ESTILO

Gabriela Carvalho levanta a bandeira do desperdício zero

Dona de uma alegria contagiante, a chef conta que a energia vem do vegetarianismo, do qual é adepta há sete anos

Em Gabriela, Cravo e Canela, obra de Jorge Amado publicada pela primeira vez em 1958, a personagem principal representa as transformações de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária. Quase 60 anos depois, outra Gabriela, a chef de cozinha e proprietária do Quintana Café & Restaurante, se destaca como um dos principais nomes relacionados a novas transformações não só na sociedade, mas especificamente na gastronomia, com sua ecogastronomia cultural.

Indicada a este prêmio por dois grandes nomes da culinária curitibana – as chefs Manu Buffara (Restaurante Manu) e Eva dos Santos (Bistrô do Victor) – Gabriela Vilar de Carvalho é o tipo de pessoa sobre a qual a expressão “de bem com a vida” parece falar. Em uma manhã gelada de junho, a sorridente curitibana de 37 anos  me encontra no Quintana, lugar em que passa a maior parte do seu dia, achando que iria participar de uma matéria sobre mulheres na gastronomia. Até que não menti tanto assim.

A capa desta edição prova o quanto o tal girl power tem chegado também à gastronomia, em grande parte pela chef à minha frente. Dona de uma alegria contagiante, ela diz que a energia vem do vegetarianismo, do qual é adepta há sete anos, e admite que a opção se fez necessária depois que começou a praticar yoga. “Uma coisa está relacionada à outra”, justifica.

Cozinha como sala de aula

Gabriela sabe que o papel de um chef de cozinha vai além de criar pratos gostosos e é um exemplo disso. Cada novidade dela traz, além de muito tempero e sabor, uma nova informação – e é isso o que propõe no Quintana, criado há oito anos sob os pilares da sustentabilidade e cultura. “A gente lida com a sobrevivência humana, envolve prazer, mas também necessidade e responsabilidade. Instigar uma coisa simples pode trazer um resultado estrondoso”, conta quem já viu muita gente mudar a alimentação depois de conviver com ela.

Seu restaurante “do bem” também serve carne, tem horta própria, compostagem, reaproveitamento da água da chuva (para o sistema de resfriamento do deck) e alimentos que, como ela gosta de definir, “têm nome e sobrenome” – comprados de pequenas produções locais. E ainda que os orgânicos representem 70% dos insumos – segundo ela, é difícil produzir organicamente em grande escala certos alimentos, como a cebola – tudo é aproveitado 100%. Desperdício é pior que palavrão.

Dos talos ela faz refogados deliciosos. As cascas adubam a compostagem ou se transformam em geleias usadas em alguns pratos e vendidas aos clientes – caso da laranja, ácida demais para o solo. E nada de comida sem graça. Se o trabalho dela tem se destacado é justamente por elevar o nível de ingredientes geralmente desprezados.

Embaixadora do movimento Gastronomia Responsável, iniciativa da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza que tem como objetivo aliar conservação da natureza e alimentação de qualidade, Gabriela é conselheira fiscal da Abrasel PR (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes). Também desenvolve uma parceria com os produtores que seguem um planejamento de acordo com a necessidade do restaurante. “Não é só oferecer um alimento bom e que nos faça bem. A intenção é gerar um processo socioeconômico interessante para eles também”, defende.

Sobre aprender e ensinar

E aí entra a admiração dela pelos indígenas, “da simplicidade que traz a base”. Recentemente, a chef promoveu ações no Quintana em parceria com as tribos Kaingang, do Paraná, e Fulni-ô, de Pernambuco, que vão além dos artesanatos hoje à venda no Quintana. Elas fizeram com que Gabriela absorvesse um conhecimento mais amplo dessa cultura, aprendesse referências da alimentação deles e passasse a se preocupar em apoiar causas e defender o desenvolvimento dessa população “que tem sido massacrada pelos brancos”.

E se o Quintana é quase um organismo autossustentável, foi porque Gabriela conseguiu ensinar e educar uma equipe de 20 funcionários que reproduzem e entendem suas propostas e a acompanham por, no mínimo, seis anos – um período surpreendente se pensarmos na rotatividade que os restaurantes costumam ter. “Não é fácil, mas eu só proponho ao Quintana algo que desejo para mim: tudo de melhor”, garante.

Com a equipe afinada, a chef se permitiu sair da cozinha, hoje comandada pelo chef  Tancredo Pereira, estar mais à frente do negócio e pensar em inovações, parcerias, eventos e aperfeiçoamento para os colaboradores. Em maio, por exemplo, ela esteve nos Estados Unidos, onde participou de uma das mais importantes feiras de alimentação das Américas, a NRA Show 2016, na tentativa de encontrar uma boa embalagem reciclável para o delivery do Quintana, a ser implantado em breve.

Trabalhar com gestão de negócios não é novidade para a curitibana. Nos 15 anos em que esteve fora da cidade – vivendo em lugares como Estados Unidos, Suíça, China, Bahia, Fortaleza e São Paulo – ela concluiu o curso de hotelaria pela faculdade suíça Les Roches, se especializou no setor de alimentos e bebidas e trabalhou em restaurantes e hotéis do mundo todo. Voltar a Curitiba foi um processo natural. “Eu tinha saudades da minha família e comecei a perceber que só aqui me sentia completamente em casa”, conta.

Zen, mas nem tanto

Até alguns anos a ideia de não controlar o que saía da cozinha todos os dias era algo impossível. “Eu era superestressada”. Hoje, admite que melhorou e consegue entender que a sua maneira de fazer não é a única certa. A yoga e o tempo que passa com a filha (Bia, de três anos) e o marido (Fabricio Thomaz, gerente e sommelier no Quintana) são suas válvulas de escape. E ainda que o restaurante – que abre todos os dias! – consuma quase todo o tempo da chef, ela faz questão de colocar a filha para dormir todas as noites.

É querida entre os chefs da cidade e isso não é segredo. Mas a relação é mais íntima entre as “superpoderosas” – grupo que formou com Eva dos Santos (Bistrô do Victor), Rosane Radecki (dos restaurantes Girassol e Alecrim, com ela na capa desta edição) e Joy Perine (ex-Zea Maïs). Gabriela nem lembra quando a brincadeira começou, “talvez quando eu criei o grupo no WhatsApp”. Já faz algum tempo que se reúnem para falar sobre assuntos que vão além da profissão em comum.

Para a chef do Quintana, os chefs precisam se unir para mostrar ao mundo o potencial gastronômico de Curitiba. Ela enxerga que se alimentar com saúde tem se tornado algo cada vez mais possível e acessível – vide o boom de restaurantes saudáveis que abriram em Curitiba nos últimos meses e até dos próprios produtores rurais, que melhoraram preços –, uma “tendência pela necessidade, um despertar humano”. Mas salienta que é necessário olhar para o todo e fazer escolhas inteligentes a partir de hoje, olhando para o futuro.

Pensar mais no associativismo, nos produtos, parceiros, “no sustentável além do estético”. “Precisamos olhar para a natureza como o nosso principal aliado”, emenda, ao acrescentar que entre uma nova transformação e outra quer explorar mais a Ásia, conhecer points gastronômicos na cidade como o asiático Tuk-Tuk e um restaurante de empanadas do qual ouviu falar, ter mais um ou dois filhos e viajar pelo mundo com eles.

*Matéria publicada originalmente na edição 189 da revista TOPVIEW.

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