Dress code: identidade
Na década de 1960, o Rio de Janeiro foi quase que exclusivamente a única cidade divulgada pela Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (EMBRATUR). O cartão postal mais conhecido do país, o Cristo Redentor, está presente na maioria dos materiais promocionais da época, o que concretizou a imagem transmitida que exaltava as raízes europeias.
Mas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é negra. E essa cultura foi, em muitos momentos da história brasileira, alvo de tentativas de apagamento. Em 2021, a verdadeira identidade nacional foi mostrada no país, e também no mundo, na 51ª edição da São Paulo Fashion Week (SPFW) – maior evento de moda do Brasil, mais importante da América Latina e quinta maior Semana de Moda do mundo –, que aconteceu em junho.
Neste ano, o Projeto Sankofa, criado pelo movimento Pretos na Moda e pela startup de inovação social Vetro Afro Indígena na Moda (Vamo), selecionou oito designers para desfilarem suas criações no evento. Das 43 apresentações virtuais, 34% foram de grifes chefiadas por pessoas não brancas, trazendo um ponto de vista mais próximo da diversidade brasileira.
A modelo Natasha Soares, que está à frente do Sankofa junto do estilista Rafa Silvério, acredita que, para os profissionais do projeto, quebrar construções sociais é uma intenção muito nítida. Para ela, independentemente de falar sobre moda ou não, no fim das contas, fala-se sobre reconstrução social e reparação histórica.
“É uma necessidade ver pessoas pretas em todos os ambientes, permeando todos os possíveis núcleos de arte. O Brasil foi restringido de entender sobre a cultura e a religião africanas. Então, a partir do momento em que você vê isso em um ambiente novo, você instiga sua curiosidade a saber e entender mais do que foi ensinado”, argumenta Natasha.
Meninos Rei, marca fundada pelos irmãos Céu e Júnior Rocha, de Salvador, participou da SPFW apresentando a coleção L’ojù Esù – Aos olhos de Exu. “O significado de Exu está presente não só no evento, como em nossas vidas. Eu e meu irmão somos do candomblé, então, falar de Exu é falar de caminho, de transformação, de movimento, de respeito”, afirma Júnior sobre a presença do orixá da comunicação na quinta maior Semana de Moda do mundo.
Céu Rocha, por sua vez, afirma que, a partir do momento em que esses corpos, que até então não tinham acesso a espaços como a SPFW, passam a se identificar, se veem representados nesses locais. Para ele, essa intervenção começa de fato a afetar a percepção das pessoas. “O mercado começa a olhar para elas como indivíduos capazes de produzir moda, economia. A moda enquanto movimento expressa a identidade do indivíduo de acordo com o que acontece na nossa sociedade”, complementa o estilista.
Outra marca estreante na SPFW foi a carioca AZ Marias, dirigida pela estilista Cintia Felix, que se inspirou em Nzinga Mbandi, guerreira e rainha que lutou contra a escravização de seu povo, o antigo Reino de Matamba, pelos portugueses. “Não tínhamos a percepção da identidade brasileira de forma plural. Não tínhamos esses agentes da construção do Brasil como protagonistas, que foram os indígenas, oriundos do nosso território, e os africanos escravizados, que foram arrancados do seu continente e trazidos para cá para desenvolverem o país com suas contribuições”, conta a diretora criativa da AZ Marias.
Cintia ainda afirma que é preciso que se crie uma nova percepção de identidade brasileira para as gerações futuras, que contemple mais corpos e, principalmente, outras formas de ver o Brasil. “O país não é só sobre os europeus que nos colonizaram. O Brasil tem uma constituição social muito diversa. O recorde de participação de pessoas negras e indígenas na SPFW muda a nossa percepção de que povos nós somos. De que Brasil estamos falando. Consequentemente, isso muda como o mercado internacional de investimento nos enxerga e, aí, falamos de um mercado que vai perceber as nuances da identidade brasileira de uma outra forma”, complementa a empreendedora.
Moda sem gênero
Todo ser humano desenvolve uma identidade. Ela, por sua vez, se manifesta tanto do ponto de vista comportamental quanto de significados que cada um adota para se comunicar com as outras pessoas. Dessa forma, então, o indivíduo mostra quem é. A moda, por sua vez, é um elemento fundamental para o estabelecimento dessa identidade – a escolha de sapato, de calça, de saia, de blusa. Virginia Borges Kistmann, professora do Programa de Pós-Graduação de Design da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coautora do artigo A percepção da moda sem gênero na visão do público, afirma que as peças são escolhidas por existir algum elemento e significado que fazem com que quem vista se identifique.
“As categorias de gênero são muito variadas. Então, há uma série de produtores de moda que, diante desse cenário, preferem adotar como valor uma moda que não esteja ligada ao estereótipo de um gênero único. São elaboradas vestimentas sem gênero, ou seja, que não reproduzem o estereótipo de um gênero existente”, explica a professora, que acrescenta que, por outro lado, é um mecanismo também de consumo, afinal, ao fazer moda sem gênero, a empresa consegue de alguma maneira uma escala de produção maior, barateando o custo da produção.
“Então, produzir uma moda que qualquer um pode vestir tem a sua vantagem comercialmente. Afinal, eu posso fazer em uma quantidade muito grande e, quem quiser comprar e achar que está adequada para a sua identidade, usa”, complementa Virginia, que ainda elucida: “A moda sem gênero é uma tentativa de abrigar os múltiplos gêneros que, hoje, não se encontram atendidos pelos fabricantes, que executam a moda tradicional”.
A modelo e influenciadora digital Riara Nogueira encara a moda genderless não como algo novo, mas que, hoje em dia, está envolta por uma desconstrução. “Ter esse espaço dentro da moda traz como base, para mim, realmente a liberdade. Trazendo a liberdade como base, as diferenças de gênero na moda, que existiam e ainda existem, são desconstruídas”, argumenta Riara.
A moda, inclusive, possui condições de criar valores como, por exemplo, o conceito do que é ser mulher. “A mulher não necessariamente usa apenas saia. Temos as calças, não é? Então, a moda pode também contribuir para mudanças de comportamento. A revolução dos sutiãs, por exemplo, aboliu essa peça como uma forma de marcar a identidade feminina com valores próprios. Não usar sutiã passou a ser uma moda que estava ligada ao comportamento social que teve adeptos desse mesmo comportamento”, reitera Virginia Borges Kistmann.
Hoje, a moda sem gênero, dentro do setor como um todo, vem quebrando padrões, uma vez que o objetivo principal é criar e pensar em peças para corpos reais, sem ter previamente um corpo específico utilizando. “Isso já é um grande passo para a moda convencional, que seguia uma linha onde faziam-se as peças destinadas especificamente para o homem ou para a mulher. A moda genderless quebra essa etapa fazendo peças para uma pessoa, para um corpo”, conclui a modelo Riara Nogueira.
Sem restrições
Apesar da crise econômica causada pela pandemia de covid-19, o mercado de moda plus size avançou 10% em 2020 em relação ao ano anterior. O relatório setorial da Associação Brasil Plus Size (ABPS) revelou que esse segmento de vestuário avançou 21% nos últimos três anos e deve manter o ritmo de crescimento. De acordo com Lilian Lemos, consultora de imagem especialista em vestir mulheres plus size, a área realmente cresceu significativamente nos últimos cinco anos, apesar de existir há mais de 20.
“Antes disso, a moda plus size confeccionava roupas mais fechadas, cobrindo o corpo, ao invés de mostrar os potenciais tanto físicos quanto de expressão corporal. Hoje, encontramos todos os tipos de peças que, comercialmente, começam no número 46”, explica a especialista, frisando que, hoje, há uma variedade enorme de “moda boa”, segundo ela, com alfaiataria, jeans, beach wear, tricô, lingerie – tudo aquilo que há muita oferta no tamanho regular, hoje também conta com peças no tamanho plus size, até o número 58.
Lilian, em seu trabalho, busca sempre mostrar essa variedade de produtos que, no fim das contas, contribuem para um sentimento de representatividade. De acordo com a especialista, a mulher gorda sempre foi muito contida. Em muitas situações, não conseguia se apresentar ou representar a própria imagem, os próprios objetivos e próprios desejos, afinal, normalmente havia restrições do que se vestir. “Crescemos em um padrão muito rígido de um alcance estratosférico e a maioria da mulher brasileira não consegue ter os corpos vistos em revistas. Hoje, o problema é que as mulheres ainda precisam encontrar o gatilho para se livrar das amarras e poder se expressar cada vez melhor”, complementa a consultora de imagem.
“É tão grande a influência da moda na questão de conseguir se identificar tanto fisicamente quanto intelectualmente. A moda é expressão de quem você é, de suas escolhas. Quando você abre um armário e escolhe uma blusa rosa com uma calça vermelha, você quer transmitir uma mensagem que é muito importante e só a moda pode te ajudar nisso”, acredita Lilian.
Para ela, quanto mais opções o indivíduo tiver para fazer suas escolhas e quanto mais representatividade a moda destacar, mais possível é o sentimento de identificação com aquilo que possui no fundo do coração. “Existe uma liberação das mulheres com elas próprias. No momento em que ela consegue perceber que existe roupa para o tamanho dela, que consegue encontrar nas confecções um tipo de moda que representa seu gosto, a mulher consegue se comunicar muito melhor, consegue trazer a questão da autoestima muito mais forte, consegue se sentir apta a executar as tarefas do dia a dia porque está vestida de acordo com o que ela deseja e com o que quer representar para a sociedade”, salienta Lilian.
A Eurico, tradicional loja paulistana especializada em sapatos de numerações grandes – femininos do 40 ao 43 e masculinos do 45 ao 48 –, inclusive, lançou a sua primeira collab: uma coleção de peças exclusivas desenvolvidas em parceria com a modelo, empresária e influenciadora body positive Rita Carreira.
As conquistas da modelo, tanto no meio profissional quanto pessoal, são fonte de inspiração para muitas mulheres. “O fato de eu calçar 43 sempre me tirou dos lugares, eu já perdi vários trabalhos por isso. Então, hoje assinar uma coleção de sapatos que tem a minha cara e a minha identidade, que certamente irão calçar tantos pés de pessoas incríveis, é algo que me deixa muito feliz”, conclui Rita Carreira.