Capa do Journal desta semana, Monica Rischbieter não quer ser espectadora
Monica Rischbieter, diretora-presidente do Teatro Guaíra, é uma fumante inveterada. Em épocas de aflição, consome uma carteira e meia de Kent por dia – como no começo deste ano, quando se viu às voltas com o maior desafio de sua carreira: o desmantelamento da Orquestra Sinfônica do Paraná e do Balé do Teatro Guaíra, que tiveram os cargos comissionados declarados ilegais pelo Tribunal de Justiça.
Até o processo se resolver, com uma nova audição para músicos e bailarinos, ela sofreu. Viu amigos indo embora, pediu demissão, foi convencida a ficar. “As colegas de trabalho chegavam a esconder meus cinzeiros, era um cigarro atrás do outro. Foi dolorido”, lembra.
Hoje, tanto a orquestra como o balé retomaram as atividades. Monica, aos poucos, retorna também à rotina: montar quebra-cabeças, cuidar da gata (batizada de Guairinha) e, todo dia, ler Clarice Lispector e ouvir Chico Buarque (por quem revela um crush).
Na conversa a seguir, Monica fala sobre os bastidores do imbróglio no Teatro Guaíra, revela que o teatro tem fantasmas e explica sua receita pessoal para manter a humildade: ficar longe de puxa-sacos.
Qual foi o seu maior desafio profissional no Teatro Guaíra? A situação dos cargos comissionados. Até conseguir fazer as audições, foi muito difícil. Tem dores, mas uma coisa é o lado profissional, em que eu estou superfeliz, e eu, Monica, tenho algumas tristezas, porque tinha amigos nos cargos em comissão que não fizeram a audição ou não passaram.
Como foi a situação? Essa lei dos cargos comissionados foi criada em 2003, porque o último concurso para o Balé [do Teatro Guaíra] e para a Orquestra [Sinfônica do Paraná] foi no começo dos anos 1990, final dos anos 1980. Depois, nunca mais houve contratações. O Guaíra completava seus quadros com cachês artísticos. Criaram uma lei com 81 cargos em comissão de natureza artística. Até que o Tribunal de Contas questionou os cachês artísticos, porque não existe essa figura. Quando cheguei, em 2011, a gente sabia que tinha que fazer alguma coisa. Em 2014, criamos o serviço social Palco Paraná, que é autônomo e seria capaz de fazer a gestão do balé e da orquestra. Mas, por problemas de orçamento, de momento, a gente só conseguiu assinar o contrato de gestão com o governo do estado em dezembro de 2016. Foi quando o Tribunal de Justiça declarou os cargos inconstitucionais e a ilegalidade da lei. Em 1o de março deste ano, todos os [músicos e bailarinos que tinham] cargos em comissão do Guaíra ficaram sem emprego.
Quantos profissionais do quadro antigo conseguiram permanecer? Do balé, que eram 23 comissionados, oito permaneceram. Da orquestra, dos 30 comissionados, três [permaneceram].
Como foi o processo para músicos e bailarinos? Acho que foi horrível. Você estar há 14, 15 anos em um lugar e, de repente, ter que fazer um teste para continuar. Infelizmente, faz parte da vida.
Em 2015, você disse que sofria só de pensar em sair do Guaíra, depois chegou a pedir demissão. Por quê? Foi um processo em que me atrapalhei emocionalmente e, no começo do ano, a gente não tinha certeza de que [o ajuste dos cargos] daria certo. Então, conversei com o Secretário [de Estado] da Cultura e ele me pediu para eu ficar um pouco mais. Passei uma semana pensando. Tenho um amor profundo pelo teatro e tinha certeza de que eu tinha que deixá-lo organizado.
De onde vem esse amor pelo Teatro Guaíra? Não tenho a menor ideia. Vim para cá em 1997, não entendia nada de teatro. É um lugar muito diferente de se trabalhar, muito mágico. Um palco vazio também é mágico.
Tem uma… energia? Eu acho que tem fantasmas. Bons fantasmas. Nunca vi nenhum, infelizmente, mas tem muitas histórias. O teatro range. Eu tenho um gato que, no show do Robert Plant, há uns cinco anos, cruzou o palco em um ensaio. Um mês depois, achamos o gato… agora, está na minha casa e se chama Guairinha. Hoje, sobe no meu colo, mas veio tão assustada… acho que viu bastante coisa.
Com a crise da cultura, como está o Guaíra? Não acho que seja a pior crise que já houve. Vejo que o país está com dificuldades, os estados reduzindo gastos para entrar na linha. Eu, como presidente do Teatro Guaíra, odeio o Secretário Estadual da Fazenda; mas, como paranaense, acho que vou admirá-lo, porque os esforços são necessários. Não temos o melhor orçamento do mundo, mas há um esforço de não parar a programação.
O orçamento foi reduzido? Hoje está em torno de R$ 1 milhão para produção artística e já chegou a ser em torno de R$ 4 milhões. Mas a gente faz Lei Rouanet, tem parceiros…
Vocês pensam em procurar financiamento na iniciativa privada? No ano que vem, o Palco Paraná tem como missão procurar parceiros. É muito importante que a iniciativa privada participe da cultura, porque tem um ganho na imagem da empresa e, se comparar com outras coisas, é muito barato.
Como avalia a relação entre mercado e cultura hoje? Quanto mais eu penso no Queermuseu [exposição em Porto Alegre que foi fechada neste ano por acusações de pedofilia e zoofilia], mais eu vejo a gravidade do que aconteceu. Vejo como [um ato] criminoso o Santander ter tirado a exposição. Quando o prefeito do Rio [de Janeiro] diz que não quer a exposição lá porque não gostam de pedofilia, eu, se fosse chefe dele, o demitiria. Ninguém gosta de pedofilia nem de zoofilia. A arte é uma outra coisa e tem que ser respeitada como tal. Nas redes sociais, as pessoas criticam e aí o mundo vai ser pautado pelo que alguns poucos religiosos acham?
No ano passado, teve uma polêmica parecida com a peça Pornogospel, encenada no miniauditório. Teve repercussão, já fui perseguida. Essa discussão me parece tão antiga. Estamos em 2017, as pessoas já se cortaram nos palcos, já fizeram tudo nos palcos. Acho que incomoda a quem pega em algum lugar.
O Guaíra recebe grandes espetáculos, mas também tem espaço para experimentações? Sim, porque é um anseio do artista. Temos projetos para um público interessado, que não são para o grande público. A gente fez Carmen e A Sagração da Primavera, que são clássicos, mas nossas montagens e a coreografia são contemporâneas. Não dá para imaginar que, no Lago dos Cisnes, vão entrar de sapatilha de ponta. Nossa companhia não é mais clássica.
Quais os próximos passos do CCTG? Algumas coisas têm de ser feitas na parte física, o Guairão tem 43 anos. Temos que fazer uma reforma elétrica, estamos vendo se é compatível com manter o teatro aberto. Como todo órgão público, [o CCTG] tem que se repensar um pouco, porque o mundo mudou.
Você acha que a cultura está sendo desmontada no país? Quando [Michel] Temer assumiu, ele desmontou o Ministério da Cultura e, graças a Deus, temos grandes artistas olhando para isso e ele voltou atrás. Estamos no terceiro Ministro da Cultura, ficamos três meses sem ministro. Em um governo que está sendo enxovalhado por denúncias, não entendo que haja tempo para pensar em coisas sérias e delicadas, como é a cultura.
É uma das primeiras áreas a ter cortes. Tirar dinheiro da cultura não significa resolver os problemas de nenhum outro setor do país. Temos um exemplo: o cancelamento do Festival de Música, pelo prefeito Rafael Greca, por um valor de R$ 900 mil. O prefeito disse que, enquanto houver dor, não haveria música. Eu acho que, enquanto houver dor, não deveria haver nem asfalto, nem monumentos, nada.
E de onde veio o seu gosto pela arte? Desde que me lembro, eu acordava e meu pai [Karlos Rischbieter], que era um alemão madrugador, estava ouvindo música erudita. Meu pai pintava, desenhava, gostava de poesia. Meu avô, Paul Garfunkel, pai da minha mãe, era um artista e viveu disso. Ele foi sócio do Monteiro Lobato em uma fábrica de pó de banana, sei lá o que era, um suplemento alimentar que não deu certo… eles faliram.
Como foi a sua trajetória? Eu fui professora por muitos anos, sou pedagoga de formação. Saí e fui trabalhar com Jaime Lerner em uma fábrica com reciclagem de brinquedos, na Vila Pinto. Depois virei assessora de gabinete do Rafael Greca, depois com Cássio Taniguchi. Então, recebi o convite para vir ao Guaíra quando Lerner era governador. E aqui se deu uma paixão arrebatadora, dramática, sofrida. Aqui é a casa do drama. Todo dia você vai encontrar alguém chorando. Eu já tive algumas crises aqui dentro.
Por que você diria que é importante investir em cultura? Acho que a gente cresce como indivíduo, com dores e amores, e a arte faz muito parte disso. Os países com respeito pela cultura são os civilizados. Na barbárie, os terroristas estouram grandes obras de arte, museus. É a anticivilização. A arte existe porque a vida não basta, é uma frase do Ferreira Gullar. E cada vez basta menos.
Como você lida com as críticas? Eu presto atenção. Críticas do processo do balé, da orquestra, a gente tem que receber com tranquilidade, porque, de fato, atrasamos o processo. Acho que fizemos no tempo que deu, mas as pessoas têm o direito de criticar. Há pessoas no teatro que me criticam e é por isso que tenho segurança. O poder, qualquer que seja ele, tira a pessoa do prumo.
Como assim? As pessoas puxam o saco, a pessoa pensa que é maravilhosa e, na verdade, não é. Meu pai, por exemplo, foi morar em Brasília pela primeira vez como presidente da Caixa Econômica Federal. Ele disse que entrou no elevador e todo mundo saiu. Era uma coisa que os presidentes impunham, mas ele achou que estava com cheiro ruim. Depois ele virou presidente do Banco do Brasil, Ministro da Fazenda e se manteve uma pessoa quase normal, porque minha mãe o obrigava, todo sábado, a arrumar as camas e a fazer almoço. Era um treinamento para ele não ficar insuportável.
Era algo que trabalhavam em casa? Quando entrei no Guaíra, fui almoçar com meu pai e contei que as pessoas eram supersimpáticas comigo. Ele disse: “Você é tonta, né? As pessoas são simpá- ticas porque você é a nova chefe delas”. Minha mãe falava uma coisa incrível: você só pode brigar com quem pode brigar com você. Ela era a pessoa mais delicada com os mais humildes e a mais aterrorizadora com quem tinha dinheiro.
E como está a sua produção artística, consegue conciliar? Nada. Quando saí da Secretaria de Cultura, fiquei deprimida uns dois anos. A vida pública não é muito engraçada.
Nestes dois anos você não fez nada? Fiquei dois anos sofrida mesmo. Procurei emprego, não achei. É legal fazer arte, mas precisava de salário, trabalhar. Não podia nem ser secretária executiva porque não falo superbem inglês, não sei fazer ofício. Depois de dois anos fui fazer cinema, escrevendo roteiros, o que adoro. Quando vim para o Guaíra, em 2011, deixei de ser sócia da agência WG7. Eu achava que ia chegar em casa e ia escrever. E, em seis anos, não escrevi nenhum roteiro.
O que tem visto de interessante no cinema? Jamais vou. Saio do teatro às 19h, vou para casa e detesto sair de lá. Eu leio, monto quebra-cabeça no computador. Leio romances policiais e Clarice Lispector, sempre, todo dia uma crônica de A Descoberta do Mundo. Ouço Chico Buarque e leio Clarice todo dia.
Ouviu o último disco do Chico? Ouvi. Eu queria casar com ele. Já fui apresentada ao Chico cinco vezes. E nas cinco vezes fui ao salão, fiz depilação, arrumei o cabelo, comprei roupa. E ele nunca nem olhou pra mim, nunca disse nem “muito prazer”. Agora, está namorando outra curitibana, que ódio que eu tenho (risos). Mas sou super-feliz sozinha. Se eu me casasse de novo, seria para me divorciar. Casamento é tipo submarino: pode até boiar, mas foi feito pra afundar.
Voltando ao teatro, você prefere ver o ensaio às apresentações? Sim. Nunca venho à noite, porque deixa de ser um espaço de lazer. O público, às vezes, é esquisito. Outro dia, contei 327 chicletes grudados no carpete do Guaíra, que é novo. E não saem. Agora deve ter ainda mais.
*Matéria escrita por Amanda Audi e publicada originalmente na edição impressa número 18 do TOPVIEW Journal, novembro de 2017.