Bem-vindo à era da moeda digital, à era das criptomoedas
Depois de forçar mudanças em áreas como a imprensa, a música e o cinema, a internet está prestes a transformar radicalmente o mundo das finanças. O ponto de virada é a popularização das criptomoedas, moedas digitais descentralizadas, que podem ser enviadas e recebidas pela rede por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo. Com a grande vantagem de ser movimentado sem passar por um banco, o “novo dinheiro” reduz custos operacionais (as taxas são menores) e facilita transações internacionais. Ou seja: é a peça que faltava para a consolidação de um mercado verdadeiramente livre e global.
Lançado em 2009 por um criador (ou criadores) desconhecido, identificado pelo pseudônimo de Satoshi Nakamoto, o Bitcoin é a moeda digital mais utilizada, principalmente em virtude de seu pioneirismo. Mas há outras: Ether, Ripple, Dash, Monero, Litecoin, somando mais de mil, segundo o site CoinMarketCap. Algumas têm objetivos bem específicos — o PotCoin, por exemplo, foi desenvolvido para o comércio de maconha nos estados norte-americanos onde a substância é legalizada. A Califórnia, inclusive, já aceita o Bitcoin como meio de pagamento desde 2014.
Em abril deste ano, o Japão também reconheceu oficialmente o Bitcoin, o que acelerou ainda mais o avanço e a valorização das criptomoedas no mundo todo. Para Junior Garcia, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), esse boom tem várias fontes de explicação, a começar pela crise econômica mundial. “Isso afetou a confiança dos agentes em relação aos mercados financeiros e monetários ‘oficiais’”, afirma, citando, ainda, fatores como a maior disposição das pessoas para o uso de novas tecnologias e o aprimoramento dos sistemas de segurança. Para o professor da UFPR, o número de companhias que aceitam o dinheiro digital vai se multiplicar rapidamente nos próximos cinco anos.
Sem burocracia
No Brasil, os primeiros exemplos concretos da utilização do Bitcoin começam a aparecer. Inicialmente adotada por investidores, a moeda digital vem sendo cada vez mais “descoberta” por companhias que querem oferecer uma opção extra de pagamento para seus clientes — principalmente de outros países. É o caso da agência de entretenimento Scheeeins, especializada em eventos e festas para o público de alta renda. Com sede em São Paulo, a empresa passou a aceitar a criptomoeda em agosto e já registrou algumas transações.
“Na semana passada, um brasileiro que mora nos Estados Unidos comprou com bitcoins um pacote para a nossa festa de Réveillon no litoral da Bahia. Por meio de uma corretora, que fica com 1% do valor negociado, ele transferiu o dinheiro em poucos minutos e sem nenhuma burocracia”, conta Victor Reis, sócio-diretor da agência. Ele acredita que, dentro de poucos anos, também poderá pagar fornecedores com a moeda digital. “O ideal seria receber em bitcoins e, em vez de convertê-los em reais, repassar para as empresas de som, bebida e decoração”, diz.
Mas há quem já utilize o dinheiro digital para realizar transações na própria “vizinhança”. Em Londrina, os alunos de uma unidade local do método de ioga DeRose podem pagar mensalidades com bitcoins. A ideia veio do instrutor e empreendedor Leandro Biazão, um entusiasta das criptomoedas desde seu advento. Formado em Engenharia da Computação e investidor da Bolsa de Valores, ele recomenda que os interessados estudem bastante o assunto antes de entrar para valer.
“Muitas pessoas não utilizam o Bitcoin porque têm medo de hackers e outras ameaças da internet. Mas elas não percebem que estão o tempo todo fornecendo seus dados pessoais em sites e nas redes sociais. Nesse sentido, é importante ter medo mesmo, para aumentar a sua segurança. Afinal, você passa a ser o seu próprio banco”, alerta Biazão.
Apesar dos avanços, muitas empresas de atuação global já desistiram de operar com dinheiro digital. A plataforma de publicação de blogs WordPress, que incorporou o Bitcoin “por razões filosóficas”, anunciou sua saída desse mercado por causa do baixo uso da criptomoeda. A mesma justificativa foi dada pela fabricante de computadores Dell, que passou a aceitar bitcoins em 2014 e, recentemente, anunciou a interrupção desse tipo de transação.
Alguns especialistas, no entanto, veem esse recuo de outra forma. “Isso ocorre porque o caráter descentralizador das moedas digitais retirou o monopólio dos grandes agentes do capitalismo. Qualquer cidadão, por exemplo, poderia obter criptomoeda sem passar pelos grandes bancos ou grandes empresas”, afirma o professor Junior Garcia. “Quando há um fortalecimento dessas alternativas, o poder das corporações sobre o mercado fica reduzido. A tecnologia é aberta, algo que não acontece nos grandes bancos e corporações, onde o conhecimento é privado e protegido por direitos de propriedade. Hoje, qualquer pessoa pode criar uma criptomoeda. Essa é uma característica muito importante da tecnologia: o avanço do conhecimento de maneira colaborativa.”
*Matéria publicada originalmente por Omar Godoy na edição 205 da revista TOPVIEW.