Transformada pela educação, Celinha Camargos ajuda pessoas a encontrarem seus caminhos
Com 9 anos de idade, quando veio de Minas Novas (MG) para Curitiba, ela não sabia ler nem escrever. Nunca tinha ido à escola. Tampouco qualquer um dos seus seis irmãos (há mais dois que são de mães diferentes). Mas a vida mudou para Celinha Camargos, a eloquente publicitária, sócia e diretora de marketing da Redhook School – adicione aí também o título de “um dos principais nomes da área no Paraná”, finalista do Prêmio Personalidades TOPVIEW | Grupo RIC 2018 na categoria Publicitário do Ano.
Assim como um dia, em condição mais vulnerável, ela foi acolhida e incentivada por diversas pessoas que cruzaram seu caminho, cabe a Celinha, hoje, o papel de encorajar quem, por algum motivo, a procura. E são muitos – pelo menos mais de três mil formados pela Redhook, segundo suspeita. “Todo mundo desse país que quer trabalhar com comunicação, quando pinta em Curitiba, cai aqui na escola”, garante.
E ela, que tem uma valiosa rede de contatos – adquirida principalmente nos cinco anos em que trabalhou no Clube de Criação do Paraná -, consegue com certa facilidade fazer conexões e ligar interessado com o objeto de interesse. Mas deixa claro: “Eu não cobro por isso”. Mentoria é uma das muitas coisas que ela faz pelos outros por pura satisfação.
É difícil acompanhar o ritmo e o raciocínio de Celinha, que fala em um compasso acelerado citando sempre personalidades e profissionais. Da infância pobre, me conta, aprendeu “a se virar” desde muito nova. Aos 11, era babá de todos os garotos da rua, “cuidava das crianças para as mães trabalharem”; aos 13, trabalhava em um supermercado; depois, com 14, passou a garçonete em um restaurante. Um cliente, que almoçava sempre por lá – “seu Ozaki”, ela lembra –, incomodado com os caminhoneiros que a assediavam diariamente, sugeriu: vem trabalhar comigo. “O que eu tenho que fazer?”, era o que sempre perguntava.
Ter diminuído o consumo de café – hoje são só duas xícaras pela manhã – é um passo a mais em direção a desacelerar. “Tô ficando velha, daqui a pouco tenho um troço”, brinca. Os gatos Lolly e Lolo a ajudam nesse desafio. Eles são os mascotes dela e da escola de criatividade e estão sempre por lá. Nesta entrevista, a mineira de coração curitibano fala com orgulho da experiência de levar, pela primeira vez, jovens criativos brasileiros ao SXSW (maior e mais badalado festival de tecnologia e inovação do mundo) em março, nos Estados Unidos, relembra sua trajetória e reconhece: “Relacionamento, pra mim, é muito difícil”.
TOPVIEW: Entre tantas coisas que você faz, como define seu trabalho?
Celinha Camargos: O que a gente tenta trazer de diferente para a Redhook é acolher as pessoas. Todo mundo que chega de qualquer lugar desse país a Curitiba e quer trabalhar com comunicação, cai aqui. O que tem de histórias… A gente faz mentoria dentro dos cursos. Todos os dias [empresas] me pedem indicação de gente para encaixar… A gente treina as pessoas, nos nossos cursos, sempre com foco no mercado de trabalho. É puxadinho, não é só blá, blá, blá. A gente tem professor showman, mas também tem um monte de profissionais que não são showman, com uma super experiência. Evoluir dói! A gente dá essa consultoria, entende o perfil [do aluno], vê que para sair daqui e chegar até lá, vai precisar disso, disso e disso. As pessoas falam: “Quero mudar, quero evoluir” – mas não fazem nada. O que a gente faz, basicamente, é obrigar as pessoas a fazerem aquilo. Você sabe que se não fizer a sua parte não vai acontecer. Os profissionais estão aqui, a metodologia funciona, é boa, mas se você não fizer a sua parte, não tem milagre. É você o primeiro a se comprometer consigo mesmo. Simples assim. Dificilmente alguém fica desempregado.
Você é uma espécie de headhunter, então?
Sou e não sou. Eu não gosto de ser headhunter. Primeiro, eu não cobro pra fazer isso. Segundo, tem um monte de coisa que eu não entendo, por exemplo, criação. Eu não vou me arriscar a dar palpite no portfólio de um garoto de arte, não sou diretora de arte e tecnicamente eu não consigo ajudar esse garoto. Então, o que eu faço: eu mando ele falar com X, Y. É o tipo de coisa que eu consigo fazer, as conexões, pensar em lugares que possam dar certo, mas eu não cobro para fazer isso. Obviamente, a gente tenta priorizar as pessoas que estão fazendo os nossos cursos, porque conhecemos melhor essas pessoas. Não indico quem eu não conheço. Se você vier aqui tomar um café comigo, me contar o que você quer, tudo bem, assim eu indico. Eu paro várias vezes durante a semana para atender desde estudante universitário que está procurando estágio até executivo de uma grande empresa que foi demitido – o que tem acontecido muito. “Celinha, não sei o que fazer.” A gente pensa junto, falo o que eu faria se fosse ele. Às vezes, é só isso que as pessoas precisam: bater papo, enxergar além daquela situação complicada. Não é grande coisa. Já me falaram que eu tenho que ser headhunter. Não tenho tempo de ser, mas tenho tempo de tomar um café contigo.
“Muita gente falava que eu estava sendo explorada. Eu falava que estava aprendendo.”
No que está focada agora?
Em Austin. Somos a primeira escola de criatividade apoiada pelo grupo de mídia, pela associação dos designers do Paraná, a levar para dentro do SXSW (South by Southwest) [o maior e mais badalado festival de tecnologia e inovação do mundo] que acontece entre 8 e 14 de março, em Austin [Texas, Estados Unidos], jovens criativos do Brasil. A ideia é criar uma vitrine lá fora para as nossas empresas e profissionais. Que a gente consiga trazer projetos relevantes para dentro do Brasil. Tenho uma dupla de Minas, do Rio, de Brasília, algumas de Curitiba, claro, Rio Grande do Sul. Eles ganham um desafio criativo que é assim: como você resolve esse problema social com criatividade e usando tecnologias lançadas nos últimos três anos. Um mentor de São Paulo vem todo sábado pra cá, os meninos de outros estados assistem online. Para mim, é uma coisa muito importante, para as escolas, para as instituições envolvidas e para a cidade de Curitiba. A gente está fora de São Paulo e tem gente boa demais, fazendo as coisas acontecer, com capacidade de inovar, que entende de tecnologia.
De que forma ter passado por privações na infância refletiu na sua personalidade enquanto profissional?
Sabe que naquela época eu não via isso com sofrimento? Eu não tinha referência. Para mim, aquela era a minha vida e era uma vida normal. Eu era feliz daquele jeito. Quando você começa a fazer comparações? Quando vê outras referências e entende que pode ser diferente. Hoje, tenho dó de mim, mas na época não tinha. Ia lá, fazia as minhas coisas, batalhava. Aprendi a falar quatro idiomas sozinha. Nunca paguei [curso de] inglês. Quando meus pais se separaram, minha mãe veio para cá e trouxe todo mundo junto. Ela tinha três irmãos morando aqui e eles achavam que no Sul seria mais fácil pra ela recomeçar com quatro crianças pequenas. Meu pai nunca ajudou em nada e ela cuidou sozinha de tudo. Minha mãe estudou até o segundo ano do primário. Naquela região de Minas Novas não existe infraestrutura, tinha até uma escola longe, a gente podia ir a cavalo, mas “mulher não precisava estudar”. Os meninos também não iam porque tinham que trabalhar na roça, então, eu tinha nove anos e nunca tinha estudado, não sabia ler e escrever. Por isso sou muito [a favor] da prática. Minha vida inteira foi assim. Quando minha mãe se separou, ela botou todo mundo na escola. Trabalhava de doméstica de segunda a sábado, eu tinha que cuidar do meu irmãozinho de 5 anos, só podia ligar pra ela se tivesse um problema. Eu tinha um par de sandálias e ele arrebentou um dia. Não tinha uma ficha pra ligar pra minha mãe e fui pra escola descalça. As crianças me zoaram… Isso é bullying (risos). Escondia os pezinhos com muita vergonha. Nesse dia, eu falei: “que bosta, eu não quero que minha vida seja sempre assim”… Quando eu dou mentoria, [os alunos] chegam reclamando de uma coisinha pequena que, pra eles, é tão grande. Aí, conto essa história.
E em qual momento você entendeu que a educação mudaria esse cenário?
Havia umas competições na escola e os prêmios eram uns livros. Falei: “Vou ser a melhor aluna dessa escola”. Eu fui a melhor aluna da minha escola, sempre. Era um desafio pra mim. Porque eu sou boa em Português, mas não de Exatas. Eu cuidava das crianças da rua para as mães trabalharem, ganhava um dinheirinho, comprava mais lápis e tal, tinha 11 anos. Com 13, fui trabalhar no supermercado de balconista, repositora. Depois, de garçonete. Tinha esse japonês que sempre almoçava no restaurante e um dia me disse: “Para de trabalhar aqui. Você não quer trabalhar na minha empresa?”. Eu tinha 14 anos, tinha uns caminhoneiros nojentos que iam lá comer… Foi muito legal. Ele foi tipo um pai pra mim. Me ensinou a fazer nota fiscal, comecei a trabalhar com administrativo, me formei em Contabilidade – ele me incentivou. Gosto de trabalhar com Comunicação, mas tenho essa base de Contabilidade/Administração que me ajuda muito. Fiz o meu melhor sempre no que me propus a fazer, mas não era feliz fazendo aquilo. Ele disse: “Vai lá, estuda outra coisa”. Comecei a namorar um fotógrafo que também era diretor de fotografia de filme publicitário e fui entrando nessa área, decidi estudar Publicidade. Comecei de baixo de novo, como estagiária.
“Eu nunca precisei procurar emprego na minha vida. Se eu saía de um lugar, já tava certo em outro.”
Até que foi parar no Clube de Criação do Paraná…
Comecei como estagiária no CCPR lá por 2004. Fazia de tudo – não tinha o lance da lei de estágio das 6h. Muita gente falava que eu estava sendo explorada. Eu falava que estava aprendendo, tinha uma vontade de aprender! Fazia de tudo: desde exposição, anuário, eventos, programa de rádio do Clube, copa de futebol inter agências… Tudo isso eu coordenava. Subi para assistente de coordenação, assessora de comunicação… Até que o Renato [Cavalher] me demitiu. Eram 12 diretores e três deles reclamavam de mim. Sempre vai ter reclamação quando você trabalha com gente que tem um ego gigante, tem que saber gerenciar. Mas foi ótimo, porque fiz minha primeira viagem pra Europa. Passei 45 dias pela Itália, Suíça, foi incrível. Quando voltei, tinha um monte de gente querendo me contratar. Eu nunca precisei procurar emprego na minha vida. Se eu saía de um lugar, já tava certo em outro. Sempre procurei trabalhar muito bem, de modo que não quisessem que eu saísse. E, se eu saísse, que alguém me quisesse a ponto de me fazer uma proposta melhor do que onde estou.
Você teve uma experiência fora do Brasil antes da criar a Redhook, né? Fala um pouco sobre isso.
Quando saí do CCPR, acabei indo pra Lemon [antiga escola de criatividade de Curitiba]. Transformei uma sala em duas. Aumentei o número de cursos… A proposta era que eu virasse sócia dali dois anos. Acabou que um ano e meio depois, não sentia que queria. Treinei uma aluna. Nunca deixei ninguém na mão, o cara pode não gostar da tua decisão, mas não vai ter argumento para falar mal de você. Obviamente, se você está fazendo um bom trabalho, ninguém quer que você saia. Especialmente antes, tinha uma cultura de tentar segurar o funcionário. Hoje em dia, não é mais assim, as pessoas migram muito de empresa, de trabalho, mudou muito. Conheci meu ex-namorado, que é norte-americano, e ele me convenceu a ir com ele pros Estados Unidos. Eu já trabalhava na coordenação de todos os estados do Young Lions Brazil [um programa para jovens profissionais criativos que integra o Festival de Publicidade de Cannes], exceto São Paulo, quando o Emmanuel [Publio Dias, coordenador do Young Lions Brazil] me chamou para coordenar o nacional. Era pouca grana, mas pensei: ‘Se eu quiser trabalhar em qualquer coisa fora do país, preciso ter no meu currículo alguma coisa realmente relevante’. Mas acabei voltando. Fiz assessoria de comunicação para três empresas, de Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro. Só que eu não nasci pra fazer coisas simples ou ficar tranquila (risos).
Nesse contexto surgiu a Redhook, em 2013?
Eu precisava de um desafio. A Aline, que eu treinei pra ficar no meu lugar na Lemon, falou que a escola estava fechando: “Você não quer voltar, pegar, abrir a sua?”. O povo fala: “Pô, Celinha, você tem o ‘toque de Midas’, tudo que você toca dá certo”. Mas não é. Tem um super trabalho por trás. Fazer as coisas funcionarem dá um trampo miserável. Tudo aquilo que eles escrevem na teorias da comunicação da vida é realidade. O problema é que a maioria das pessoas lê, memoriza, mas não pratica. Aí, não funciona.
Para onde caminha a comunicação?
Para as pessoas. Qualquer um é mídia, qualquer um vira um canal. Você é uma influência. Comunicação é a gente. Hoje, mais do que nunca, a gente tem que entender de pessoas, o que elas querem, para conseguir trabalhar com um grupo de pessoas que seja mais relevante pra você. As marcas têm que tomar muito cuidado, têm que entender as pessoas, quem elas são.
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Com uma rotina tão agitada, dá tempo de namorar?
Eu tinha um namorado. A gente terminou porque ele queria uma pessoa que estivesse mais em casa, o que não é muito o meu perfil. É difícil, relacionamento pra mim é muito difícil. A minha vida é fazer as coisas, eu tô muito ocupada o tempo todo. Então, eu tenho dois gatos (risos). Como todo mundo me convenceu que eles poderiam ser mascotes da escola e eu consigo conviver com eles, cuidar e dar atenção decentemente, então posso tê-los. É legal porque eles me acalmam. Eles são incríveis…
Relacionamento não é algo com o qual você se preocupa?
Hoje em dia, nem tem que se preocupar mais com isso, Jesus! As pessoas falam ‘mas quando você ficar velha’, cara, você não pode ter alguém pensando assim, tá muito errado. É o mesmo que ter filho esperando que eles cuidem de você. Cada pessoa tem o direito de escolher o que quer fazer da vida dela. Seria muito egoísta da minha parte ter uma expectativa com relação a esse tipo de relação. Sou super de boa, tenho relacionamentos, adoro, saio, me divirto horrores… Não aqui em Curitiba.
Como assim?
Em Curitiba não dá. Eu conheço todo mundo dessa cidade (risos). Sabe como é, não que eu me preocupe com isso, mas é difícil você gerir uma relação corporativa e de negócios com alguém com quem se relaciona. Isso afeta muito a minha performance. Daí, prefiro manter Curitiba como meu escritório. Aí, em São Paulo, outros lugares, países, tenho meus negócios lá (risos). É um jeito de aproveitar a vida. Acho que as mulheres ficam muito preocupadas ainda. Sabe o que mudou muito a minha cabeça? Ir para fora do país. Você vê na Europa, Estados Unidos, muitas pessoas mais velhas namorando, se casando, curtindo a vida, viajando junto, sem estresse, de boa. Por que a gente tem que ficar se preocupando? Quero me divertir, conhecer gente… Participo de uma organização mundial de hospitalidade, então hospedo muita gente na minha casa… Você constrói, conhece gente, descobre histórias, aprende sobre as pessoas e vai aprendendo sobre esse tipo de coisa também, como elas vivem, se relacionam, o que pensam da vida e você acaba aprendendo com isso também: existem outros jeitos, outras culturas e tá tudo bem, tá tudo certo.
Dá pra ver no quadro de professores da Redhook: todos estão realmente inseridos no mercado de trabalho. A prática é mais importante hoje que o ensino acadêmico?
A gente foca no desenvolvimento e capacitação de pessoas para atuar no mercado de trabalho, pessoas que vão estar no dia a dia, participando de projetos, realizando coisas, por isso, é muito importante a gente trazer pra dentro da escola pessoas que estejam fazendo as coisas, que tenham sim o conhecimento acadêmico, mas que tenham praticado tudo isso. Porque é muito diferente de você ler um negócio aqui e falar ‘eu sei’. Não existe uma fórmula pronta que você aplica em todo tipo de empresa. Cada uma tem um propósito, um objetivo, uma meta, tudo isso deve ser levado em consideração. A gente não acredita em fórmulas prontas. A gente não vende cursinho técnico. Aqui, você vem pra ter uma experiência diferente, pra falar com o cara que tem uma preparação acadêmica, mas também tem uma experiência de mercado. Você precisa aprender a pensar estrategicamente de forma inteligente. Acredito que esse é o tipo de educação do futuro. Não acredito mais na educação clássica. As pessoas acham que sou louca, mas não sou. Estou acostumada a ralar. Por isso acho que engajo as pessoas. Consigo fazer as coisas acontecerem desse jeito.