Uma Lolô restaurada
Impossível passar pela Rua Dr. Faivre, no centro de Curitiba, e não levantar os olhos para o número 621. No alto de um aclive, a fachada vermelha e branca se destaca, com janelas em fita e pilotis corbusianos pretos – a planta livre suspensa por pilares, tão característica da arquitetura modernista. A imponente casa, projetada por Ayrton Lolô Cornelsen para os amigos Medoro e Nine Belotti, tornou-se referência para a arquitetura moderna da cidade e do país – na conservadora Curitiba de 1953. Nos últimos anos, porém, o cenário era bem diferente.
Abandonada por quase nove anos pelos antigos moradores, a casa de 448 metros quadrados – que se mantém em meio a comércios, agências bancárias, escritórios e prédios (muitos prédios!) – estava abrigando moradores de rua e pessoas em situação de risco social. “Já cheguei a encontrar 24 pessoas vivendo na casa”, conta Hugo Umberto, designer de interiores, amigo pessoal de Lolô e corresponsável pelo projeto da reforma da casa. Segundo ele, os antigos donos não se interessavam pelo imóvel, por isso, deixaram-no à mercê do tempo.
Em 2012, no entanto, um casal de investidores paranaenses – que prefere não se identificar – decidiu comprar a casa da Dr. Faivre e transformá-la em um espaço comercial. Além de Hugo, eles contaram com os trabalhos da arquiteta, urbanista e engenheira civil Gabriele Websky Meier, que assina o projeto de restauro. Em quase 12 meses de obras, eles resgataram as formas e características originais, descartando todas as modificações feitas pelas três famílias que passaram pela casa ao longo das seis décadas.
Nas casas de Lolô, um detalhe sempre chama a atenção: o respeito com o qual ele trabalha, tanto pelas limitações do ambiente a ser construído quanto pela personalidade dos moradores. Como ele mesmo lembra, “aquela lá em cima” (referindo-se à casa da Dr. Faivre) tinha um terreno elevado e estreito em um dos lados. “Não podia fazer uma casa comprida, então decidi estender lateralmente”, explica. Os armários e janelas foram pensados de acordo com a estatura média dos moradores. Mais um cuidado especial de quem prezava pelo conforto e funcionalidade.
Ao planejar a casa dos Belotti, Lolô trouxe a Curitiba um tipo de arquitetura que era tendência no Rio de Janeiro daquele tempo, com ambientes limpos e funcionais, texturas e elementos diferentes, mas simples e leves. O arquiteto Le Corbusier foi uma de suas inspirações. Há boatos de que, do fascínio do francês pelas cores primárias, o curitibano tirou o tripé preto, branco e vermelho que pauta a casa. Lolô, porém, garante que foi para provocar o amigo Belotti. “É por causa do Atlético, né. Ele era Coxa e ficou p*”, diverte-se.
Na época, Lolô não cobrou nada pelo projeto. “Se eu ligasse pra dinheiro, estaria milionário”, diz. Mas ficou extremamente decepcionado, anos mais tarde, quando soube que Medoro Belotti havia vendido o imóvel. “Dou um presente, o cara vai lá e vende?”. Depois disso, segundo ele, nunca mais teve contato com o amigo.
O que mudou?
Enquanto a casa estava fechada, Lolô esteve por lá pelo menos oito vezes. Ao contrário dos antigos moradores, Gabriele e Hugo abusaram dos conselhos dele durante a reforma. “Um dia fui buscá-lo em cima do telhado”, conta Hugo. Aos 92 anos, o arquiteto assistiu muitas de suas obras serem derrubadas para darem lugar a prédios monumentais. “Eles demoliram sem me consultar”, lamenta.
Sobrevivente, a casa da Dr. Faivre é agora uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP) da cidade, mais flexível do que o tombamento, mas que preserva as características originais. Cético, Lolô acredita que “no fim, só essa vai ficar em pé”.
Os segundos moradores, conforme explica Gabriele, não gostavam da distribuição da casa, por isso, criaram uma espécie de “puxadinho” atrás do imóvel, um cômodo a mais que foi derrubado durante a restauração. Na reforma, além do “puxadinho”, eles derrubaram tudo o que não era original, como o carpete que havia sido colado sobre o piso em alguns cômodos. O piso de taco da sala principal, infelizmente, não foi possível recuperar. “É difícil fazer um trabalho perfeito, pois não encontramos hoje os mesmos materiais da época. A solução foi substituí-los por materiais visualmente mais próximos do original”, explica a arquiteta.
As portas ganharam os tons originais brancos, os armários dos três quartos – que haviam sido pintados de verde e branco – foram lixados e envernizados, revelando a madeira original. O painel de cobogós (elementos vazados que proporcionam maior ventilação e luminosidade no ambiente) foi inutilizado e precisou ser completamente refeito.
Entre outros detalhes, foram mantidos o piso de petit-pavé na varanda, o piso em taco de madeira no andar superior, os azulejos dos banheiros, as esquadrias das janelas, a laje dupla e o teto. Algumas modificações, no entanto, se tornaram necessárias, como a instalação de novos pontos de luz. “Quando a casa foi projetada não era comum ter tantos equipamentos eletrônicos… Esse foi um desafio, prepará-la para uma nova realidade”, destaca a arquiteta.
Além dos novos interruptores e pontos de luz, foi feito um acréscimo em vidro ao parapeito original, por questões de segurança. Na escada de mármore que dá acesso ao segundo piso, corrimões foram instalados, mas manteve-se a parede original preta e a champanheira no braço da escada. Como o atual dono quis transformar a residência em um imóvel comercial, a cozinha, no primeiro andar, foi descartada e virou um banheiro. Os móveis da cozinha, porém, foram reaproveitados em forma de armários nos corredores do piso superior.
Um novo fim
Após a restauração, a casa foi aberta ao público para visitação durante um mês. Segundo Hugo, em 15 dias cerca de 10 mil pessoas passaram pelo imóvel. Um destes visitantes, em especial, ficou admirado com o que viu. “Cada projeto tem uma assinatura e essa assinatura tem que ser respeitada. Eles fizeram uma boa limpeza, mas conservaram minha assinatura”, garante Lolô.
Uma vez restaurado, a dúvida era: qual utilidade dar ao imóvel? “Nós queríamos a casa aberta, disponível para o público. Cada vez que surgia alguma proposta de locação que não tivesse esse perfil, a gente congelava”, explica Hugo. Políticos, escolas de idiomas e até bancos se interessaram pelo imóvel, mas foi o designer quem conseguiu a locação do espaço.
Ele sugeriu transformar a casa em um grande espaço cultural, integrando arquitetura, design, gastronomia e artes plásticas, e a proposta foi bem aceita pelos atuais donos. Inaugurada este mês, a Carmesim Espaço de Arte e Design reúne trabalhos de artistas como Michelle Behar, Elizabeth Titton, Cris Maravalhas, Zelle Bittencourt, Claudia de Lara, Sandra Hiromoto, Danilo Oli, Helena Valenza e Washington Takeuchi. Administrador do espaço, Hugo planeja organizar exposições e outros eventos regulares na casa. “Queremos ela aberta ao público, viva. Se depender de mim, ela nunca vai ser derrubada”, conclui.