As vidas em cada peça
A coleção conta a história de Fany, uma mulher independente que traçou um interessante caminho na arte e na moda, mas, acima disso, mostra fases, estilos, movimentos e marcos ocorridos no mundo nos últimos séculos. Aqui, convidamos Dani Nogueira, historiadora da moda e curadora das peças fotografadas no editorial, para analisar e contextualizar alguns destaques do acervo.
VEJA AS FOTOS DO EDITORIAL: A releitura do luxo
Kaftan – 1960/1970 (foto de capa desta edição)
O kaftan lembra a indumentária oriental, em especial a bizantina. “Bizâncio, na divisão do império romano, ficava onde, mais tarde, seria a Constantinopla; estava, portanto, muito perto do oriente e, por isso, sofreu essa
influência na indumentária. Então, é comum ver manga martelo – e essa peça, que é muito mais um manto do que uma roupa definida.” A peça tem códigos do oriente e da espiritualidade, depois passa pelo modernismo e pela Op Art. “Outra coisa icônica é ser da Marimekko, uma fábrica de roupas finlandesa dos anos 1950.”
Camisola – 1940 | Casaco – 1980 (página 39)
Essas peças têm forte influência do orientalismo. Um ponto interessante é que, por serem maleáveis e soltas, permitiam que a mulher se movimentasse. “[O casaco] tenta dar aquela quebrada para uma linha de blazers e paletós, à la Armani, nos anos 1980, que foi tirada do guarda-roupa masculino e colocado na mulher.” O linho aliado à cor cáqui passa a sensação de leveza, um contraponto ao cinza urbano que os blazer e casacos dos anos 1980 têm – o que o torna tão atual. “Hoje, estamos conectados a esse look: tem o eu, tem a quarentena, tem a lingerie, tem o ‘deleite-se’ e o prazer próprio, o ‘estar à vontade’ – e tem esse casaco, que está tão ligado às questões que passamos. O que vai ser o bem vestido na pandemia? É conseguir encaixar aquilo que você pensa e sente dentro de uma roupa.”
O casaco conecta-se, ainda, às reflexões das mulheres ao ingressar no mercado de trabalho. “Quando falamos da força da mulher Fany, não falamos de uma mulher endurecida. Quando você olha para a Fany, encontra toda uma força, como uma silhueta maior, aquilo que abriga, mas com essa delicadeza por dentro, essa energia yin, essa vaidade. É até uma parte importante para ela dentro do mercado de trabalho – era um ambiente muito difícil para uma mulher, especialmente solteira e ligada ao mundo da arte.”
A camisola, parte da coleção de lingeries, é de seda. “É trazer a textura para perto do corpo, um deleite de trazer o têxtil para perto de você, dando-se o melhor, independentemente se alguém está vendo ou não. Isso demonstra cuidado e a busca de uma beleza pessoal naquilo que entregamos para nós mesmas.” A partir da combinação de uma roupa “de fora”, o casaco, com uma roupa “de dentro”, a camisola, é possível, ainda, traçar um diálogo com as percepções sentidas durante o período da pandemia. “Uma conclusão a que se chega é que, depois de um processo autoconsciente, entender a frivolidade e o prazer como coisas possíveis para essa vida faz parte de nós e temos que acatar. Claro, servindo o outro, mas também servindo a nós mesmas – aquela história de ‘coloque a sua máscara primeiro’.”
Anágua – final do século XIX | Vestido de shantung selvagem – 1960 | Blusa – 1950 (página 37)
“A anágua tem toda uma ligação dentro do mundo feminino, uma relação com a mulher dentro da moda. Começa como uma peça principal, muitas vezes de seda, bordada com fios de ouro, incrustada com pedras e pérolas. Depois, ao adentrar as camadas que não têm acesso ao investimento em roupas, vai se tornando cada vez mais simples – em vários casos, apenas um pedaço de linho. As mulheres das aldeias e que trabalhavam nos burgos acabavam usando só a anágua e, para conservá-la, um avental por cima. A busca pelo branco, a partir da Idade Média, começa a ter uma ligação com a ideia do corpo limpo.
“Quando você olha para a Fany, encontra toda uma força, como uma silhueta maior, aquilo que abriga, mas com essa delicadeza por dentro, essa energia yin, essa vaidade.”
“Então, no século XIX, ela passa a ser uma coisa [de usar] por baixo. Já não é uma das peças principais. Por mais que, no Renascimento ‘vertugado’, um vestido vá por cima da anágua, ao analisar as camadas, vai ver ainda uma saia de seda, com muito tecido, até 30 metros de tecido.” Por conta, também, da Revolução Industrial, da diferença de classes mais acentuada e da necessidade de roupas cotidianas, a anágua ganha outro status, o de estar por baixo. “Já no século XX, a mulher era muito criticada se mostrasse sua anágua. Nos anos 1960, há um pensamento de contracultura, que rompe com esses códigos. As mulheres deixam a anágua aparecer e ainda usam a meia-calça, que já não é da cor da pele, e a meia soquete, a redução da meia calça.”
O vestido de shantung selvagem, por cima da anágua, ganha esse nome “porque é como se, entre os bichinhos da seda, [os designers da época] escolhessem os mais selvagens – e acaba que o componente da seda ganha um aspecto mais pesado do que a própria seda.” O grafismo, em preto e branco, é muito visto nos anos 1950 – e perdura até a década seguinte, com relação à Op Art. “Esse P&B é como se fosse a negação do excesso de cores, uma volta à padronização. Até relembra os anos 1920 e o modernismo, quando um objeto, para ser bem resolvido, segue a forma e a função – e, geralmente, concebe-se em pouquíssimas cores.”
O grafismo domina a época, com a ideia de que é moderno por ser bem resolvido, sem tantos detalhes que remetam a outros períodos. “Não só na moda, mas também no design e na arte. É um pensamento quase reducionista: para avançar nesse começo da segunda metade do século XX, é preciso ir resolvendo as coisas e fazer o mundo rodar mais veloz.”
A blusa, dos anos 1950, pode ser enquadrada, também, no modernismo das formas, além de conversar com os ideais de futuro, da ficção científica e até da arquitetura, que traça os contornos dessa modernidade por vir. “Falando dos anos 1950 como uma época de impulso do consumo, é natural que mais e mais pessoas tenham acesso à essa estética, extremamente modernista, que me lembra [o fotógrafo] Richard Avedon e [o designer gráfico] Alexey Brodovitch.”
Pelerine – final do século XIX | Luvas – 1940 (página32)
A pelerine, do final do século XIX, impressiona por ser um trabalho muito artesanal. A peça é feita com soutache de seda. “Estamos falando dessa manualidade, desse tempo lento. Peça emblemática e forte, por mais que, lá na Belle Époque, as mulheres não repetissem roupa, porque era uma humilhação, precisamos entender que, hoje, no momento em que possuo códigos fortes para explicar quem eu sou, eu preciso repetir, porque assim eu reforço minha identidade.” As luvas, parte importante da coleção, mostram a conexão com a tradição e a imagem de civilidade.
Quimono chinês – 1930 (página 35)
Para Dani, a volta do quimono está relacionada às mudanças comportamentais das últimas décadas. “Há 10 anos, desde que começamos nessa turbulência que já vinha da queda das Torres Gêmeas, vemos que existe um problema. Desde 2008, temos o fast fashion, que nos acelera, nos compele a ir mais rápido. Aí temos um movimento de oposição. Isso vem influenciando nossas decisões. Uma das peças pesquisadas na internet foi o quimono. Hoje, ele é uma peça imprescindível.” Por mais que tivesse saído das tendências, a peça retornou com força durante a pandemia. “[Com a prática mais frequente do home office], o kimono volta forte porque traz junto o ritual, a espiritualidade. Uma conexão grande com o nosso sentimento hoje.”
Kimono japonês – 1930 (página 38)
O quimono japonês, com obi e bordado com fios de ouro, tem uma conexão ainda maior com a ideia de ritual. “Tem uma relação com o eixo da coluna, para quem estava largado no sofá durante esse tempo, e o eixo de vida, de abandonar a procrastinação e dar um rumo à vida. As flores estão sobre o preto como uma tradução do yin-yang que existe dentro de cada mulher. O preto, que representa a força, unido ao rosa dos bordados, da delicadeza.”
“Com os avanços da tecnologia dentro da indústria têxtil e do pós-Segunda Guerra Mundial e com o desenvolvimento cada vez maior dos sintéticos e da lycra, chega-se a um material muito possível para todos (…)”
Conjunto de folclore húngaro – 1970 | Vestido de malha – 1970 | Lenço Mary Quant – 1960 (página 34)
Nos anos 1970, uma questão presente para algumas mulheres era em relação ao que vestir para entrar no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, em casa, elas precisavam interpretar – e vestir – outra personagem, que era mãe e esposa. “Com os avanços da tecnologia dentro da indústria têxtil e do pós-Segunda Guerra Mundial e com o desenvolvimento cada vez maior dos sintéticos e da lycra, chega-se a um material muito possível para todos, em termo de preços, por isso, a moda se alastra nos anos 1970. As casas de tecido passam a vender por quilo.” Nessa época, foi comum aos criadores lançarem lenços, especialmente por ser uma parte da marca mais acessível. “Tem relação com a Op Art e movimentos artísticos mais pontuais – como a arte psicodélica, por exemplo. A saia godê lembra a silhueta da Dior, mas é superleve.”
Blusa com babados – 1970 | Chapéu – 1970 | Bolsa – 1970 | Saia – 1970 (página 36)
“O ser humano nunca vai para um lado só. Ele também se conecta às cores. Estas peças hoje nos fazem felizes, porque tem o roxo, o verde e o laranja – cores complementares”, diz Dani sobre a saia e o chapéu. Já na
blusa, os babados são costurados um a um. “Quando a mulher quer crescer e aparecer, vai ter a manga presunto, que é a manga gigot, do século XIX, do Romantismo. Mas, lá, ela se afunda na manga, o pescoço fica pequeno. Só que, nos anos 1970, ela se recupera: o pescoço se ergue com um chapéu ‘cheguei’. É mais sedutora, mostrando mais o colo e um volume nos ombros.” A saia é inspirada no trabalho do designer de moda italiano Emilio Pucci. “Lembra, também, Zuzu Angel, com todo aquele festival de cores e brasilidade. Ela já traz uma psicodelia.”
Vestido envelope – 1930 (página 40)
O vestido, dos anos 1930, é composto por duas peças separadas, que formam um envelope. “Era muito difícil para a mulher utilizar [essa peça], porque a roupa poderia cair e isso seria um escândalo na sociedade. Por isso, a modelagem envelope só é trazida para o mercado nos anos 1970, pela [estilista] Diane von Fürstenberg. É a mulher Gucci dos anos 1970. Essa peça específica, dos anos 1930, é de ousadia e atitude.” Nos ombros, os pássaros são bordados à mão e com brilho. “Mesmo depois da Depressão de 1929, os anos 1930 não se conformaram em perder o brilho, o glamour e o ouro. Mas [ainda assim] têm muita presença do luto e de um clima tenso no ar, por conta dos suicídios da Depressão e por ser um período entre guerras.”
*Matéria originalmente publicada na edição #243 da revista TOPVIEW.