ESTILO

O reflexo da vida nas ruas

Confira a terceira e última parte da matéria principal publicada na edição #246 da revista

 Muitas vezes, a arte urbana passa despercebida pelos olhos viciados de quem sempre vê a mesma paisagem nos trajetos comuns do dia a dia. Mas ela é uma expressão artística presente na vida do homem há séculos. Um bom exemplo disso são os desenhos nas cavernas feitos pelos nossos ancestrais. O mundo é cercado de manifestações artísticas. E ele fica pequeno para os murais de Eduardo Kobra, 45 anos, artista periférico do Jardim Martinica, em São Paulo, que se tornou um dos maiores muralistas da atualidade, somando obras em 35 países, em cinco continentes.

Kobra iniciou sua carreira como pichador, desenhando em muros na clandestinidade quando era adolescente e, desde então, luta para mostrar que a arte não é só o que está dentro de museus e galerias, mas que ela é simples e pode estar em qualquer lugar. “Existem várias manifestações artísticas. Minha luta é de mais ou menos 30 anos. Tenho o objetivo de provar que existem artistas que podem ter vindo da periferia, com uma origem humilde”, ressalta Kobra.

Muitas pessoas já criticaram seu trabalho de forma preconceituosa e intolerante, por não entenderem que o que ele apresentava em murais nas grandes cidades era uma forma de arte. Mas, desde sempre, Kobra teve a preocupação de respeitar os espaços públicos que se tornam pano de fundo para suas obras. “Eu tomo cuidado com a paisagem urbana, com a história, com a arquitetura do local. Tudo isso deve ser levado em conta. Não posso ser egoísta. A cidade não é minha. As pessoas vão transitar por ela”, enfatiza ele.

Mural Salvador Dali, na Espanha (Foto: divulgação)

De uma forma geral, questões sociais e humanitárias são o que pautam o trabalho de Kobra, pois o artista acredita que suas inspirações são parte daquilo que ele mesmo é – e esses princípios fazem parte de sua vida. “Eu acredito que a inspiração é algo que vem de dentro e é externalizado, que vem do coração mesmo, da alma. Mas ela também pode ser alcançada por meio de dedicação, pesquisa e muito esforço”, conta o muralista.

Sua mais recente obra foi feita na cidade de Sorocaba, no interior de São Paulo. O painel tem 22 metros de altura por 11 de largura e mostra um menino subindo uma estante em uma biblioteca à procura de um livro.

Kobra, que não possui formação acadêmica, é autodidata. “Pesquiso muito as biografias dos ‘personagens’ que destaco em minhas obras e, também, sobre as cidades que visito: busco imagens, fotografias e textos. Por isso, tenho procurado trazer em meus murais a importância dos livros para a cultura do país e para a formação e o crescimento das pessoas”, finaliza.

Confira a entrevista na íntegra:

Quais são suas maiores inspirações na hora de criar?
Bom, as minhas inspirações são parte integrante daquilo que eu sou. Elas representam uma extensão do que eu sou. Então, muitas coisas que eu quero mudar, muitas coisas que me incomodam, sempre dentro de fatos que eu acredito, que eu julgo serem relevantes. Isso [a inspiração] passa por várias questões sociais e humanitárias de forma geral. Eu acredito muito que a inspiração é algo que vem de dentro para fora, vem do coração mesmo, da alma. E claro, ela também pode ser alcançada através de dedicação, pesquisa e esforço.

Houve muito preconceito no início da sua carreira por sua arte estar na rua?
Eu acho que a ignorância é muito parceira desses aspectos, no sentido da falta de conhecimento mesmo. Porque a arte é endêmica do planeta Terra, ela sempre existiu, desde os homens da caverna passando por tantos movimentos artísticos, movimentos expressivos, desde o Egito até a Grécia. Ou ainda na Roma Antiga ou mesmo pinturas de muralistas mexicanos. Então, pintar na rua é algo que sempre ocorreu, não é novidade. Muitas pessoas no início da minha trajetória se espantavam com isso, mas era algo que já estava em mim, eu já nasci com isso. E sim, o preconceito foi muito forte, as pessoas até me ofendiam. Imagina você querer fazer arte e ser detido por isso. Qual é o crime que você está cometendo pintando um muro? Tentando se expressar e deixando um trabalho artístico. Imagine se fossem prender os muralistas mexicanos, o Siqueiros ou o Diego Rivera, ou ainda toda aquela arte que foi feita nas pirâmides do Egito, imagine se fossem prender aqueles artistas. Eu acho que é mais ou menos parecido com isso. Mas, com o passar do tempo isso vem melhorando e as pessoas vão aprendendo, vão entendendo que a arte não é só o que está dentro de museu, de galeria, que a arte pode estar na rua, na periferia, pode estar em lugares simples. Não é só o que está em telas, a arte pode estar no muro, em um pedaço de papel, madeira, vidro, plástico. Existem várias manifestações artísticas. E a minha luta já é de 30 anos mais ou menos, com o objetivo de mostrar para as pessoas que existem artistas que podem sim, ter nascido na periferia e virem de uma origem humilde.

Quando você se tornou artista?
Eu não acho que exista muito essa questão de se tornar artista. Eu acho que ser artista é algo nato. Eu acho que você tem essa referência, essa aptidão e quem é artista, sempre será artista. Por mais que ele passe a trabalhar em outras áreas, por questões financeiras ou até mesmo por opressão e pressão como eu sofri para não seguir na carreira artística. Mas, a pessoa sempre vai ser artista porque ela tem isso dentro dela, esse ímpeto. Agora, é diferente o dom do desenvolvimento. Então, eu tive o desejo e a vontade de seguir em frente e continuar a me esforçar em prol do meu trabalho. Assim como eu faço até hoje, então, as portas foram se abrindo, eu vivo em um processo de evolução e aprendizado. Arte é infinita, é complementar. É difícil definir o que é arte, a arte está em todos os tipos de intervenções, seja ela arquitetura, paisagismo, urbanismo, desenho, escultura, instalação, enfim, tudo é arte.

Como funciona a ocupação artística em espaços públicos?
Primeiro que ocupar um espaço público é uma grande responsabilidade, e eu tenho muito respeito pela cidade, pela arquitetura, por quem desenvolveu aquele projeto arquitetônico, pela paisagem urbana, pelos prédios, pela história do local, pelo paisagismo que foi colocado ali. Tudo isso é importante e relevante para o desenvolvimento da arte que vai ser aplicada. É importante pensar também nas pessoas que transitam pelas ruas, pois quando você pinta na rua, você não pode ser egoísta e pensar só em você, é preciso pensar que a rua é democrática, a cidade não é sua. A cidade pertence a todas as pessoas que vivem e transitam por ela. Então, existe essa responsabilidade, diferentes pensamentos, culturas, religiões. Nessas viagens que eu faço, pelos cinco continentes, eu sempre procuro conhecer mais a cultura, entender e respeitar o lugar onde eu estou.

Você tem alguma história engraçada que aconteceu enquanto estava trabalhando? Se sim, me conta?
Pintar na rua é sempre um desafio. Tem coisas engraçadas e coisas complexas também. Mas, é sempre difícil, eu poderia citar vários momentos, como por exemplo quando eu fui convidado para ir pintar na Rússia, pelo governo. Quando eu cheguei lá, eles colocaram viaturas policiais que ficavam me vigiando 24 horas por dia, achando que eu pudesse sair para fazer pichações pela cidade. Mandaram eu parar o trabalho várias vezes, mesmo tendo referência do que eu fazia. No Japão, quando eu cheguei para realizar um trabalho tinham mais de 35 japoneses que foram contratados para me ajudar. Isso nunca tinha acontecido e eles montavam e desmontavam os equipamentos de balanço super complexo na lateral do prédio, todas as noites, para montar novamente na manhã seguinte. Tudo porque eles tinham medo de que os equipamentos pudessem cair e machucar alguma pessoa na rua.

Quais são os desafios em ser artista no Brasil?
A dificuldade em ser artista no Brasil é a mesma que qualquer outra profissão, não é um privilégio de artista. Acho que se você decidir ser um médico, um advogado, um engenheiro e vir da periferia como é o meu caso, ter pouco acesso à cultura, à informação. Então, a gente acaba equiparando tudo, porque quando você pega países do primeiro mundo, criancinhas de 3 anos estão lá no Louvre sentadas observando obras de Rembrandt, a informação e as possibilidades são outras. Mas, por outro lado, eu não acredito que você possa colocar um impedimento, colocando culpa nos outros pelos nossos fracassos. É claro que sim, poderia ser diferente. Poderíamos ter mais acessos, mais facilidades, mas temos que lutar com as armas que temos e valorizar o nosso país, ajudá-lo a crescer. Eu acho que pegar os melhores talentos brasileiros e mandar tudo para fora do país não é algo aceitável, temos de cultivar isso, pra gente no futuro ter as oportunidades que existem nos Estados Unidos, na Europa ou na Ásia. Então, as ferramentas estão aí, os livros devem ser usados para aprendermos, a internet, o esforço pessoal. Você pode trabalhar num subemprego e mesmo assim continuar acreditando e seguindo no seu sonho.

*Matéria originalmente publicada na edição #246 da revista TOPVIEW.

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