Epicentro gastronômico, Porta Palazzo é parada obrigatória na Itália
Até assistir a um documentário no canal de tevê franco-alemão Arte, Turim não passava da terra da Fiat, a sede da Copa de 94 e uma cidade remodelada para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2006. Para minha sorte, eu andava era muito mal-informada. Não só a capital do Piemonte é um belíssimo exemplar da arquitetura barroca com pitadas de art-nouveau italiano aqui e ali, como ela é um dos epicentros gastronômicos do país!
Do país que é, na minha modesta opinião, o epicentro da gastronomia mundial. Ou seja, minha falha era grave. Aos primeiros minutos da transmissão, uma cidade voltada à arte do comer bem me foi apresentada e as imagens me mostraram algo ainda mais importante: um mercado a céu aberto. E não um qualquer, mas o Porta Palazzo, o maior do gênero na Europa. Quando dei por mim, já estava pesquisando o preço das passagens.
Foi necessário esperar seis meses (para a chegada das férias) e outras cinco horas (tempo médio da viagem Paris-Turim em trem de alta velocidade) para que eu pudesse finalmente entender a exuberância desse mercado, que atrai 100 mil consumidores a cada semana e emprega 5 mil pessoas. Instalado na fronteira entre o centro histórico e o rio Dora, Porta Palazzo ocupa toda a extensão da Piazza della Repubblica e mais um pouco. Ao todo são 51 mil metros quadrados de área contínua, ocupados por aproximadamente mil barracas.
O número, incerto, deve-se à quantidade crescente de vendedores informais. Gente que chega, deita caixas de madeira ao chão e sobre elas exibe ramalhetes de flores colhidas em sua propriedade rural, gente que revende temperos frescos retirados do jardim ou aqueles que oferecem bons frutos cultivados por terceiros. “Por causa deles, hoje, 90% dos vendedores aqui são estrangeiros”, aponta, em tom de fofoca, o dono de barraca, Nino Quaranta, um italiano da gema.
Enquanto a maior parte desses feirantes acomodados na área externa negocia frutas e vegetais, uma parcela considerável – e cada vez maior – vende roupas, acessórios, calçados, importados, eletrônicos e até mesmo produtos de limpeza para a casa, de higiene pessoal e utensílios de cozinha. A variedade é tamanha que os turinenses costumam dizer que em Porta Palazzo é possível encontrar tudo: basta saber onde procurar.
Em cada uma das pontas da praça, que ganhou a forma de cruz graças ao traçado do trem de superfície, ergue-se ainda um mercado coberto. E dentro de cada um destes pavilhões, especialidades diversas são vendidas em 160 lojas, diariamente, salvo domingos, dia ainda santo por lá. O Mercado do Relógio (Mercato dell’Orologio) é o mais atraente entre eles. Construído em 1916, sua estrutura de ferro e vidro imita os grandes pavilhões de Paris e abriga o melhor da Itália. São lojas de queijos, frios, embutidos, panificadoras, confeitarias, sanduicherias, cafeterias e açougues, enlatados, conservas e massas. Ali, o deslocamento é lento.
A cada passo, impossível não se deter frente às vitrines, seja para admirar o vermelho intenso dos presuntos (sem sal, com pouco sal ou bem-salgado, maturado ou não) e salames ou os exóticos filés de carne de cavalo, animal muito consumido no norte do país; seja para se deslumbrar com a quantidade de queijos típicos que a cultura italiana foi capaz de criar e a gula, de manter. O desfile de delícias inevitavelmente conduz os visitantes às lojas que preparam sanduíches com frios e queijos fatiados na hora.
Por menos de 3 euros, dá para provar, bem feliz, uma pequena amostra desse paraíso dos gulosos. No meu caso, porém, meus olhos continuaram grudados nas vitrines. Porque Turim é o centro nevrálgico de uma província que detém 13 produtos com Denominação de Origem Protegida (DOP), sete com Indicações Geográficas Protegidas (IGP), 350 Produtos Agroalimentares Tradicionais da Província de Asti (PAT), 42 vinhos com selo de Denominação de Origem Controlada (DOC) e outros 16 com Denominação de Origem Controlada e Garantida (DOCG).
Siglas e nomes burocráticos que na prática indicam o saper fare (saber-fazer) e são sinônimo de alguns dos melhores vinhos do mundo (Barolo, Barbaresco, Dolcetto d’Alba), de prosecos (Asti), das mais caras trufas – como a branca de Alba. Precisa dizer mais? Além dos melhores ingredientes, entre eles as nozes do Piemonte, a farinha para polenta de Langa, os aspargos de Vinchio e o queijo Robiola di Roccaverano, feito de uma mistura dos leites de cabra e de vaca, só para citar alguns. Sabendo disso, fica fácil entender porque o Slow Food nasceu por essas paragens.
Devagar se come bem
O movimento gastronômico criado em 1989 que prega a valorização de ingredientes regionais na composição dos pratos, da biodiversidade, e o cuidado e o prazer no preparo dos alimentos reflete com perfeição a alma dedicada do povo do Piemonte ao seu tesouro gastronômico. Ao todo, a província reúne cerca de 66 mil empresas agroindustriais, de pequeno, médio e grande porte, que empregam em torno de 75 mil pessoas.
Pelo menos uma centena delas expõe os frutos do seu trabalho no anexo ao pavilhão do relógio, o chamado Mercato Dei Contadini, ou como dizemos no Brasil, as bancas de produtores. Entre eles, italianos bonachões, como o senhor Fellice Villa. Aos 70 anos, o homem cujas rugas se concentram unicamente ao redor dos olhos sorridentes, jamais abandonou o campo. Nem a feira. “Meus pais eram agricultores e desde os 11 anos eu repito diariamente o trabalho deles”, comenta, orgulhoso. No caso, a labuta subentende o cultivo de frutas e verduras, na região de Castiglione Torinese, 12 quilômetros dali.
Maurizio Bonasera, 40 anos mais novo, parece seguir o mesmo caminho. Há pouco menos de cinco anos ele se ocupa da maturação e aromatização dos queijos produzidos pela Corbusier, uma pequena empresa produtora da região. “Aqui, não temos um nome para cada queijo, como na França, mas somos capazes de criar tantas variedades quanto lá”, garante.
Queijos de ovelha com pedaços de figo ou massas à base de leite de vaca e borra de vinho estão entre suas receitas mais originais. Devidamente testadas, aprovadas e harmonizadas com um vinho tinto e desconhecido, saído direto de um garrafão para o meu copo de plástico, em plena sexta-feira de manhã.
UM MARCO EM PLENA TRANSFORMAÇÃO
Porta Palazzo nasceu como mercado de produtores em 29 de agosto de 1835, depois que um decreto municipal proibiu o comércio de mercadorias e alimentos nas praças então existentes no centro histórico. A área escolhida para acolher os mercadantes ficava a dois passos das antigas portas da cidade, que davam acesso às estradas para Milão.
Pouco a pouco, ela foi sendo modificada e ampliada. Dois dos primeiros mercados cobertos erguidos em 1836 continuam em uso até hoje: a ala de peixes e uma de alimentos. O dell’Orologio, já mencionado, veio depois. O último data de 2005. Construído sobre o antigo pavilhão de roupas e calçados (de 1963), ele foi projetado pelo arquiteto Massimiliano Fuksas, um dos curadores da Bienal de Veneza.
A maior modificação, porém, é recente. E resulta da combinação do fascínio provocado pela diversidade cultural desse centro gastronômico aos preços baixos praticados no entorno. Como em qualquer metrópole, os imóveis baratos ocupados pelos trabalhadores passaram a atrair os estudantes, que ao metamorfosearem as ruas abandonadas em espaços de cultura alternativa, passaram a atrair os investidores, que, por sua vez, acabaram por fazer do endereço uma das novas vedetes da cidade, num fenômeno urbano e social designado pelos sociólogos americanos como gentrification.
Na fronteira com o bairro Quadrilatero Romano, o entorno de Porta Palazzo, hoje caro, concentra butiques charmosas, bares e restaurantes animados. O Pastis, na praça Emanuele Filiberto, é um deles. Com mesas espalhadas pela calçada, a casa oferece pratos típicos sicilianos, servidos até o meio da tarde. Os peixes, claro, vêm do mercado vizinho. “As peixarias dali são as mais caras da cidade, mas também oferecem os melhores pescados”, avalia o proprietário Graziano Pace, um sulista emigrado, como 5,4% dos italianos não-naturais que vivem ali.
SERVIÇO
Mercado de Porta Palazzo: Piazza della Repubblica, de segunda a sexta, das 8h30 às 13h30 e aos sábados, das 8h30 às 18h30.
Pastis: Piazza Emanuele Filiberto, 9/b.
*Matéria originalmente escrita por Fernanda Peruzzo, de Turim, e publicada originalmente na edição 159 da revista TOPVIEW.