O mestre do melodrama hollywoodiano
O melodrama, por muito tempo, foi menosprezado como um gênero popular demais, destinado ao público feminino norte-americano que frequentava os cinemas à tarde, enquanto os maridos trabalhavam, para fugir da realidade, sonhar (e chorar) um pouco. Histórias dramáticas, caudalosas, marcadas por reviravoltas por vezes inverossímeis, sempre sob o compasso de trilhas sonoras feitas para emocionar (o tal melos, de melodrama). Essas histórias não eram levadas a sério – salvo por suas fiéis espectadoras.
Até que os acadêmicos e pesquisadores de cinema nos anos 1960 e 1970, na esteira do movimento crítico iniciado pela revista francesa Cahiers du Cinéma, começaram a olhar para esses filmes de outra forma. O diretor alemão Douglas Sirk foi elevado da condição de hábil artesão – um faz-tudo dos grandes estúdios de Hollywood – a grande criador e observador crítico da sociedade norte-americana de seu tempo, quando títulos como Tudo o Que o Céu Permite (1955), Palavras ao Vento (1957) e Imitação da Vida (1958) passaram a ser vistos com outros olhos.
Por baixo do excesso formal, das vastas emoções esparramadas pelas tramas arrebatadas, feitas sob encomenda para emocionar o grande público, havia contundentes comentários sobre a condição da mulher, o patriarcalismo, a distinção entre classes e o racismo, entre outras mazelas varridas para baixo dos tapetes das confortáveis cidades da classe média americana do pós-Segunda Guerra Mundial. Sirk era um historiador da arte quando iniciou sua carreira como diretor no teatro alemão dos anos 1920 e, mais tarde, essa formação teve impacto definitivo em seus trabalhos como cineasta.
Influenciado pela estética do Expressionismo, em particular a projeção do psiquismo dos personagens para o espaço externo por eles habitado, em sua geografia, o cineasta trouxe essa visão estética a Hollywood, sobretudo para os melodramas que realizou na Universal Studios na década de 1950. Também foi influenciado pelo teatro político de Bertolt Brecht e usou técnicas de distanciamento, com o objetivo de provocar espectadores mais críticos e ativos: seus personagens estavam sempre inseridos em contextos sociais muito detalhadamente construídos por meio da direção de arte – da cenografia aos figurinos. Sua mise-en-scène se utilizava de muitos recursos, entre eles, espelhos e superfícies reflexivas para sugerir identidades múltiplas ou divididas; espaços físicos muito definidos, quando não segregados, para caracterizar seus personagens e seus universos particulares; e o uso de cores para destacar traços sociais e psicoemocionais dos protagonistas.
Por muito tempo, Sirk foi considerado um cineasta menor – o próprio melodrama era considerado um gênero vulgar – tanto que jamais foi indicado ao Oscar de melhor direção. Foi o cineasta suíço-francês Jean-Luc Godard, um dos precursores da Nouvelle Vague, quem começou a escrever artigos e críticas mais aprofundadas, e elogiosas, a respeito de seus filmes na revista Cahiers du Cinéma, o que iniciou um lento movimento de recuperação crítica em torno do diretor. Outro dos grandes seguidores foi o também alemão Rainer Werner Fassbinder, que trouxe para sua obra, sobretudo em filmes como O Casamento de Maria Braun, Lili Marlene e O Desespero de Veronika Voss muitos dos traços estéticos do cineasta.
No cinema contemporâneo, a influência de Sirk está presente na filmografia de diretores importantes, como espanhol Pedro Almodóvar (Tudo Sobre Minha Mãe) e o norte-americano Todd Haynes, que fez sua versão pessoal de Tudo o que o Céu Permite em Longe do Paraíso (2002), estrelado por Julianne Moore. No Brasil, Karim Aïnouz, de Madame Satã, Praia do Futuro e A Vida Invisível, também é confesso admirador de Sirk e tem como forte referência na construção de seus filmes.
“No cinema contemporâneo, a influência de Sirk está presente na filmografia de diretores importantes, como espanhol Pedro Almodóvar (…)”
*Coluna originalmente publicada na edição #246 da revista TOPVIEW.