FASHION

Os reflexos do nosso tempo

As máscaras cirúrgicas se tornaram acessórios indispensáveis em vários países e já há quem diga que elas são o símbolo do nosso tempo

Em outros tempos, talvez apenas um ou dois meses atrás, uma matéria sobre máscaras cirúrgicas soaria completamente fora de contexto nesta revista. Hoje, ao andar pelo Centro de Curitiba (só em caso de necessidade, vale lembrar) ou navegar pelo Twitter ou Instagram, é inevitável se deparar com elas, de cores e tamanhos diferentes. Isso porque, após a pandemia do novo coronavírus, que tem alta taxa de contágio, o mundo recebeu a indicação de usá-las para tentar frear a disseminação, quando for necessário sair do isolamento social. Elas viraram até filtro no Instagram – inclusive com versão fancy cheia de brilho e com ar fashionista.

A simbologia das máscaras, hoje, foi revisitada. Nada é o que é, por si só. O mesmo objeto pode ter uma representação diferente a cada época. A palavra “moda” deriva do latim “modus”, que significa “modo”, “maneira” e “comportamento”. Isso já diz muito sobre sua efemeridade e caráter mutável. É a junção entre o vestuário e o período vivido. As máscaras já representaram proteção de doenças e poluição, protesto, responsabilidade social, racismo – e, agora, a pandemia da Covid-19. “As máscaras faciais cirúrgicas são o símbolo dos nossos tempos”, defende a editora de moda do New York Times, Vanessa Friedman, em artigo para o jornal. Para ela, as máscaras são o maior símbolo do medo e confusão que a população mundial está sentindo nesse momento histórico.

Se antes, em suas origens no teatro e no Carnaval, a máscara era usada como uma forma de libertação, em que as pessoas podiam agir como quisessem por trás dela, hoje as pessoas vestem uma (a cirúrgica) que simboliza a perda de liberdade. “Antes [a máscara] era uma ajuda para criar uma nova identidade. Hoje também fala de identidade, mas mais no sentido de esconder. Quando a gente coloca uma máscara cirúrgica, a gente quer se esconder de alguma coisa até um pouco invisível – e dos outros, que são agente dessa doença”, analisa Gabriela Garcez Duarte, professora de moda, design e coolhunting e gestão de tendências na PUCPR.

Isso contrapõe, também, a hiperexposição que vivemos nessa fase em que tudo é documentado nas redes sociais. “Nossa sociedade moderna está vivendo uma situação bem única, porque estávamos começando a mostrar nossos rostos para o mundo no Facebook – que na tradução cita o rosto (face, em inglês) – e no Instagram. Os rostos desconhecidos se tornaram vetores de moda [nas redes sociais]. Parece até uma contraposição a tanta exposição”, percebe Gabriela.

A moda depois da crise

As consequências desse período ainda são incertas, mas especialistas apontam alguns possíveis caminhos. Para Gabriela, que também é mestre em Moda, Cultura e Arte, a moda sempre acompanha as mudanças em nível técnico e social. “Pelo lado técnico, a indústria vai ter impactos enormes, porque o ciclo da moda é bastante centralizado na China, então terá prejuízos financeiros e logísticos. E social, imagino que será um reforço da economia local, que é uma contraposição à economia chinesa e global. A economia local fortalece a nossa nação”, observa.

A professora da Universidade Positivo e doutoranda na área de moda, Manita Menezes, acredita que a crise vai impactar a moda mais pela questão comportamental do que estética. “Geralmente, depois de uma grande depressão, a moda volta mais exagerada. Depois do inverno vem o verão e as cores bem vivas, por exemplo. Mas acredito que desta vez não vai ser só isso. Acho que vai haver uma mudança no consumo, na forma de consumir”, defende. “[Essa mudança] já estava em curso, mas acredito que agora vai se intensificar. Nos últimos 15 anos começou um movimento contra fast fashion, mas de um jeito tímido. Agora a curva vai ser mais intensa.”

“Quando a gente coloca uma máscara cirúrgica, a gente quer se esconder de alguma coisa até um pouco invisível – e dos outros, que são agentes desta doença.”

Um movimento antigo

O fenômeno não é novo. Uma matéria de 2003 da agência de notícias Reuters conta como as máscaras antivírus eram o novo furor da moda em Hong Kong, capital da China. A “moda de rosto”, como chamaram o movimento, surgiu em vários formatos, cores e estampas ao mesmo tempo em que a população tentava se acalmar diante de um novo vírus recém-chegado à cidade. Tratava-se da Sars (Síndrome respiratória aguda grave), também causada por um coronavírus. Na época, o surto de Sars, de 2002–2003, atingiu mais de oito mil pessoas e registrou 774 mortes no mundo. Os chineses deram um toque fashion à obrigatoriedade do uso de máscara, estampando-as com personagens de desenhos animados e gibis, como Hello Kitty e Ultraman. Isso é uma das possíveis explicações para o uso comum das máscaras até hoje nos países da Ásia Oriental, como China, Japão e Coreia do Sul.

Especialistas relacionam o movimento, também, ao cuidado com a pele, já bem conhecido e seguido por muitas pessoas, mesmo no Ocidente. Com altos níveis de poluição nas metrópoles asiáticas, a máscara é uma maneira de se proteger.

Outra matéria de 2013 da Dazed Digital discute como as máscaras cirúrgicas se tornaram um fashion statement na Ásia, com foco base em etiqueta social, o que leva as pessoas a entenderem que, quando estão doentes, devem fazer a coisa certa, ou seja, usar máscara. Por outro lado, há quem não queira usar maquiagem e use-as como forma de esconder o rosto e, o mais surpreendente, para esconder as emoções.

Na cultura do país, a diferenciação do honne–tatemae é essencial: o contraste entre o que a pessoa está sentindo ou desejando de verdade (honne) e o comportamento e opiniões que deve expressar em público (tatemae). Com as máscaras, essas emoções podem ser escondidas.

A difusão das máscaras cirúrgicas ao redor do mundo remonta outra pandemia, a da gripe espanhola, em 1918, que matou cerca de 50 milhões de pessoas. Elas foram usadas oito anos antes por autoridades chinesas para impedir a propagação da peste pneumônica. As informações são do artigo “History of Surgical Face Masks: The myths, the masks, and the men and women behind them”, de John L. Spooner.

Reflexo nas marcas

A marca de moda Marine Serre trouxe símbolos que logo foram associados à Covid-19 em seu desfile na Paris Fashion Week no início deste ano, quando o vírus começava a alertar outros países além da China. Por mais que, nesse caso, tenha coincidido com esse momento do coronavírus, a estilista francesa já tinha desfilado máscaras faciais anteriormente. Na coleção outono/inverno do ano passado, colaborou com a marca francesa de filtros RPUR para criar máscaras antipoluição. Ela descreve seu trabalho como “future wear”.

Outros designers já deram um ar descolado a apetrechos de sobrevivência em suas criações. A coleção Qiaodan Yin Peng Sportswear desfilou máscaras antipoluição na passarela da China Fashion Week, em 2014. Em janeiro deste ano, a cantora-sensação Billie Eilish, chamou a atenção no tapete vermelho do Grammy, maior premiação da indústria fonográfica, ao vestir uma máscara transparente da Gucci. Na Nova Zelândia, a marca Meo colaborou com a designer Karen Walker para criar máscaras fashionistas, com belas estampas. Foi o que fez, também, a Aus Air, dando um ar minimalista ao acessório. A Airinum, empresa sueca especializada em máscaras faciais fundada em 2015, vende o que chama de “a próxima geração de acessórios para a saúde” – e dispõe de peças com colaboração de várias marcas de moda. As máscaras de uma das coleções, em parceria com a NEMEN, custam 99 dólares (aproximadamente 520 reais).

Em matéria no jornal inglês The Guardian, a chamada para as máscaras fashion do momento resume o movimento: “tentando fazer algo horrível parecer atraente“. Por aqui, percebemos aos poucos essa nova moda surgir – sem previsões para o término.  

*Matéria originalmente publicada na edição 235 da revista TOPVIEW.

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