FASHION

Um universo em uma vida

Fany Faintych coleciona obras de arte e moda adquiridas em suas viagens pelo mundo

Em Curitiba, aos 92 anos, apresenta – pela primeira vez – à TOPVIEW sua coleção de peças e histórias.


Nós não somos uma pessoa, somos várias. Essa é a primeira premissa para contar a história de alguém, defende
o jornalista e contador de histórias do mundo curitibano José Carlos Fernandes. Tomou-me uma tarde e um pedaço de bolo de fubá com goiabada para conhecer algumas facetas de Fany Faintych, de 92 anos, colecionadora de arte e entusiasta da moda.

Só algumas, porque a pontagrossense é daquelas que aparentam ter vivido várias vidas em uma só. A construção de sua personalidade começou quando a redação da TOPVIEW recebeu uma ligação, em junho. Era Fany perguntando por Ana Claudia Michelin, embaixadora de tendências da revista, para saber onde poderia comprar o livro dos ícones da moda de 1955, que apareceu com ela em uma foto publicada.

Quando Ana contatou Fany, descobriu outra camada dessa história: ela guardava uma coleção de peças de diversas partes do mundo compradas em suas viagens ao longo das últimas décadas. Quando o catálogo chegou às minhas mãos, em julho, mostrou- se muito maior do que imaginávamos. Peças do século XIX, das décadas de 1920, 1930, 1940 até as mais atuais, dos anos 1970, o grande chamariz da coleção.

São peças de roupa, luvas, golas, óculos, bolsas, perfumes e roupas íntimas. “Quase toda a coleção são roupas minhas, do meu uso, pelas viagens eu fui comprando. Coisas muito boas (risos). Eu sempre me vesti muito bem”, conta. A curadoria impressiona pelo cuidado com a preservação e catalogação de todos os itens, que decidiu organizar há cinco anos. Fany vive o mundo com fome de conhecimento. Carrega suas histórias como sua coleção de moda e arte: com extremo cuidado, atenção a todos os detalhes e memória irretocável.

“Eu nunca segui uma moda, eu sempre criei a minha própria moda.”

No princípio, não foi moda – ou arte

A amante da moda quase caiu para o lado das Biológicas: seu desejo era fazer Medicina. Seus pais, por outro lado, acharam que era jovem demais para sair da cidade – seu irmão o fez e mudou-se para Curitiba. Em Ponta Grossa, Fany aproveitou para ingressar na faculdade e estudou línguas neolatinas, italiano, latim, português e romeno. De casa, já sabia o polonês, idioma na qual foi alfabetizada, e o espanhol, que ouvia nas rádios argentinas e uruguaias em que seu pai acompanhava óperas. Inglês e alemão aprendeu sozinha. No ginásio, foi o latim e o francês. “Falo, leio e escrevo – conta de mentiroso – oito idiomas”, diz, entusiasmada. “Estou com dois livros de russo aqui para começar a estudar, o alfabeto é o mesmo do grego, que eu já estudei. Quero reviver isso.”

Encara a vida assim, como uma jornada de conhecimento – de si e do que o mundo tem para oferecer. Susan Sontag disse certa vez, em uma entrevista, que queria estar presente por inteiro na sua vida – ser contemporânea de si mesma na sua vida. Fany segue a filosofia. “Eu sou assim. A gente não pode negar a identidade. Não existe coisa impossível e todos os dias a gente aprende. Tem que ter a cabeça aberta para aprender, só não aprende aquele que é burro ou ignorante.”

Nascida na década de 1920, observou de olhos bem abertos as grandes tragédias e conquistas do último século. O Holocausto, em específico, deixou marcas em sua família, judia. Sua mãe nasceu em Varsóvia, na Polônia.
O pai, de mesma origem, era músico e chegou a servir no exército do Czar Nicolau na Primeira Guerra Mundial. Chegaram ao Brasil em 1923. “Meus pais empenharam os bens deles para ter dinheiro para pagar a viagem da irmã da minha mãe para Ponta Grossa antes do Holocausto”, conta, como se falasse sobre um evento de sexta-feira passada. Isso moldou sua criação, sempre econômica. O Holocausto matou uma irmã da mãe e os dois filhos. “O pai da minha mãe também se foi no campo de concentração. O pai do meu pai conseguiu [sair]. Meu pai mandava dinheiro para ele, me lembro disso.” Visitou, anos mais tarde, o local. “Terrível, terrível, terrível. O pior de tudo é o quadro da entrada, em alemão, que diz: ‘o trabalho faz a paz/saúde/liberdade.’”

Conexões pelo caminho

Se toda vida é habitada pelo extraordinário, como diz a jornalista Eliane Brum, a de Fany merece menção honrosa pelos seus “habitantes” espantosos. Nunca casou nem teve filhos, mas acumula na bagagem dezenas de pessoas e conexões pelas quais zela muito bem. Suas andanças começaram depois que saiu de Ponta Grossa para viver em São Paulo, para “fugir” de uma situação complicada. É claro, envolvia desencontros típicos das paixões joviais.

“Eu tive um apaixonadíssimo por mim, que me rogou uma praga porque eu já estava apaixonada por outro. Ele disse: ‘você há de estar sentada à beira da estrada da vida – ele era poeta – chupando o dedo e vendo os outros serem felizes”, recorda. Isso porque ela já estava apaixonada por um homem que conheceu em uma noite de Carnaval em um clube. Mas tinha um empecilho: ele não era judeu. “Ele não queria fugir, porque era muito tradicional. Eu sugeri: ‘você faz um ligeiro estudo da tradição judaica, se batiza, e depois a gente casa na minha religião e na sua.” Parecia uma boa proposta, mas a parte da circuncisão envolvida no batismo assustou o pretendente. “Então pensei: ‘vou embora para fugir disso’. Terminei meus estudos na faculdade, em 1954, e fui para São Paulo.”

“Sempre me vesti muito bem, mas eu não me achava bonita, não tinha confiança em mim mesma. Me tornei mais charmosa aqui, me valendo da velhice.”

Para alguém que foi atingida por tamanho agouro, Fany se livrou bem. Começou na capital paulista lecionando latim, francês e inglês. Alugava um quarto na casa da mãe da Yara Bernette, a grande pianista. Aí a vida tomou conta de apresentar os caminhos até então misteriosos. No aniversário de uma amiga, conheceu Beatriz e Raquel Segall, as duas noras do pintor, escultor e gravurista judeu Lasar Segall. Fany queria outro emprego e Eugenia Klabin Segall, esposa do artista, tinha uma vaga. O encontro marcou o começo de sua ligação com a arte.

No início, ajudava Dona Geni, que era tradutora, nos trabalhos em francês e em alemão. “Quando Segall [o marido] piorava [de saúde], eu ia para o ateliê dele para botar ordem na biblioteca, na correspondência, nos recortes de jornais e revistas do mundo inteiro. Conheci todos os críticos de arte.” Após a morte do pintor, embarcou em uma viagem para a Europa com Geni. Foram nove meses “viajando com chofer, nos melhores hotéis, maiores museus e restaurantes”, conta.

O QG da dupla era a Cidade Luz, mas passaram por várias cidades europeias. Foi a primeira viagem de Fany para o velho continente. Ao chegar a Veneza, nem conseguia acreditar no que estava vivendo. “Em Veneza, pegamos uma gôndola e eu me beliscava, pensando: ‘será que sou eu mesma?’” Depois, ainda se apaixonaria
por Nova York, “um lugar em que eu gostaria de morar”. Conheceria lugares como Israel, “onde quase me casei”, e a África, que “conheço muito bem, tenho uma coleção de peças africanas.”

Mas foi na Europa que conheceu grandes personalidades e artistas. “[O pianista e maestro russo] Ígor Stravinsky estava no mesmo hotel que eu, quando veio para um concerto.” Por lá, protagonizou outro encontro inusitado – com o pintor espanhol Salvador Dalí, desta vez em Madri, na Espanha. “Ele me dava piscadas toda vez que passava pela minha mesa [em um jantar]. Devo estar em uma fotografia com ele. Estava esperando o chofer na porta do hotel e ele se pôs na minha frente, aí, quando o fotógrafo passou, ele fez questão de tirar a foto comigo.” Conheceu, também, Mireille Darc, estrela do cinema francês.

Por aqui, sua experiência não fica atrás em termo de contatos. Fany era amiga de Pietro Maria Bardi, o fundador do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) – “até mais do que era amiga da Lina Bo [esposa de Pietro]. Ela era uma grande arquiteta.” Conheceu Clodovil quando ele ainda morava com a mãe em Higienópolis, antes de se tornar um dos maiores ícones da televisão brasileira. “Também conheci muitos presidentes, Washington Luiz, Getúlio Vargas, Dutra, Médici, os ditadores, o Figueiredo – mas nunca me vali deles”, faz questão de frisar.

“[Salvador Dalí] me dava piscadas toda vez que passava pela minha mesa [em um jantar].”

O trabalho com a família Segall durou dez anos, entre 1955 e 1965. Depois, Fany foi a responsável pela abertura das Galerias Eucatex pelo Brasil – uma delas em Curitiba. Nesse tempo, participando de muitos leilões, inaugurações de galerias e eventos culturais, descobriu dezenas de artistas – e começou a colecionar obras. Já se desfez de algumas, mas ainda mantém muitas em seu apartamento, no Água Verde, em Curitiba. A mudança para a capital paranaense foi no final de 2019, para ficar mais perto do sobrinho.

La mode à la Fany

A icônica editora-chefe da Vogue e Harper’s Bazaar nos anos 1960, Diana Vreeland, dizia que “só há uma vida boa, aquela que você sabe que quer e que constrói para si mesma”. Foi o que fez Fany, que nunca seguiu o caminho do meio, mas decidiu prontamente qual era a direção que tomaria – em muitos casos, diferente de grande parte de sua geração. “Ela [Fany] tem peças ousadas e tem [também] um tradicionalismo. Ela era
[uma mulher] à frente do seu tempo”, ressalta Dani Nogueira, historiadora da moda, colunista da TOPVIEW e curadora das peças da coleção usadas no editorial de moda desta edição. “Ela tem um convencional dentro dela. É o que faz ela ser tão interessante, porque ela tem um encontro com uma tradição que a gente não conheceu, mas quer trazer [para o hoje]. É muito bacana ver que uma mulher de 92 anos nos entrega uma continuidade de nós mesmas, o desejo de ser mais.”

Por mais que afirme não ter sido uma jovem confiante, seu estilo dizia o contrário. Era uma mulher independente, que escolheu estudar e trabalhar e participava, sozinha, dos círculos intelectuais e artísticos da época – e suas roupas também passavam essa mensagem. É possível, ainda, traçar outro paralelo com Vreeland: impulsionadas pelo conhecimento, com muita originalidade e um estilo marcante, ambas exploraram
novos espaços e lugares sem deixar um protocolo de gênero ditar o que fariam a seguir. “Eu nunca segui
uma moda, eu sempre criei a minha própria moda”, diz Fany, orgulhosa.

A relação com a moda, entretanto, não começou pelo amor. Aos nove anos, para um encontro com uma antiga professora, a mãe de Fany a vestiu com a saia do uniforme da escola polonesa e, como a blusa estava suja, escolheu um casaco de pijama. Dona Justina virou para ela e questionou se não tinha uma roupa melhor para vestir. Outra vez, em um feriado de Sete de Setembro, não pôde participar do desfile porque sua mãe a calçou com um sapatinho vermelho em vez de um tênis branco, que era exigido. “Isso me traumatizou. Foi aí que eu comecei”, relembra. A inspiração não veio da mãe, como em tantos casos. A progenitora era o contrário da filha, nada vaidosa.

A arte do cuidado 

Em tempos de minimalismo e Marie Kondo, talvez o acúmulo de quase um século de história assuma os ares de um galpão de quinquilharias. Mas, nesse caso, representa anos de experiências e, sobretudo, a arte da durabilidade e do cuidado. A sala, onde conversamos, conta muito sobre o universo da proprietária: as almofadas do sofá, por exemplo, foram um presente do casamentos dos pais, há mais de 100 anos. “Teve um
incêndio na fábrica de móveis do meu pai, por volta de 1963, que queimou várias coisas da mãe, incluindo o
vestido de noiva dela. Foi uma pena”, lamenta.

O contraste está nas obras feitas por Fany – sua “reciclarte”, como chama. “Faço arte com coisas que os outros jogam no lixo, com coisas que encontro na rua e em lixeiras”, explica. “A decoração aqui em casa tem coisas muito modernas e tem coisas antigas. Eu procuro combinar tudo.” Segue bem o que dizem os astros: uma capricorniana nata, muito organizada e respeitosa – “gosto do antigo e do supermoderno”, acrescenta. Reza a lenda que os capricornianos nascem envelhecidos e rejuvenescem com o tempo. Parece ser o caso aqui.

No início de sua nonagésima década, vive o auge de sua confiança – resultados de anos de autoconhecimento e convivência consigo mesma. “Me tornei mais charmosa aqui, me valendo da velhice. A minha religião é: Deus, respeito e diálogo/comunicação. É isso, mais nada. É a minha identidade.” O que permanece intacto é seu lema: “tenha os olhos abertos não só para ver, mas para enxergar.” Nota típica de uma observadora afiada,
que, todos os dias, ainda encontra muitas coisas novas para enxergar.

“Me tornei mais charmosa aqui, me valendo da velhice. A minha religião é: Deus, respeito e diálogo/ comunicação. É isso, mais nada. É a minha identidade”

Leia a segunda parte da matéria principal: As vidas em cada peça

*Matéria originalmente publicada na edição #243 da revista TOPVIEW.

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