Um novo olhar para a arquitetura
Sigo na frente do meu computador. Entre textos, fotos e vídeos, tiro meus fones de ouvido, fecho os olhos e ergo meus braços para me espreguiçar. Ao abrir os olhos, vejo uma manchinha no gesso e então me viro para a direita e olho pela janela, que fica bem ao lado da minha mesa. Lá estão eles: meus vizinhos. Eles, que, na correria da rotina, eram invisíveis para mim, mas agora fazem parte de momentos específicos do meu dia. Às vezes, sinto-me vivendo em cenas do filme Janela Indiscreta, do Hitchcock, pois passei a enxergar não só o que a pandemia mudou no meu modo de viver como também o que mudou no modo de viver desses estranhos conhecidos.
No prédio da frente, uma senhora rega as plantas às 8h30 da manhã. Já às 11h, é o momento de banho de sol de um senhor que se instala em sua sacada e aproveita o momento para escutar óperas italianas. Uma adolescente, no mesmo horário, só que em um andar acima, senta em um balcão com suas pernas cruzadas e devora mais um livro. No primeiro andar do prédio, o fim da tarde é sagrado para se exercitar: dentro do quarto e na frente da TV, a bicicleta ergométrica trabalha a todo vapor. Sagrado também são os cortes de cabelo do senhor do quinto andar e a taça de vinho da mulher do terceiro. E assim os dias passam. Todos aprendendo a lidar com um novo morar.
As crises fazem com que nossos conceitos mudem e a ressignificação começa a fazer parte do nosso dia a dia. Este foi o ano em que paramos e olhamos de fato para a arquitetura – e não estou falando sobre estética, mas, sim, sobre as suas verdadeiras funcionalidades. A história nos mostra que isso já aconteceu em vários momentos, como, por exemplo, em 1933, quando o arquiteto e designer Hugo Alvar Henrik Aalto e sua esposa, Aino, concluíram o Sanatório Paimio, uma instalação para o tratamento de tuberculose na Finlândia. O edifício rigidamente geométrico, com janelas envolvendo sua fachada, quartos de cores claras e um amplo terraço, tem todas as marcas do que hoje conhecemos como arquitetura modernista.
As escolhas de material e design de Aalto não eram apenas estéticas. O objetivo principal do edifício era funcionar como um instrumento médico. A tuberculose foi uma das preocupações de saúde mais urgentes no início do século XX e cada elemento do
Paimio foi concebido para promover a recuperação da doença. O próprio Aalto explicou algumas escolhas no projeto, que foram guiadas pela situação da época. Por exemplo: a luz natural, vinda das janelas e também dos terraços, era amplamente aproveitada nos espaços, já construídos tendo em mente o tratamento dos pacientes, uma vez que o sol tinha se mostrado eficaz em matar a bactéria da tuberculose. Dessa forma, a própria arquitetura do hospital fazia parte da cura.
Nos últimos meses, chegamos a um novo olhar sobre a arquitetura, em que o medo da contaminação controla novamente os tipos de espaços em que queremos estar. Como a tuberculose moldou o modernismo, a Covid-19 vai influenciar (e já influencia) o futuro próximo da arquitetura. Durante a quarentena, somos solicitados a ficar dentro de nossos próprios espaços e, dessa forma, nossas casas se tornam o lugar mais seguro do mundo.
A quarentena faz com que todos conheçam melhor os limites de seus lares. Sabemos tudo sobre eles, principalmente seus defeitos: a falta de luz em um cômodo, o chão irregular no outro, a manchinha no gesso, a necessidade de um banheiro extra. Nós, agora, entendemos a importância de um espaço. A necessidade do home office, por exemplo, fez-nos dar importância a cômodos mais isolados e específicos. Já a presença de luz natural se tornou um verdadeiro luxo para os confinados. As plantas e as hortinhas nos ajudam a nos conectar com a natureza e a decoração das nossas casas nos ajudam a sair do tédio do isolamento.
A Covid-19 exige um design profilático. Máscaras e luvas protegem nossos corpos como uma segunda pele. Círculos no chão com distanciamento garantem a nossa segurança na fila do supermercado. A fita de isolamento já se tornou um material da arquitetura, não é mesmo? Assim como acrílicos e vidros, que nos protegem, mas nos dão a sensação de falsa liberdade. Em nossos lares, somos livres, fora deles, vivemos a sociedade de 1,5 metro. Seja dentro de casa, no trabalho ou na cidade, são os arquitetos e suas obras os responsáveis por nos ajudar a enfrentar um novo modo de viver, por escrever a história da humanidade e por lançar tendências para um futuro cheio de esperança e beleza.
*Carta editorial originalmente publicada no Anuário Premium 2020 (edição #241) da TOPVIEW.