ESTILO GASTRONOMIA

Nem tudo é o que parece

Como o ato de cozinhar pode também ser um ato artístico

Esta revista me provoca a entrar em temas que, muitas vezes, demoro para encontrar saída. Mas eu gosto, fazem-me refletir. Gastronomia e arte são os meus temas da vez.

O conceito da palavra “gastronomia”, por si só, já traz a arte embutida. Se eu falo “comida“, seu cérebro faz uma relação imediata com a palavra “fome”; se eu falo “gastronomia”, seu cérebro relaciona muitas outras coisas que vêm antes da “fome”. O sabor, a apresentação, a louça e os talheres, a música, a companhia, o ambiente e além.

Diferentemente da comida, cujo limite é a própria fome, não há limite para a gastronomia.

Aliás, é oportuno comentar: durante as fases mais críticas da pandemia do coronavírus, ao nos vermos com os restaurantes vazios por conta dos decretos de isolamento, uma das sugestões de alguns empresários e vereadores era incluir nossos estabelecimentos na lista de “serviços essenciais”, permitindo, assim, que pudéssemos abrir as portas. Fui contra. Meu argumento era simples: comer é essencial, gastronomia não é essencial. É claro que, quando você depende da sua empresa para colocar comida na mesa da sua casa e o governo não oferece uma ajuda financeira mínima que possa viabilizar esse sustento, como aconteceu no Brasil, qualquer atividade econômica passa a ser essencial, o que não significa que a gastronomia, em si, é uma atividade essencial.

Pois bem. Sigo com o raciocínio da arte. Um dos pratos mais emblemáticos e polêmicos de um restaurante paulistano, considerado por diversas vezes um dos melhores do mundo, era uma formiga sobre um pedaço de abacaxi. Lembro bem os comentários na época: “Ainnn, você acha que eu iria em um restaurante que cobra R$ 700 por um menu degustação para comer formiga?”. Pois bem. É certo imaginar que um prato de macarrão à bolonhesa que lembra a nossa nonna e sacia a nossa fome por uns dois dias seguidos parece valer muito mais que um pedaço de abacaxi com formiga.

A macarronada te emociona, te faz viajar no tempo, te abraça fraternalmente, é afeto. Mas quem foi que disse que a arte está aí para nos dar afeto? Kurt Cobain, artista que virou a chave musical dos anos 1990, compunha letras, arranhava a guitarra e berrava no microfone com um propósito muito claro: não agradar a ninguém. Era arte. O quadro O Grito, de Edvard Munch, evidentemente, não foi feito para agradar – é para incomodar mesmo. É arte. Se Alex Atala quisesse agradar aos seus clientes, ele não serviria abacaxi com formiga, mas, sim, macarrão com carninha, assim como eu. Mas o Alex é artista; eu, infelizmente, não. Alex coloca técnica, conhecimento, história, cultura e muita ousadia no que faz. É capaz de chocar. Mas, acima de tudo, é capaz de transformar. A gastronomia brasileira, independentemente das opiniões de cada um, divide-se em pré- Alex Atala e pós-Alex Atala. Assim, como o rock se divide em pré e pós-Kurt Cobain. Não à toa, está cheio de cópias deles por aí.

Volto para o meu mundinho

Tenho dois restaurantes que têm o mesmo nome. Madá. O primeiro é arte. O segundo padece. Arrisco dizer que o Madá da Saldanha Marinho pode ser um divisor de águas no microcosmo da história das pizzarias curitibanas. Não pelo produto em si, mas pelo todo: um restaurante pequenino que subverte a lógica mercado- lógica dos manuais de administração. A localização não é boa, a rua é escura e ruim para estacionar. Além disso, não temos uma placa na fachada dizendo “PIZZARIA”. O espaço é um puxadinho de um antigo barracão. Na reforma, não utilizamos um pingo de tinta, foi tudo improvisado, acompanhando a essência daquilo que um dia foi uma fábrica de sapatos (se não me engano).

O outro Madá começa errado por tentar ser o Madá. Existe arte e existe a cópia da arte – que, evidentemente, nunca será tão original, pelo simples fato de tentar ser – e não “ser” por “ser”. Se eu posso ver a arte, por que vou em outro endereço para ver a cópia da arte? É a segunda vez que cometo esse erro. A primeira foi quando chamei de Forneria Copacabana meu segundo restaurante, homônimo ao primeiro, aquele que marcou época na rua Itupava. Aquilo era pura arte. Minha sugestão era dar outro nome para o Madá Ecoville, até porque ele tem potencial para ser arte e não cópia da arte.

Escrevo este texto à revelia do meu sócio. Estou fazendo arte. Espero que ele concorde. Que tal “ECCO! Pizzeria e Trattoria”? Gostei.

+3 docs sobre gastronomia 

CHEF’S TABLE

THEATER OF LIFE

COOKED

*Coluna originalmente publicada na edição #253 da revista TOPVIEW. 

Deixe um comentário