ESTILO

O oroboro e a perenidade das alcachofras

Crônica de Julie Fank publicada originalmente na edição 206 da revista TOPVIEW

Faço as contas e vejo que estamos a quase trinta anos da década de 1990, a quarenta do berçário de Stranger Things e a pouco menos de um século de presenciar um colapso do que a gente ainda entende por sociedade – seja pela insurreição dos robôs, prevista nas histórias de ficção científica, seja pela polarização política, seja pela completa inabilidade do ser humano em manter o seu planeta vivo por muito mais tempo. Que mês é hoje? Faço mais contas e vejo que 2017 está prestes a bater as botas e abrir alas para mais um período de eleições (sic), que será batizado como o novo pior ano de todos os tempos da última semana. É sempre a mesma coisa. É todo tempo o mesmo cachorrinho correndo atrás do próprio rabo.

Parênteses: há três anos, havia prometido mandar fazer um neon escrito “Adeus, 2014!”, mas me toquei da ingenuidade da atitude em 2016, dois anos consecutivos depois de quase não cruzar a linha de chegada de dezembro. De novo. Se 2017 me pedisse uma carta de recomendação e dependesse de mim para arranjar um bico em alguma dimensão paralela, estaria ferrado, diz o clichê. Não posso dizer que ele não tem razão. Sem conseguir fugir disso, estabeleço que preciso listar minhas metas (loucos das listas, uni-vos) para o próximo ano ainda neste mês (enquanto escrevo esta coluna, ainda estamos em novembro). Tudo para prevenir que, ano que vem, a sensação de frustração não me visite. Deixarei de lado objetivos inalcançáveis de emagrecimento e a promessa de escrever mais, eu sempre vou escrever menos do que gostaria. Uma amiga tem o costume de, a cada fim de ano, colar numa cartolina imagens que simbolizam tudo o que ela deseja para o próximo. Já fizemos esse ritual juntas algumas vezes. Na impossibilidade de fazer o meu cartaz real agora, imagino o que poderia figurar na minha “mandala”.

Mentalmente, meu cartaz de “Vem em mim, 2018!” parece uma mistura entre o traço catastrófico do Picasso em Guernica com a pincelada impressionista de Monet desenhando nossas quatro estações no mesmo minuto. Se eu tivesse um pouco mais de espaço, teríamos um Van Gogh nada esperançoso com um final tarantinesco. Não porque quero. Teria flores, amarelo (dizem que é pra trazer prosperidade!) e aquela sanidade que não é lá essas coisas. No fundo, ouço o hino de Belchior em eco cantando que ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro. Ô, sujeito de sorte, aliás. Foi-se embora salvo e forte antes de encarar o ano que vem. Ouço também o tilintar de taças que marca o início de mais um ciclo. É quase amanhã e eu, de novo, estou atrasada com o texto. Entre o desejo de estabilidade financeira, a utopia da paz mundial, visualizo arrumações frenéticas e roupas novas nos mesmos corpos, promessas de atitudes e leituras – pra falar das que dependem de nossa boa vontade – e pedidos. São tantos feitos como se fossem idealizados pela primeira vez. Conseguir entregar os textos no prazo, suplico, ó, céus. Pra mim, já tá ótimo.

O começo de ano institucionaliza a permissão para pedir, perdoar e prometer – três verbos usados como se fossem virgens a cada contagem regressiva. Como se fosse mágica, a folhinha do calendário estabelece novas rotinas. É virar o ponteiro e lá vêm mais reportagens de Páscoa, mais um Dia das Mães ao lado da discussão sobre a importância das datas comerciais e mais um Sete de Setembro no muro das lamentações ao som do hino nacional – até que 2019 se aproxime e possamos reclamar de mais 365 dias em apuros. O conteúdo segue o mesmo e ainda não ganhamos nenhum segundo na contagem dos dias. As ruínas do ano que passa sempre ficam para o nosso balancete dar conta depois. Quase como a alcachofra, que, logo após florescer, endurece e, um ciclo depois, na mesma época, surge, plena e florida – como se nada tivesse acontecido.

Enquanto conjecturo o que colocar na minha colagem de quinta série de 2018 prestes a servir de guia visual pregado na parede, no meu mood instrumental, toca a sequência de faixas de The Endless River, o tão esperado e inédito álbum do Pink Floyd lançado em 2014, com um título propício e de tradução peculiar. Coleto a imagem do álbum para a minha lista mental, um rio sem fim, e a tenho quase completa. Fecho os olhos e rebobino a fita para ver se lembrei de tudo. 2018 é essa ilha deserta no fim do arco-íris, nada parecida com um pote de ouro, e é preciso decidir quem levar. Elejo a coerência como a responsável pelo controle da arca, decido que a arte viria bem acompanhada de um tantinho de liberdade – que bela ideia este casamento primaveril em pleno outono da humanidade –, digo que sim a todos os planos de viagens engavetados, prometo ao meu próprio corpo que conversaremos mais vezes por dia e guardo um espaço especial para o que ainda se pode chamar de empatia. Nota mental: sua mochila deve pesar no máximo 7% do seu peso. Revejo os aplicativos ocupando espaço na memória, jogo meus remédios fora e levo uma corda para pular de vez em quando. Na mala, mais pés que sapatos e já estou pronta para embarcar, a mesma estação dos outros anos continua com aquele cartaz de cigarro da década de 1960 atrás da atendente, agora em GIF – não mudamos tanto assim. Sei do risco de estar correndo atrás do próprio rabo, o destino não pode ser outro senão o próprio início, a vida é palindrômica, afinal, mas, diz Belchior, meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente. E é importante acreditar nos poetas.

P.S.: não se preocupe, meu amigo, com os horrores que eu lhe digo, isto é somente uma crônica.

*Crônica publicada originalmente na edição 206 da revista TOPVIEW.

Julie Fank (@juliefank) é escritora, professora e fundadora da Esc. Escola de Escrita. juliefank@gmail.com

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