundamental como exercício de cidadania. Participei desde antes, no ensino secundarista do movimento estudantil, durante o período de faculdade no centro acadêmico e também no diretório central dos estudantes, e desde que ingressei na magistratura procurei participar, direta ou indiretamente, das atividades e iniciativas da Amatra IX, sendo muito honroso e gratificante poder representar os magistrados do trabalho da 9ª região na presidência da instituição.  

Há quanto tempo o senhor é magistrado e por qual motivo escolheu essa profissão?
Completei uma década na magistratura do trabalho no ano de 2019.  Não há dúvida de que ter o convívio no âmbito da minha família com pai e parentes que exerceram a magistratura foi muito importante para conhecer a natureza da atividade, seus deveres e responsabilidades, e o papel a desempenhar em sociedade. Mas há um componente importante também de vocação. Não no sentido religioso, mas de se sentir realizado e satisfeito naquilo que faz. Considero-me muito afortunado pelo fato de ter a oportunidade de exercer a profissão que admiro e ter a possibilidade de exercer as funções onde acho que minhas capacidades para contribuir são melhor aproveitadas. 

Qual o papel da Amatra, defender os interesses dos seus associados ou lutar pelos direitos da sociedade?A Amatra possui muitos papéis a desempenhar, e isso é muito bem representado pela quantidade bastante diversificada de diretorias que possui. Como entidade, sua atuação abrange desde a natural representação dos interesses de seus associados, prestando-lhes assistência e defendendo os direitos e prerrogativas no desempenho da função da magistratura, como também viabilizar ações sociais, culturais, educacionais e promover o diálogo entre instituições, com a aproximação entre os membros de Poder Judiciário e da sociedade civil, sem nunca perder de vista o papel fundamental de defesa do Estado de Direito e dos direitos e garantias fundamentais. 

De que maneira a Amatra pode contribuir para a celeridade e economia processual no Paraná? Os processos são 100% eletrônicos no Estado?
A Amatra procura sempre colaborar e prestar auxílio em todas as iniciativas voltadas ao aprimoramento da prestação jurisdicional. A associação com frequência encaminha sugestões, opiniões, pareceres e críticas, quando necessário, visando a aprimorar as atividades desenvolvidas, em especial por ocasião da instituição do processo eletrônico. Magistrados do Paraná estão entre os pioneiros na coordenação de iniciativas de desenvolvimento de ferramentas do processo eletrônico, inclusive de audiências gravadas. A Justiça do Trabalho no Paraná é referência nacional em experiência com o processo eletrônico.

No tocante a Reforma Trabalhista, houve alterações mais significativas para a rotina da Justiça do Trabalho? Houve uma redução no ajuizamento de Reclamações Trabalhistas?As alterações promovidas pela Reforma Trabalhista foram significativas e exigiram muito da magistratura em termos de estudos e aperfeiçoamento pessoal e mesmo agora, quase três anos após sua entrada em vigor, ainda é objeto de constante estudo, com muitos temas ainda distantes de uma pacificação jurisprudencial. Ela trouxe como efeito colateral uma redução da quantidade de ações trabalhistas ajuizadas. É difícil precisar todas as razões para essa queda, mas alguns fatores podem ser identificados: introdução da sucumbência recíproca no processo do trabalho, exigência de liquidação dos pedidos na petição inicial, enfraquecimento sindical após a extinção da contribuição obrigatória, cautela até maior pacificação jurisprudencial sobre temas controvertidos, e também uma certa desinformação generalizada a respeito do que efetivamente foi modificado pela Reforma Trabalhista.

Como estão as demandas do Poder Judiciário? Atualmente há uma saturação de processos em trâmite na Justiça do Trabalho? Se sim, quais medidas podem ser implementadas a fim de solucionar esta questão?Não existe uma saturação de processos. O grande desafio das demandas na Justiça do Trabalho é o grande desafio do processo judicial de forma geral: a inefetividade da execução. É frustrante para as expectativas sociais que o devedor não pague aquilo que é reconhecido judicialmente como devido. O aprimoramento dos mecanismos de busca e investigação patrimonial é o principal caminho para ser trilhado nesse sentido, mas não se pode ignorar o fato de que por vezes a inefetividade decorre não da ausência de mecanismos de atuação judicial, mas de limitações econômicas decorrentes da pura e simples insolvência do devedor. 

Quanto a Covid-19, quais os reflexos para a Justiça do Trabalho hoje e pós pandemia? É possível avaliar neste momento e todos os seus desdobramentos? Audiências virtuais já estão acontecendo? É seguro? É viável? Será permanente pós-pandemia?
A Justiça do trabalho não parou durante todo esse período de medidas preventivas à pandemia, havendo forte produção em trabalho remoto. Mas o processo do trabalho é eminentemente oral e com concentração de atos em audiência, razão pela qual houve, há, e haverá ainda por um tempo um inescapável prejuízo aos processos em trâmite. É muito cedo ainda para avaliar todos os desdobramentos de uma crise de saúde sem precedentes como essa. A Justiça do Trabalho tem procurado realizar as audiências telepresenciais na medida do possível, mas sabendo que sua realização, nesse formato ainda depende, até por força de expressas disposições administrativas, da concordância e colaboração direta das partes quando possível, e também das limitações de acesso tecnológico que atingem a maior parte da população brasileira. 

Considerando o momento que vivemos, frente a pandemia da Covid-19, audiências de conciliação, na grande maioria, estão sendo realizadas através de videoconferências. Há a tentativa de algumas Secretarias em determinar a realização de audiências de instrução por meio de ferramentas tecnológicas. Qual a sua opinião sobre a realização das audiências de instrução através de videoconferência?
Não tenho dúvida alguma de que o futuro aponta para a realização de audiências por videoconferência. Mas o futuro ainda não chegou. Ainda enfrentamos muitas limitações de acesso à tecnologia, especialmente no que diz respeito às partes e testemunhas, e a verdade é que, embora o processo tenha migrado para o ambiente eletrônico, a prática de atos materiais – como a realização de audiências – ainda é muito incipiente e toda a disciplina jurídica da matéria ainda presume a audiência presencial. A teleconferência ainda aparece no direito brasileiro como uma opção e uma faculdade, não como imposição às partes. Então, neste momento, e observadas as limitações tecnológicas e legais atualmente em vigor, a realização de audiência de instrução nesse momento ainda é um ato que depende da colaboração e concordância de todos os envolvidos no processo. 

Como os Magistrados da esfera Trabalhista poderão contribuir para uma retomada da economia em momento pandemia? Como a Amatra poderá contribuir?
Do Poder Judiciário o que se pode fazer é precisamente que continue a exercer o que lhe incumbe: o papel de prestação jurisdicional com vistas à pacificação social. O momento destaca, contudo, a importância central da existência de uma Justiça especializada em conflitos trabalhistas. Será um momento em que já se projetam,  infelizmente, dificuldades econômicas, de prejuízo para os empregadores, de redução de salários e perda de postos de trabalho, e o direito do trabalho é tão central em um momento como esse (foi inclusive objeto de boa parte das medidas provisórias editadas), que só pode ser visto como positiva a existência de um ramo do Poder Judiciário qualificado, especializado e sensível à realidade de trabalhadores e empregadores nesse momento. A Amatra, de sua parte, não apenas tem procurado exercer nesse momento sua responsabilidade social, através de ações assistenciais com a colaboração de seus associados, como também desenvolvido estudos em ambiente virtual, através da sua escola (Ematra) abertos gratuitamente a todas as pessoas, para discutir as alterações e os efeitos da crise, e encontrar formas de solucionar juridicamente os problemas decorrentes. 

Vimos que as empresas com a possibilidade de atividades de forma remota adotaram o teletrabalho/home office. Em seu ponto de vista, é uma tendência que será dotada mesmo após a pandemia?
O teletrabalho já é uma realidade. Já era uma realidade muito presente mesmo antes da disciplina específica dada ao tema na Reforma Trabalhista no final de 2017, e penso ser uma tendência de ampliação e expansão irresistível dessa forma de trabalho.

Considera que as medidas adotadas pelo Governo Federal, através de MPs e Portarias, foram eficazes para contornar o momento de crise econômica?
É muito temerário fazer qualquer análise a esse respeito no momento. É uma crise inédita em todo o mundo, que prontificou respostas também diferentes em diversas regiões, que produzirão também efeitos distintos em cada local em que foram adotadas até por conta das peculiaridades regionais. É um exame que apenas o tempo permitirá realizar.  

A MP 927/2020 reconhece que o estado de calamidade pública constitui hipótese de força maior e muitas empresas se valeram desta condição para efetuar dispensas na modalidade por força maior com o pagamento da multa do FGTS pela metade, ou seja, 20%. Qual a sua visão jurídica sobre o tema?Legalmente, a medida provisória 927/2020 é cristalina no sentido de se tratar de hipótese de força maior. Se for convertida em lei, fatalmente esse enquadramento se definirá. Mas o fato de que a pandemia é uma hipótese de força maior não significa, necessariamente, que a extinção do contrato de trabalho decorreu da pandemia. É importante assinalar que a lei 8036/90, quando alude à redução do percentual da indenização do FGTS em razão de força maior condiciona esta hipótese ao reconhecimento judicial nesse sentido, então todos esses casos naturalmente poderão ser discutidos judicialmente para se verificar, no caso concreto, se a dispensa realmente decorreu da força maior pandêmica, ou não teve nenhuma relação com ela. Como a própria legislação de emergência desse período apresentou diversas alternativas negociais visando precisamente evitar a perda de postos de trabalho, só a análise caso a caso permitirá concluir se corresponde a uma hipótese de dispensa por força maior ou não. 

Muitos empregados encontraram dificuldade em sacar o FGTS e se habilitar no seguro desemprego devido a modalidade de rescisão por força maior, pois as intuições, CEF e Ministério do Trabalho e Emprego, entendem que deve haver uma sentença judicial que reconheça a condição. Qual a sua visão jurídica sobre o tema?
Como mencionado no item anterior, o enquadramento como força maior, por expressa previsão legal, depende do reconhecimento pela Justiça do Trabalho. É razoável, assim, a interpretação de que a liberação do saldo do FGTS em tais hipóteses esteja condicionada a uma decisão prévia a respeito, e não mera declaração do empregador (especialmente não sendo mais necessária a homologação sindical do termo rescisório). Levando em consideração que na prática seria possível a obtenção de alvará com o mesmo efeito através de uma ação judicial (mesmo que em sede de jurisdição voluntária ou acordo extrajudicial), parece-me muito mais célere nesse caso que as partes já busquem o reconhecimento judicial dessa modalidade rescisória do que serem forçadas a ajuizar procedimentos administrativos ou judiciais em face do órgão gestor do fundo (Caixa Econômica Federal). 

A MP 936/2020, que prevê a redução da jornada de trabalho e suspensão do contrato de trabalho, foi publicada em 01/04/2020, há quase 2 meses já, estipulando que as medidas poderiam ser adotadas por no máximo 90 dias, nos casos de suspensão por apenas 60 dias. Considerando que estamos chegando ao limite de 60 dias das suspensões, as empresas que ainda não retomaram suas atividades, como devem proceder em relação aos empregados que deverão retornar ao trabalho?
A redução da jornada ou suspensão contratual constituem apenas algumas das modalidades previstas legalmente como alternativas à extinção dos contratos de trabalho. As alterações legislativas contemplaram outras também, como antecipação de feriados, flexibilização ainda maior do banco de horas, antecipação de férias individuais, teletrabalho, entre outras. Depende muito da realidade de cada empresa, e respectivo ramo de atividade, quais dessas diversas alternativas apresentadas pode melhor auxiliar a enfrentar as dificuldades econômicas durante esse período. 

Nos casos de adoção das medidas da MP 936/2020, redução de jornada de trabalho e suspensão de contrato de trabalho, é conferida aos empregados garantia provisória do emprego pelo período acordado e por período equivalente ao do acordo, após o retorno das atividades. Às empresas que ainda assim não tenham condições de manter os contratos poderão realizar as rescisões na modalidade por força maior, com pagamento reduzido das indenizações pelo período estabilitário?
No meu entender, não há previsão legal para redução pela metade dessa indenização específica prevista na medida provisória em razão de eventual força maior. As exceções legais devem sempre ser interpretadas restritivamente e não há qualquer permissivo para se aplicar a redução a esta modalidade indenizatória, respeitados eventuais entendimentos contrários.

Qual sua opinião jurídica em relação às renegociações ou suspensões de pagamento de acordo nas ações trabalhistas entabulados antes da pandemia?
Os acordos judiciais homologados possuem eficácia de coisa julgada, então essa é uma questão muito delicada porque envolve o debate de se submeter ou não essa coisa julgada à condição “rebus sic stantibus” no sentido de que alterações fáticas posteriores que tornem gravosa o cumprimento da obrigação podem autorizar mudanças no que foi acordado. Naturalmente, a renegociação de comum acordo entre as partes não encontra maiores dificuldades por se tratar de uma novação. Particularmente, entendo que, caso fique cabalmente demonstrada a dificuldade financeira superveniente da empresa, decorrente dos efeitos das medidas adotadas no período de combate pandêmico, que tornem inviável o cumprimento do acordo na forma homologada judicialmente sem prejuízo da sobrevivência econômica da empresa ou até cumprimento das obrigações contratuais dos demais empregados, é possível a revisão judicial dos termos do acordo homologado. Mas adianto que respeito como absolutamente compreensíveis, razoáveis e defensáveis também eventuais entendimentos em favor da imutabilidade dos termos do acordo homologado quando não houver acordo entre ambas as partes. 

Atualmente, com a existência e aprimoramento do sistema PJE, os processos encontram-se automatizados de maneira eficiente ou ainda há questões pontuais pendentes de aprimoramento? Se positivo, quais?
Sempre haverá espaço para aperfeiçoamento. O processo eletrônico será eternamente sujeito a melhorias e avanços porque não há limites para a criatividade humana, e o direito é uma construção cultural em constante aperfeiçoamento. A título de exemplo, o processo eletrônico, no modelo atual, ainda é excessivamente formulista. Ele exige de todos os que nele operam que enquadrem sua atuação judicial dentro de determinados modelos que o sistema oferece. Há muita dificuldade de movimentação processual sempre que surge alguma necessidade que foge às fórmulas previamente contempladas no sistema. E essa dialógica constante entre o que o sistema permite e viabiliza, e as necessidades e problemas a serem resolvidos estará sempre presente. 

Qual a sua mensagem para os Paranaenses? 
Enfrentamos uma crise de saúde sem precedentes em todo o mundo. Ela trouxe perdas irreparáveis em vidas humanas. A preocupação com a saúde e o bem-estar das pessoas durante esse período tem que ser a maior prioridade, porque não temos como devolver a vida para aqueles que a percam durante essa luta. Mas vamos superar essa crise. Como superamos outras. E a forma como lidamos com ela hoje, e como reagiremos quando ela passar, definirá o mundo que teremos e que deixaremos para o futuro.

*Coluna originalmente publicada na edição #237 da revista TOPVIEW.

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