Como a vovó fazia: o retorno do pão de fermentação natural
A frase escrita na lousa estrategicamente posicionada na entrada da padaria dá o tom: “Acabou porque é fresco”. Nem adianta insistir ou espernear, já que o pão ali – e em outros estabelecimentos semelhantes que estão abrindo pela cidade – leva, no mínimo, 24 horas para ficar pronto. O pão de fermentação natural é um dos representantes de um movimento crescente no mundo e que anda se firmando em Curitiba (oba!): a gastronomia artesanal. Técnicas e saberes antigos, que vinham sendo passados de geração em geração ao longo da história da alimentação, mas se perderam principalmente nas duas últimas, estão sendo recuperados em nome de fatores significativos como saúde e sabor, além do simples prazer de fazer. “Passamos por um processo de industrialização e agora estamos voltando e retomando as rédeas da nossa alimentação. Queremos cada vez mais ter o controle do que comemos, saber a procedência do ingrediente, ter uma relação verdadeira com ele”, afirma o jornalista gastronômico Rafael Tonon, editor do blog What the Fork. Rafael, assim como a maioria dos entrevistados desta matéria, guarda na memória a imagem de sua avó na cozinha.
Quem compartilha dessa lembrança sabe o quanto de sabor perdemos quando começamos a abrir muitas latas e embalagens. Daí o crescimento do interesse por cursos e programas de culinária, por fazer em casa. Ou comprar de quem faz. A tendência artesanal pode ser vista na gastronomia como um todo. Grandes chefs investem cada vez mais no “feito aqui”. Em Nova York, a chef britânica April Bloomfield resolveu fazer tudo o que vai dentro do hambúrguer na cozinha do Salvation Burger – atualmente fechado após um incêndio. O restaurante fazia o pão, o queijo e tinha até um pequeno açougue para processar a carne. “É o extremo do artesanal, aplicado num produto que a gente tinha como verdade que era algo industrial – o hambúrguer”, observa Tonon. O Açougue Central, novo estabelecimento do badalado chef Alex Atala, em São Paulo, vai na mesma linha. Como o nome diz, há um açougue – separado da cozinha por uma parede de vidro – dentro do restaurante. A Casa do Porco Bar, também em São Paulo, é outra que foi concebida na vibe do artesanal. O chef Jefferson Rueda passou um ano viajando pelo país para achar os fornecedores ideais do porco que serve em seu açougue-bar, do focinho ao rabo.
Movimento
Quem não se lembra de que a febre da cerveja artesanal começou há poucos anos aqui em Curitiba com pessoas que resolveram fazer a bebida em casa? A moda se transformou em um movimento mais sério e fez da cidade uma referência no assunto. “Todo mundo achou que podia fazer cerveja em casa. Alguns gostaram e continuaram, outros acharam uma furada, mas aí já tinham treinado o paladar”, descreve Luiz Mileck, idealizador do Coletivo Alimentar, misto de café, bar, lanchonete e espaço de cursos e vivências gastronômicas. Para ele, é assim que se dá – e se amplia – o movimento: mesmo os que desistem, por inúmeros fatores, são tocados pela riqueza gustativa proporcionada pelos produtos de qualidade que saem das mãos do artesão – sejam cervejas, hambúrgueres ou pães. E voltar para o produto industrializado e sem graça torna-se quase impossível. “O que as cervejas artesanais fizeram em Curitiba há três ou quatro anos, hoje está acontecendo com o pão. Não são movimentos isolados, é um movimento de fazer artesanal”, diz Mileck. Um dos incentivadores dessa onda de pães de fermentação natural é o professor de Administração de Empresas da UTFPR Rene Seifert Junior. Há oito anos, incomodado com o pão, digamos, sem personalidade que vem no saquinho, ele começou a fazer pão em casa. E para mostrar que a empreitada é muito mais simples do que parece, gravou o vídeo O Pão Mais Fácil do Mundo, que conta com mais de 535 mil visualizações no canal Pão da Casa, no YouTube. Caso você assista e não se convença, tente O Pão Mais fácil do Mundo com Oliver, vídeo em que o filho de Rene, então com 4 anos, faz o dito, com uma dose extra de fofura.
Entre o pão e a poesia
Se você ainda não experimentou um pão de fermentação natural ou lenta, precisa fazer isso agora. Eles são feitos apenas com farinha, água e sal e o processo demora de dois a três dias. São macios por dentro, com cascas crocantes e muito saborosos. Nas padarias comuns, um pão leva de duas a três horas para ficar pronto. Para que isso seja possível, são adicionados ingredientes químicos. “O que dá sabor ao pão é a fermentação. E isso só se consegue com tempo”, afirma Oscar Luzardo, proprietário, ao lado da esposa Claudine Botelho, da La Panoteca Slow Bakery. É ele quem coloca, literalmente, a mão na massa para servir os 11 a 16 tipos de pães feitos de trigo, milho, centeio e cevada, sempre integrais, em fermentações que levam de 24 a 72 horas. A cada três meses, todos os pães são trocados por novas receitas. Os saudosos podem encomendar os pães que saíram do cardápio. “Faz parte da ideia do artesanal proporcionar inovação, o processo permite a criatividade. Nosso objetivo é servir pães mais saborosos e com maior qualidade nutricional”, diz Oscar. A média de preços é de R$ 24 o quilo.
LA PANOTECA SLOW BAKERY_(41) 3339-8405
Rua Gastão Câmara, 384, Bigorrilho. lapanoteca.com.br
Porco bem tratado
Natural do Rio Grande do Sul, o engenheiro agrônomo Airton Luiz Empinotti sentia falta dos embutidos que consumia em sua infância, preparados pelos vizinhos. Há 18 anos, quando se aposentou, aproveitou a chance: resgatou as receitas e começou a produzir embutidos, curados, salames e salsichas artesanais “sem os caminhos encurtados pela indústria de forma química”, conforme Marcelo, filho de seu Airton. Nascia a Salumeria Monte Bello. Encravada na Serra da Graciosa, a pequena indústria baseada na agricultura familiar produz embutidos alemães e italianos com receitas e métodos de produção históricos. Salsichas, salames, produtos curados e defumados são feitos de forma artesanal, 100% com carne suína de produtores selecionados. São animais criados soltos, com boa alimentação e controle homeopático. Todo o processamento da carne é feito lá, onde ela passa pela cura ou defumação, que são processos naturais de conservação. Um presunto cru — ou Culatello — demora, no mínimo, 10 meses para ficar pronto e pode ultrapassar um ano. A Monte Bello também faz produtos mais rápidos como linguiças e salsichas, mas nada sai da fábrica em menos de três dias. Hoje eles atendem restaurantes e revendem em diversas lojas, padarias e mercados de Curitiba.
SALUMERIA MONTE BELLO_(41) 3107-1030 salumeriamontebello.com
*Matéria publicada originalmente por Érika Busani na edição 192 da revista TOPVIEW.