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Estupidamente saborosa: cresce o uso da cerveja na alta gastronomia

De norte a sul do Brasil - passando por Curitiba - a cerveja sai dos copos e das garrafas e vira um ingrediente para pratos sofisticados e deliciosos

Fazia calor na cozinha. Então, a chef Camilla Escandelari abriu uma deliciosa cerveja belga witbier e… derramou a garrafa inteira na mojica de pirarucu que estava preparando. Não, não se trata de desperdício. É que Camilla, especialista em gastronomia do SENAC do Rio de Janeiro, é defensora de uma das tendências gastronômicas mais interessantes da atualidade: a utilização de cerveja na preparação de pratos. Ela e a sommelier de cervejas Cilene Saorin apresentaram uma aula sobre o tema durante o Rio Gastronomia – um dos mais importantes eventos sobre comida no Brasil – em agosto.

Segundo a chef, a cerveja vai bem no preparo de caldos, sopas, risotos, molhos e até em sobremesas. “Em geral, as bebidas podem ser utilizadas para marinar, flambar, deglaçar ou mesmo para dar sabor a um determinado prato. Então, por que não utilizar a cerveja?”, questiona Camilla, que prossegue: “A possibilidade de explorar a cerveja na cozinha traz novos hábitos de consumo e abre novos horizontes para desmistificar a bebida e apresentá-la como um produto gourmet.”

Uma das principais explicações para o crescimento da utilização da cerveja na cozinha é a multiplicação de rótulos e variedades, fruto da importação da Europa e do surgimento de cervejarias artesanais em diversas regiões brasileiras. “Temos cervejas nacionais interessantíssimas, fabricadas com ingredientes regionais como taperebá, rapadura, açaí, mandioca e café”, comemora Camilla. Isso, é claro, pode render uma variedade de sabores impensáveis até então.

Em Belém do Pará, por exemplo, o chef Artur Bestene, da Circus Hamburgueria e da Buffalo Bill Boucherie, já desenvolveu diversas receitas que levam cerveja em sua preparação. Entusiasta dessa nova modalidade, Artur está arrumando as malas para participar, em novembro no Rio de Janeiro, do  Mondial de La Bière, um dos maiores do mundo na área. “Além de buscar harmonizações de pratos com cervejas artesanais e gourmet, tenho usado muito a bebida para cozinhar. Um dia desses, por exemplo, preparei um caranguejo toc-toc na cerveja que fez muito sucesso. Também tenho feito pratos como hambúrguer ao molho de Guinness”, conta o chef paraense.

Tradição familiar

Já em Curitiba, o chef João Soto, do Carmina Bistrô, ensina que para usar a bebida na gastronomia é muito importante conhecer suas características: “Se eu quero um molho adocicado e forte, procuro cervejas encorpadas com sabor mais acentuado. Se eu vou usar ingredientes mais delicados como frutos do mar, gosto de usar cervejas claras e menos ácidas”, explica. O chef concorda que a utilização da cerveja como ingrediente é uma tendência forte e, no caso específico dele, também pesa a tradição. “Minha família usa a cerveja como ingrediente de marinadas e cozidos há muito tempo.” Graças à prática, ele descobriu outras peculiaridades do ingrediente, como o fato de a cerveja deixar a carne mais macia. “Outra coisa que já fiz foi usar a cerveja em receitas de pães e massas. A cerveja deu aroma e mudou a textura”, completa.

Outro chef que há bastante tempo tem intimidade com o universo da cerveja é Théo Salvador, do Clube do Malte. “No meu caso, por já trabalhar com cerveja, o que mais me chamou a atenção foi a complexidade da bebida e o resultado que se obtém através de determinados processos de cocção”, explica.

O Clube do Malte já possui em seu cardápio dois pratos preparados com cerveja – asas marinadas e hambúrguer de costela –, mas Théo segue criando novas possibilidades. “Estamos sempre tentando fazer alguma coisa. Para agora, por exemplo, estamos preparando um hambúrguer com cerveja na sua composição. O que posso adiantar é que está ficando bom (risos)”, conta, temperando a entrevista com uma dose de suspense.

O chef João também está em fase criativa. Recentemente, o Carmina recebeu uma cerveja chamada Pele Vermelha, uma IPA produzida em Belo Horizonte. “Gostei muito do sabor acentuado dela, que possui notas de laranja, e resolvi fazer uma calda para manjar de coco. Além disso, tenho feito alguns testes com pães artesanais que logo, logo, estarão na mesa”, promete. Sorte de quem não tem preconceito e topa testar – e degustar – novos sabores. Um brinde a isso!

Os segredos da harmonização

Para quem quer se aventurar na cozinha de casa, o ideal é começar com cervejas mais simples. “Normalmente, utilizo cervejas dos estilos witbier, pilsner, vienna, brown, ale e  fruit lambics, que são cervejas mais leves e com pouco lúpulo”, enumera Camilla, explicando que a substância fornece amargor e aroma à bebida. Uma cerveja com muito lúpulo, se adicionada à preparação de uma receita e levada ao fogo, tende a tornar mais amargo o prato, colocando em risco seu resultado final.

E para acompanhar os pratos que levam cerveja, a pergunta é quase inevitável: um prato preparado com cerveja pode ser harmonizado também com cerveja? Para o chef João Soto, esse é um dos grandes encantos desse ingrediente: “Ao contrário do vinho, harmonizar a comida com a própria cerveja com que você preparou o prato nem sempre é regra.” Já a chef Camilla Escandelari lança um desafio: “Os pratos preparados com cerveja podem ser harmonizados com outras bebidas. Mas, se a proposta é quebrar paradigmas, por que não escolher uma cerveja para essa harmonização?”. Segundo ela, a complementaridade entre o prato e a bebida se dá basicamente de três formas: por semelhança, contraste ou equilíbrio. Seguindo essa receita, dá para testar inusitadas combinações.

RECEITA
Talharim com posta ao molho de cerveja, chef João Soto, do Carmina Bistrô

Ingredientes
• 500 g de posta branca
• 5 cebolas grandes
• 3 cenouras grandes
• 1 talo de salsão
• 1 talo de alho-poró
• 8 dentes de alho
• 5 folhas de louro
• 1 ramo de tomilho
• 600 ml de cerveja preta
• 500 g de tomate sem pele e sem semente
• 500 g de talharim fresco
• Sal e pimenta branca a gosto.

Modo de preparo
Limpe a carne, retirando um pouco da gordura, e coloque em uma bacia. Corte todos os vegetais (cebola, cenoura, salsão, alho-poró e alho), junte com a carne e cubra tudo com a cerveja. Adicione também as ervas aromáticas. Coloque o sal e a pimenta e cubra com papel filme. Deixe repousando na geladeira por 24 horas. O próximo passo é retirar a carne da marinada e selar (dourar) todos os lados. Para esse processo, use a panela de pressão aberta com um pouco de óleo no fundo. Depois de dourá-la, retire a carne da panela e reserve.

Com uma peneira, coe a marinada, reservando o líquido. Bata os tomates no liquidificador e reserve. Na mesma panela de pressão, frite os vegetais que foram retirados da marinada e adicione a carne. Cubra com o líquido que sobrou na marinada e com os tomates batidos. Ajuste o sal e tampe a panela. Cozinhe tudo na pressão por 35 minutos em fogo médio. Em uma panela à parte, faça o macarrão. Depois de pronta a carne, você pode cortá-la em finas fatias ou desfiá-la. Sirva como molho em cima da massa, com belas lascas de um bom parmesão.

ONDE COMER

Carmina Bistrô: Rua Conselheiro Carrão, 336, Juvevê | 41 3095-9222
– Talharim com posta ao molho de cerveja: R$ 39.

Clube do Malte: Rua Desembargador Motta, 2.200, Centro | 41 3014-3414
– Hambúrguer de costela, que leva a Chicago Blues Smoked Porter®: R$ 19,90.
– Asas marinadas, que levam a Underground Rock Pale Ale®: R$ 17,90.

Jacobina Bar e Restaurante: Rua Almirante Tamandaré, 1.365, Juvevê | 41 3016-6111
– Eisbein, servido com salsicha, repolho e mostarda, é feito com chope: R$ 33,80.

Hop´n Roll: Rua Mateus Leme, 950, Centro Cívico | 41 3408-4486
– Costelinha Hop´n Roll: Costelinha de porco marinada na cerveja artesanal, servida com molho barbecue, anéis de cebola empanados e pão em fatias: R$ 25.

*Matéria escrita por Marcelo Vieira, do Rio de Janeiro, e publicada originalmente na edição 156 da revista TOPVIEW.

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