Gender free: a moda é para todos
Moda sem gênero já não é nem mais novidade, é exigência. No entanto, o assunto é mais repercutido em eventos internacionais que movimentam o mundo da moda, como a cerimônia de premiação do Oscar e o MET Gala. A definição de “roupa de menino” e “roupa de menina” já caiu por terra e é até vergonhoso pensar que uma roupa sirva para vestir apenas um determinado gênero.
Apesar das calorosas discussões que envolvem o assunto e movimentaram o setor, trazendo mudanças reais para a indústria da moda, algumas marcas ainda mantêm seus produtos separados em feminino e masculino. Mulheres à direita e homens à esquerda, inclusive — seguindo o padrão ao entrar nas lojas. Contudo, nem sempre a moda teve um papel tão importante para a distinção de gênero. Era comum, durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, que as vestimentas de homens e mulheres fossem muito semelhantes. Na época, as pessoas costumavam usar túnicas ou togas, roupas sem muita modelagem e cores.
No entanto, mesmo durante o período medieval, havia algumas características que definiam essa distinção: homens podiam usar as túnicas em comprimentos diversos e, mulheres, sempre mais longos. Essa diferença ficou gritante durante a Revolução Industrial, que passou a incluir trajes completos e prontos. Essa prática, antes, já existia para acessórios, no entanto, para a vestimenta, era novidade. No que se refere à moda, assim como em diversos outros segmentos, a Revolução Industrial foi crucial. A partir desse acontecimento, a produção de roupas ficou mais acelerada e, em 1970, o fast fashion se tornou um fenômeno que perdura até os dias atuais.
A moda contemporânea é um sistema. Para grandes indústrias, a produção se baseia na demanda. Por isso, as roupas mais procuradas pelo público
são produzidas em larga escala e com qualidade inferior. Isso faz com que seja reforçado um padrão, sem tamanhos ou gêneros diferentes. Em oposição a esses padrões, algumas marcas e designers surgem no mercado em um nicho pouco explorado até então. Pierry Almeida, estilista e artista plástico, vem para quebrar esse e muitos outros padrões. Com um trabalho direcionado para upcycling e controle de resíduos têxteis, a roupa de Pierry se destaca pela arte, sustentabilidade e expressão do próprio ser.
Criado na favela da Nogueira, em Sulacap, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Jean Pierry Almeida de Sá virou mecânico de navio por pressão da família, mesmo apresentando a paixão pela moda desde muito cedo. “Acho que começou quando eu tinha onze anos, quando eu costurava e fazia roupas de bonecas para a minha irmã. No entanto, eu não podia contar para ninguém”, conta o estilista.
Pierry foi para uma área com a qual não se identificava. Porém, começou a fazer aulas de dança e, ali, encontrou sua voz e descobriu o poder que a arte tinha em sua vida. Há sete anos, o estilista criou a Pierry Almeida e, com isso, concebeu o bordão que leva para seu trabalho e para a vida: “repensar é revolucionar.”
“Quero que cada pessoa repense todas as suas atitudes e processos ou os padrões colocados pela sociedade. O que é masculino ou feminino? Por que tenho que continuar reproduzindo tudo o que a sociedade impõe? Não podemos continuar seguindo em frente sem entender todos os pontos tóxicos
que carregamos por conta da criação que tivemos”, afirma Pierry.
Dito isso, o estilista produz roupas sem gênero com resíduos têxteis e muita intervenção artística. “A roupa não define o que você é, o que você gosta nem o que faz. Por isso, gosto de apresentar algo novo, cutucando cada vez mais. A moda vai muito além de vestir: eu posso ter uma opção sexual e me vestir de uma forma totalmente diferente”, reforça o artista.
Moda sem gênero precisa ser sem graça?
Não, não e não! A moda sem gênero passa bem longe de ser sem graça – e o criador de conteúdo Lucas Santos, do Rio de Janeiro, é a prova disso. Ele começou a falar em suas redes sociais sobre o assunto há, mais ou menos, três anos. No entanto, ele conta que a moda sem gênero sempre esteve presente em sua vida.
“Até por conta da minha sexualidade, eu sempre usei a moda como defesa, é minha forma de expressão”, afirma Lucas. Ao se vestir, o produtor de conteúdo não tem nada de básico e, justamente por isso, opina sobre as marcas que se propõem a fazer moda sem gênero, mas que entregam um produto neutro. “De uma maneira, essa moda neutra veio para dizer que a moda sem gênero não tem corte, o que não é verdade”, afirma.
Um estilista que mergulha — e muito bem — nesse conceito é o João Pimenta. Fugindo da moda sem gênero neutra, o estilista mudou a silhueta masculina no seu último desfile, na São Paulo Fashion Week de 2021, quando usou flores, materiais como renda e muitas curvas em suas peças. Para trazer essa dualidade, João ainda usou muita alfaiataria em suas criações, como blazers, fazendo uma brincadeira entre o que é “roupa de homem ou de mulher”.
Esse caminho de marcas e designers brasileiros revela a consolidação de uma moda sem gênero, livre e conceitual — perfeita para uma sociedade que não deve se prender a rótulos.
*Matéria originalmente publicada na edição #262 da revista TOPVIEW.