Meu barco, minha casa
por Fernanda Peruzzo, de Amsterdã (Holanda)
Foi o convite de uma amiga que me abriu os olhos: passar um fim de semana em Amsterdã, em um barco. “Barco?”, questionei. Sim, uma casa-barco, esse misto de residência singela, normalmente limitada à marca dos 130 m2, que é também uma embarcação, como pude comprovar minutos após colocar os pés na cidade mais livre da Europa, terra onde tudo é permitido, inclusive fumar maconha e haxixe, e vender serviços sexuais de maneira organizada e sindicalizada, em pleno centro histórico.
Em Amsterdã, assim como em toda a Holanda, morar em barcos é normal desde a década de 50. Com a crise do pós-guerra que fez escassear o número de residências no país (e em todo o velho continente), muita gente também abriu os olhos e encarou as velhas barcas de carga usadas no transporte de cereais, com seus 25 metros de convés, em média, como uma moradia em potencial.
A princípio, foram as classes trabalhadoras e os cidadãos mais pobres que compraram a ideia de povoar os canais. O preço baixo das embarcações antiquadas e a grande oferta de espaço livre deram o empurrão que eles precisavam. Hoje, quem ocupa boa parte das 2.500 casas-barco, que se enfileiram por toda a região central da capital, é a burguesia.
Atraídas pelo estilo de vida singular que esse tipo de moradia oferece, as classes média e alta local parecem não se importar em desembolsar entre 300 mil e 1 milhão de euros por uma destas propriedades. Mesmo sabendo que boa parte desse valor não passa de uma porção de água. “Já se foi o tempo em que uma pessoa podia entrar em Amsterdã com seu barco, amarrá-lo em um local livre e ali se fixar.
A legislação atual determina que para morar em um barco na cidade você precisa comprar um que já esteja dentro dela, devidamente legalizado, e ainda pagar pelo direito de ancoragem. Ou seja, pela parcela de água abaixo dele”, explica Mark Holden, do site www.amsterdamhouseboats.nl, que ensina, passo a passo, como ter seu barco, doce barco. “É por isso que, uma vez adquirido, nem a embarcação e tampouco o seu endereço podem ser mudados”, complementa.
Rotina boa
Todas essas restrições e burocracias não assustaram Tjalling Halbertsma. Há um ano, esse jovem homem de negócios do segmento de moda investiu suas economias na aquisição do Nova Cura, uma barcaça de 25 metros de comprimento, pouco mais de 100 m2 e exatos 89 anos de idade, ancorada em Entrepotdok, um longo canal na região oeste da cidade, de onde ele tem uma vista privilegiada para o zoológico. “Muitas vezes, eu tomo meu café da manhã observando as girafas e ouvindo o rugir dos leões”, comenta, orgulhoso de ter escolhido tão bem a sua vizinhança.
Infelizmente, no dia que o visitei, os animais deviam estar fazendo a sesta. Mas ao longo das quase duas horas que passamos juntos, pude perceber a algazarra dos bandos de patos, cisnes e outras aves que eu sequer sabia que existiam.
Do pequeno convés, decorado com uma mesa de jardim e algumas cadeiras, notei também o quão similar a vida sobre as águas pode ser daquela do campo. Porque barcos, vejam bem, precisam de manutenção constante. E podem dar tanto trabalho quanto uma terra a cultivar.A cada quatro anos eles precisam ser transportados até uma doca para a retirada de toda a craca que se fixa no casco, além de passar por uma manutenção, que inclui a impermeabilização de toda a superfície que fica submersa, obrigando seus ocupantes a passar algumas noites longe de casa.
Uma vez por ano, é a pintura externa das áreas acima da superfície que pede cuidados. E a cada inverno, as tubulações de água que os conectam ao sistema público, e costumam ficar expostas, precisam ganhar a companhia de serpentinas de aquecimento para evitar o seu congelamento e, pior, o rompimento dos canos. “Ainda assim, compensa”, garante Tjalling. Vendo-o equipar o pequeno bote atado à sua casa com uma bolsa térmica bem-recheada por cervejas locais e convidar a mim e a meu marido para uma volta pela cidade, em plena sexta-feira à noite, eu acredito nele. “Sabe, é assim que eu costumo me locomover, seja para encontrar os amigos ou ir ao mercado.”
Pura liberdade
Mas foi conversando com a ex-agente penitenciária Siet Verhoeven que eu vislumbrei o que a vida sob um teto destes pode significar. Distante alguns quilômetros do centro histórico, em um grande canal chamado Dijksgracht, seu dia a dia acompanha o vai e vem das águas, numa falta de rotina que só quem experimenta a mudança constante do cenário visto das janelas de uma embarcação pode entender. “Aqui, a atmosfera é especial. A água muda conforme o vento, a luz, a temperatura e então tudo ao meu redor muda também”, justifica.
Esses movimentos, como ela mesma gosta de dizer, são tão significativos que chegam a moldar a própria personalidade de quem passa muito tempo assim, num estado de deriva muito bem-controlado e confortável. “Você cria um espírito de aventura, até porque sua casa dá um tipo de trabalho que nenhuma outra dá. E tem a sensação de liberdade que é muito forte. Há dez anos eu moro em barcos e eu digo que meus dias são de pura liberdade e férias.”
O fato de habitar um espaço que é também um meio de transporte, e de ter abandonado o emprego para se dedicar aos turistas que hospeda em sua casa, transformada em Boat and Breakfast, certamente devem reforçar essa sensação.
NO PADRÃO
Três tipos de moradias flutuantes são aceitas nos canais da cidade. A casa-barco, propriamente dita, que inclui antigas embarcações construídas em ferro, características das primeiras décadas do século 20, e que costumavam ser usadas para o transporte fluvial de cereais e mercadorias. Conhecidas por aqui como barcaças, elas têm fundo chato e costumam ter um longo convés que, em sua nova função, quase sempre resulta em compridos jardins e decks. A casa-navio, com a cabine de comando alta e janelas maiores, tem o casco em forma de cunha e paredes internas curvas.
O terceiro tipo, chamado Arks, é o único que não pode ser navegado. Seu casco retangular, de fundo plano, é habitualmente construído em concreto, ainda que os modelos mais antigos fossem feitos em ferro. Mais parecida com as habitações convencionais, essa categoria de residência flutuante ganha das demais no quesito facilidade de configuração interna (o que justifica sua popularidade). Em compensação, ela certamente perde em autenticidade.
VENEZA, QUE NADA!
Amsterdã é sempre descrita como a Veneza nórdica. Mas para o desespero dos italianos, a engenhosa capital holandesa, com seus 165 canais e 1.281 pontes, enfrenta numa boa qualquer duelo com a bella città: são apenas 12 canais a mais e cerca de 800 pontes a menos.
Concebido entre os séculos 16 e 17, seu intrincado plano urbanístico visava a expansão do burgo medieval em direção às terras alagadas que o circundavam. Um conjunto de canais concêntricos garantiu a drenagem das zonas úmidas e o aterramento dos espaços intermediários possibilitou a construção das edificações que hoje são o símbolo da cidade, no que foi o maior e mais importante projeto urbano do seu tempo.
Ainda que boa parte das embarcações residenciais ancoradas na cidade continue a despejar o esgoto diretamente na água, para a vergonha dos ecologistas nacionais, um complexo sistema de limpeza e despoluição a mantém livre de dejetos; e do mau cheiro. Até três vezes por semana, as comportas em torno da cidade são fechadas e a água limpa do lago artificial IJ (construído para evitar o avanço do mar e o alagamento do país) é bombeada.
A corrente criada por esse bombeamento empurra a sujeira em direção às comportas opostas ao lago, que são então abertas para deixar os resíduos passarem. Regularmente, dragas se ocupam da retirada de entulhos, a maior parte latas, garrafas e bicicletas, que encalham no fundo dos canais. Os moradores têm tanta confiança no sistema que durante os meses de verão eles nadam e mergulham despreocupados por ali.